sábado, 23 de maio de 2020

Crise capitalista e a controvérsia sobre crise, no Marxismo

por Almir Cezar Filho

Marx nunca perdeu de vista o problema das crises desde seus primeiros trabalhos significativos, falava que as crises por sua repetição periódica põem a prova à vida de toda a sociedade burguesa, cada vez mais ameaçadoramente, e apesar de sua superação, reaparece a todo momento, em cenários cada vez mais versáteis e maior intensidade de ação (cf. MARX & ENGELS, Manifesto Comunista). 

Karl Marx via o capitalismo, como um sistema historicamente datado, isto é, que tinha um começo, um início, e obviamente que, haveria um fim, profetizando que terminaria através uma crise ou de crises do próprio sistema. Findado, ou findando-se, construir-se-ia pelas mãos do proletariado a sociedade socialista a partir de necessários elementos que se apareceriam durante o desenvolvimento do modo de produção capitalista.

Em agudas contradições, crises, convulsões, se evidência a crescente inadequação do desenvolvimento produtivo da sociedade às relações de produção em vigor. A violenta aniquilação do capital (nas crises), não por circunstâncias alheias a ele, mas como condição de sua autoconservação, é a forma mais contundente de aviso para que ele desapareça e dê lugar a um estágio superior de produção social (...) Estas contradições têm como resultado cataclismos, crises, nos quais, a suspensão momentânea de trabalho e a destruição de grande parte do capital, o fazem voltar violentamente ao ponto no qual é incapaz de empregar plenamente os seus poderes produtivos sem cometer suicídio. No entanto, estas regulares e recorrentes catástrofes têm como resultado a sua repetição em uma escala maior e, por último, à derrubada violenta do Capital. (Marx, Gründrisse)
Tornando-se recorrente essa discussão em seus trabalhos, entretanto o problema das crises não se encontra em nenhum dos escritos de Marx a um exame completo ou sistemático.

Os seguidores de Marx num período de franca consolidação do marxismo e de sua hegemonia no movimento operário, especialmente com a II Internacional, entre os anos de 1880 até o início da Primeira Guerra Mundial, sendo conhecidos como “socialdemocratas”, foram além, colocando-a em torno da chamada “teoria do colapso”, que afirmavam que o fim do capitalismo se daria por uma derrocada, sob forma de um inevitável colapso econômico geral, o que seria sucedido pelo socialismo, isto é, abrir-se-ia espaço para sua implantação.

Esta concepção era resultado obtida pela interpretação acertadamente marx-engelsina que “limite do capital é o próprio capital”, quer dizer, as restrições e crises do capitalismo são determinadas pelo próprio desenvolvimento do processo de acumulação do capital. Entretanto, esqueciam-se do necessário papel revolucionário do proletário e subestimavam a capacidade de sobrevivência do capital, um claro resultado de uma interpretação dogmática da teoria de Marx.

Assim, embora sob a influência de uma interpretação presa “à letra fria” da teoria, com o objetivo de legitimar uma prática política - que as derrotas do movimento revolucionário deveriam ser num momento inexorável do futuro sucedidos pela implantação do socialismo, e que nesse interregno, dever-se-ia aguardá-lo, ou preparar-se para esse momento oportuno do colapso geral do capitalismo - pela correspondência de tais análises do papel da revolução com as concepções do mestre.
Entretanto, a realidade do fim do século XIX, a partir da entrado do capitalismo na sua fase imperialista, com a possibilidade do capital ceder concessões materiais, através da participação dos trabalhadores no cenário político-institucional estatal e o atendimento de reivindicações pelo Estado, e nenhum cenário de crise econômica possível à vista, abalariam a concepção de “colapso inevitável”.

Em contrapartida, do interior do dogmatismo surge uma refutação a esse “inevitável colapso” no interior do marxismo, com base a tentativa de renovação de seu pensamento, de revisão de seus “fundamentos equivocados” e dar chances à classe trabalhadora de então poder reformar o sistema, pela ação política da classe, já que o socialismo não viria pela crise econômica.

Surge aí uma polêmica que durará mais de cem anos no interior do marxismo, entre aqueles que sob o argumento da renovação, colateralmente demolindo as bases do marxismo, defendem uma perspectiva social-reformista para o proletariado e aqueles que se mantendo fiel, não ao dogma, mas as bases ontológicas da teoria marx-engelsina procuram refutar o revisionismo ao mesmo tempo que o atualizar frente aos novos desafios pelo que o proletariado enfrenta, e dessa polêmica permitiu inclusive o aperfeiçoamento da teoria marxista. Surgem debates sobre o papel do Estado, sobre o caráter das classes sociais, da dependência da economia mundial a produção interna dos países e o advento e papel do capital monopolista, objetos que Marx ou Engels não sistematizaram, por falta de tempo, ou por que não havia na realidade de então elementos que permitiriam sua melhor ou até mesmo sua primeira observação.

