quarta-feira, 26 de março de 2025

Um Palácio Nunca Construído e um Vazio Urbano Ainda Presente: Niterói e o Palácio da Secretaria-Geral do Governo do Estado nunca construído

Por Almir Cezar Filho

Palácio da Secretaria Geral do Estado do Rio de Janeiro (Arte digital a partir do fac-símile restaurado da planta-frontal do projeto)

I. O vazio monumental no coração da cidade

Vista panorâmica do conjunto da Praça da República de Niterói. Circulado o
terreno vazio a mais de 100 anos.
No coração histórico de Niterói, um terreno vazio atravessa gerações como cicatriz aberta. Murado, transformado em estacionamento privado, ele marca a ausência de um edifício que deveria ter completado o centro cívico mais ambicioso da antiga capital do Estado do Rio de Janeiro: o Palácio da Secretaria-Geral do Governo do Estado. Projetado em 1911 por Heitor de Mello, em estilo eclético com traços neoclássicos, o edifício seria o símbolo do Poder Executivo fluminense, lado a lado ao já erguido Palácio da Justiça, à Assembleia Legislativa e à antiga Chefatura de Polícia.

O não cumprimento dessa etapa não é só uma falha arquitetônica ou administrativa: é um trauma urbanístico. O que era para ser um conjunto harmônico de prédios públicos de inspiração europeia — nos moldes dos centros cívicos de Washington, Viena ou Paris — tornou-se um monumento à incompletude, à descontinuidade política e à falta de visão urbanística que assola o planejamento das cidades brasileiras. Niterói, infelizmente, é um exemplo emblemático desse ciclo de promessas quebradas.

II. Projetos pela metade, urbanismo pela exceção

Projeto original de Heitor de Mello - Planta do arquivo do CREA-RJ

A não construção do Palácio da Secretaria-Geral insere-se numa lógica persistente: a dos projetos urbanos pela metade. Iniciado com entusiasmo pela gestão republicana do início do século XX, o Centro Cívico da Praça da República previa uma praça monumental ladeada por edifícios públicos de função e simbolismo. Ainda na década de 1910, foram erguidos os prédios da Escola Normal, Assembleia Legislativa, Chefatura de Polícia e Palácio da Justiça. Mas a crise econômica pós-Primeira Guerra Mundial, as mudanças de governos e as disputas políticas adiaram indefinidamente a construção do palácio do Executivo e da praça ajardinada em seu centro.

O terreno permaneceu vazio por décadas, enquanto a cidade mudava ao seu redor. Tentativas de "revitalização" urbana — como o Aterro da Praia Grande, o Caminho Niemeyer e, mais recentemente, o programa “Niterói 450” — seguiram a mesma sina: obras inacabadas, mudanças de rumo e zonas centrais transformadas em áreas degradadas ou subutilizadas. Terrenos viram estacionamentos, quadras viram depósitos improvisados, espaços públicos tornam-se privados pela inércia do Estado. Esse padrão parece estrutural, repetindo-se em outras cidades, como no Porto Maravilha, no Rio de Janeiro.

III. O que poderia ter sido: palácio, museu, centro cultural

Representação artística do palácio se tivesse sido
construído

Caso tivesse sido erguido, o Palácio da Secretaria-Geral teria hoje múltiplas possibilidades de uso. Como sede administrativa, reforçaria a presença do Estado no Centro de Niterói, descentralizando a burocracia da capital fluminense. Como museu da República ou centro de interpretação da memória urbana, poderia reunir e valorizar a história político-arquitetônica da cidade. E como centro cultural, ampliaria o circuito Niemeyer de equipamentos simbólicos, ajudando a consolidar Niterói como polo de turismo histórico e artístico.

Isso tudo "e se" ele - tivesse sido construído e - ainda existisse. Contudo, não se pode limitar a isso. 

A ideia do "ex novo"

Na Europa atualmente, projetos arquitetônicos apagados pela história vêm sendo recuperados como forma de reconciliação simbólica e urbanística. Em Berlim, o antigo Palácio Real dos Hohenzollern, demolido no período comunista, foi reconstruído sob a forma do moderno Humboldt Forum. Em Varsóvia, diversos prédios históricos foram reerguidos no pós-guerra com base em registros iconográficos e documentação histórica. Essas experiências mostram que reerguer o que não foi construído pode ser um gesto de recuperação cívica, não um saudosismo anacrônico.

Vista área do conjunto da Praça da República de Niterói

 

IV. Urbanismo como política, memória como estratégia

Mais do que nostalgia arquitetônica, discutir o "palácio nunca construído" é tratar da memória urbana como projeto político. O vazio deixado pela sua ausência é também a ausência de uma ideia de cidade. Em lugar do centro cívico planejado, temos um amontoado de funções desarticuladas: tribunais cedidos, escola sob pressão, estacionamentos informais, ausência de um marco simbólico da administração estadual.

A reconstrução — ou mesmo a construção ex novo — do Palácio da Secretaria-Geral do Estado poderia ser um projeto piloto de ressignificação do Centro de Niterói. Respeitando o estilo eclético original, atualizado às demandas contemporâneas de sustentabilidade, acessibilidade e multifuncionalidade, o novo edifício poderia reintegrar o Centro ao imaginário da cidadania fluminense. E dar novo fôlego a uma cidade que sempre oscilou entre o vanguardismo cultural e o abandono de seus próprios projetos.

V. O passado como semente do futuro

A história do Palácio não construído revela o quanto o Brasil, e Niterói em particular, são marcados por rupturas de continuidade, descompromissos institucionais e políticas urbanas voltadas mais para o capital fundiário do que para a cidadania. Mas esse passado também é um convite à retomada de projetos com profundidade histórica e ambição cívica.

Construir (ou reconstruir) o Palácio da Secretaria-Geral do Estado pode parecer um gesto simbólico. E é. Mas símbolos importam. Especialmente quando ajudam a articular espaço, memória e função pública. O vazio urbano da Praça da República não precisa ser permanente. Ele pode, sim, ser preenchido com dignidade, história e sentido republicano.


Representação artística de como seria atualmente o conjunto se o Palácio tivesse sido construído.


BIBLIOGRAFIA

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