Resumo
O artigo propõe um modelo interdepartamental de crescimento garantido e não inflacionário, fundamentado na síntese entre Evgeni Preobrazhensky e Michał Kalecki. A partir de uma releitura marxista das relações entre produto efetivo e produto potencial, o texto demonstra que a estabilidade de preços não depende da contração fiscal ou monetária, mas da compatibilidade estrutural entre os ritmos de expansão setoriais. O modelo formaliza o produto agregado como a soma das respostas diferenciais da produção (), identificando um ponto ótimo de coerência () em que o crescimento da renda coincide com a capacidade produtiva sem gerar inflação.Essa formulação integra o teorema de Preobrazhensky sobre inflação e desproporção nos países em desenvolvimento e a taxa de crescimento garantido de Kalecki (, resultando em uma equação composta () que expressa a taxa de expansão compatível com a estrutura produtiva real. Aplicado ao caso brasileiro, o modelo revela que a inflação recente decorre não de déficits fiscais, mas de gargalos produtivos intersetoriais — a superposição de cadeias de oferta descompassadas. O artigo conclui propondo substituir a atual política de metas de inflação por uma meta de coerência estrutural, que combine planejamento produtivo, investimento coordenado e mensuração periódica do crescimento não inflacionário. Essa abordagem redefine o papel da política macroeconômica, colocando o planejamento e a proporcionalidade produtiva como fundamentos da estabilidade e do desenvolvimento sustentável em economias periféricas.
Palavras-chave:
Preobrazhensky; Kalecki; crescimento garantido; inflação estrutural; coerência interdepartamental; planejamento econômico; Brasil.
Introdução – Crescimento, Inflação e a Falácia do Desequilíbrio Fiscal
Nas últimas décadas, o debate econômico brasileiro tem sido sequestrado por uma falsa oposição entre responsabilidade fiscal e expansão produtiva. À política fiscal atribui-se a origem das pressões inflacionárias; à política monetária, o papel de guardiã da estabilidade. Sob essa narrativa, o crescimento seria, por definição, inflacionário; e a austeridade, sinônimo de sensatez. Contudo, a experiência recente do país — inflação persistente mesmo com juros recordes e baixo dinamismo — revela que algo fundamental está errado nesse raciocínio.
A inflação brasileira contemporânea não nasce do “excesso de gasto público”, mas dos gargalos estruturais de uma economia heterogênea, dependente e desproporcional. Em vez de se propagar de cima para baixo pela demanda, ela emerge de dentro do sistema produtivo, das descompensações entre setores e departamentos, que limitam a expansão da oferta e elevam os custos antes mesmo que o consumo popular se recupere. A política monetária restritiva, ao inibir o investimento justamente nos elos mais frágeis — energia, logística, indústria de base e agricultura —, apenas aprofunda o desequilíbrio que pretende corrigir.
É nesse ponto que o pensamento de Evgeni Preobrazhensky e Michał Kalecki recupera toda a sua atualidade. Ambos demonstraram que o equilíbrio entre crescimento e estabilidade de preços não depende do freio da demanda, mas da compatibilidade entre os ritmos de expansão dos setores e departamentos da economia. Em Preobrazhensky, essa compatibilidade material expressa-se no equilíbrio entre os Departamentos I (meios de produção) e II (meios de consumo); em Kalecki, na proporção entre poupança, investimento e capacidade produtiva, que define a taxa de crescimento garantido.
Partindo dessa dupla herança teórica, este artigo propõe um modelo interdepartamental de crescimento garantido e não inflacionário, no qual o produto efetivo resulta da soma das respostas diferenciais setoriais , e o ponto ótimo representa a coerência estrutural entre o produto efetivo e o potencial. O modelo sintetiza o teorema de Preobrazhensky sobre a inflação em economias em desenvolvimento e a equação kaleckiana do crescimento , mostrando que o crescimento sem inflação decorre da proporcionalidade entre investimento, capacidade e estrutura produtiva — e não da contração da demanda.
A aplicação dessa abordagem ao caso brasileiro permite reinterpretar a atual conjuntura: a inflação decorre menos do fiscal e mais da superposição de gargalos produtivos; a estabilidade não virá de juros altos, mas da recomposição das proporções materiais do desenvolvimento. Ao restituir a economia política ao terreno da totalidade concreta, o modelo propõe uma nova racionalidade macroeconômica para países periféricos — uma racionalidade do planejamento e da coerência estrutural, que recoloca o crescimento, e não a austeridade, como fundamento da estabilidade de preços e do equilíbrio social.