É importante destacar que da controvérsia marxista, a mais significativa, e que sintetiza suas raízes e bases, faz-se em torno da explicação econômico política sobre a causa das crises. A crise é importante porque demonstra o limite do modo de produção capitalista, sua restrição e a caminhada para o fim. Assim, há cada época, a cada eclosão de uma vertente revisionista, defensoras da perspectiva social-reformista, elabora-se uma interpretação econômica política a respeito da causa das crises, e sobre a manutenção ao longo do tempo e espaço do modo de produção capitalista.

Dessa maneira, a Escola da Regulação, surgida da polêmica na ciência social de influência marxista ao longo dos anos de 1970 às explicações oficiais dos partidos comunistas da Europa Ocidental sobre estabilidade econômica e prosperidade material dos trabalhadores no período do após a Segunda Guerra Mundial, e influenciada por um lado, pelo planejamento estatal de tradição keynesiana e pela renovação crítica na ciência social como o gramscinismo francês, o estruturalismo althusseriano e o evolucionismo schumpeteriano, vividas principalmente a partir da década de 1950, configurando-se na verdade, como um elo contemporâneo da longa cadeia revisionista. Repetindo-se na incompreensão da identificação sobre as causas da crise do capitalismo e de sua ligação com a necessidade, emergência e construção da sociedade socialista, apesar de fatores em contrário, entre os quais, o próprio papel do social-reformismo enquanto direção política da classe trabalhadora organizada.

Dois fenômenos estreitamente relacionados caracterizam a presente conjuntura internacional. De um lado, o capitalismo mergulha em uma crise econômica profunda e multidirecional (iniciado em 1974 e vários ínterins breves de prosperidade), abrindo a probabilidade de um novo ciclo revolucionário1, por outro lado, o movimento socialista sofre hoje uma reinvestida do revisionismo em suas modalidades contemporâneas.

Está em curso, nas sociedades capitalistas contemporâneas, uma série de mudanças nos âmbitos da produção material e da regulação do sistema econômico. Os elementos mais visíveis desse quadro são a queda da taxa de lucro, a redução das taxas de produtividade do capital  acentuando a tendência decrescente da taxa de lucro , a hipertrofia e a relativa autonomização da esfera financeira, dentre outros.

A esse quadro agrega-se a crise fiscal do Estado, desencadeando um profundo redimensionamento de suas atribuições, como a retração dos “gastos sociais”, a privatização de serviços públicos, retirada de direitos trabalhistas e sociais e restrição de políticas públicas, o ataque às entidades representativas dos trabalhadores, além da liberação do capital a qualquer amarra política e institucional que crie obstáculos à sua movimentação e valorização.

Esse conjunto de mudanças traduz a incapacidade da solução social-reformista tradicional do pós-guerra de conter as contradições inerentes ao capitalismo. O esgotamento não reflete apenas uma “flexão conjuntural” por que passa a sociedade produtora de mercadorias, mas a materialização de uma séria “crise estrutural do capital”.

1- A Crise sob o olhar de Marx

Marx (e Engels) inicia o desenvolvimento de seu pensamento a partir da década de 1830, período marcado por uma quebra da tranquilidade por que passava a Europa Ocidental, duas décadas de calmarias seguintes ao fim da época de revoluções e guerras em desdobramento à Revolução Francesa e ao período napoleônico.

Durante as décadas de 1830 e 1870, Marx e seu parceiro intelectual e de lutas, Friedrich Engels, começam a polemizar com as teorias sociais hegemônicas em seu tempo, iniciando-se pelo idealismo da Teoria da História e a epistemologia do filosofo alemão, Hegel, que tinham sido elaboradas a partir uma teoria do Direito, embora essa crítica foi feita de maneira diferente às críticas ao pensamento hegeliano até então, como o materialismo de Feuerbach. 

Marx e Engels o fizeram por meio de uma também análise crítica da economia política clássica, de tradição britânica, que preconizava que a base da vida social residia na vida material da sociedade, principalmente nas relações econômicas. Essas duas análises críticas, mais aquele ao socialismo francês, foram feitas por meio de um método filosófico novo, o que por eles foi batizada de “materialismo dialético”.

Marx procurou reconstruir a cientificidade da investigação da sociedade humana. Resgatando o objetivo de perseguir a verdade na ciência social. Embora, clarifica que a verdade nas ciências em geral e, principalmente, na ciência social, são historicamente datadas, tanto em razão da mutabilidade do objeto como do próprio sujeito da investigação, como também pela influência um no outro e da possibilidade de transformação do objeto pelo sujeito a partir dos conhecimentos por este adquirido na investigação.

Mais ainda, Marx conclui que a descoberta ou a refutação cientifica de uma teoria esta condicionada ao grau de influência do sujeito humano investigador sobre o objeto investigado, e pela finalidade que essa teoria pronta lhe confere. Dessa forma, de maneira geral, as ciências de uma época e lugar, ainda mais a ciência social, é, também, determinada pela ótica e interesse de sua classe dominante. Daí a possibilidade de manipulação da verdade. 

Com isso, toda investigação da realidade do sistema social, à medida que este se desenvolve, nas mãos da classe nela dominante, torna-se mais manipulatória e com um menor teor de capacidade e aspiração em explicar fielmente o mundo social real. Inversamente, a classe que contrapõe a dominante e com potencialidade de sucedê-la na dominação social, isto é, a classe revolucionária, traz consigo as condições (e a necessidade) de desenvolver uma ciência mais realista, que por sua vez, traz-lhe a disponibilidade de evitar a manipulação e melhora seu potencial de exercer a sucessão na dominação de classes.

Para tal, Marx, a partir do materialismo dialético - essa epistemologia nova e transcendente - elabora um conjunto teórico que ficou conhecido de Marxismo [1], compreendendo, principalmente, uma crítica a teoria científica da História, uma teoria sistemática da análise do capitalismo e das formações sociais e das relações humanas que a precederam, o “materialismo histórico”; uma crítica a Economia Política burguesa, a “crítica à economia política”; e uma teoria científica política prática-programática ao proletariado, pregando a tomado e a necessidade da tomada do poder pela ação e consciência revolucionária, na qual ambas anteriores são seus apoios. Esse conjunto popularizado pelo próprio Marx com o nome de “socialismo científico”.

O termo “científico” nesta expressão se refere à controvérsia que Marx e Engels travavam com outros líderes do movimento operário, que reivindicavam o socialismo, mas portavam programas e formulações, a partir de uma visão idealista, em base nas possibilidades ou num ideal utópico [2], e não nas necessidades reais, objetivas e subjetivas.

O objetivo de Karl Marx, segundo o filósofo marxista Gyorgy Lukács, era explicar as mediações sociais que fazem do homem o único demiurgo de seu próprio destino, “ainda que em circunstância que não escolheram”, de tal modo a demonstrar a possibilidade ontológica [3] da superação da sociedade capitalista para uma superior, onde os indivíduos não seriam alienados e viverem com sua humanidade reintegralizada, quer dizer, que no seu modo de ver, adviria com a constituição da sociedade socialista.

A interpretação da crise econômica feita por ele, foi logicamente afetada por uma visão negativa do capitalismo. Marx, por vê-lo como um sistema historicamente datado, isto é, que se tinha um começo, um início, previu que haveria um fim.

Para uma boa parte de seus seguidores e interpretes Marx teria profetizado que o capitalismo terminaria através de processos de Crise Geral. Seus seguidores, especialmente os socialdemocratas alemães, foram além, polemizando em torno da “teoria da catástrofe inevitável” do capitalismo (também chamada de “teoria do colapso”), que afirmava que a derrocada do capitalismo se daria sob forma de um colapso geral e inevitável, e seria seguido, isto é, abriria espaço, para implantação do socialismo. Entretanto, Marx nunca afirmou que o advento da sociedade socialista se faria pela derrocada inexorável do capitalismo.

Assim, em sua análise da realidade social se concentra no aspecto da evidente crise da humanidade vivida durante a etapa histórica do Capitalismo - época tingida de miséria crescente, convulsões e guerra - e a transformação histórica desta numa nova sociedade, o socialismo, pela ruína do capitalismo (o que não é colapso) por suas contradições particulares (elementos engendradores da nova sociedade através das mãos consciente do proletariado). A Crise é para Marx a passagem de uma etapa histórica para outra, produzido pelo “ajuste” da contradição, pois leva a desorganização e reorganização dos sujeitos sociais, das classes sociais em luta.

Sendo assim, é indubitável a ligação, no Marxismo, ou pelo menos em Marx e Engels, da Teoria da Crise, com a Teoria da Miséria e com a Teoria da Revolução. 

Entretanto não existe uma Teoria da Crise, tal como não há teoria da miséria e da revolução, em Marx há um todo, uma ontologia do ser social sob o capitalismo (Lukács, 1981), embora tenha presença nítida a teorização desses três aspectos, claramente distinguíveis, tal qual Marx não desenvolve uma sociologia ou economia “marxista”.

Claro que na época de Marx estava muito longe de constituir-se um sistema classificatório geral, ou uma divisão e subdivisão das diversas ciências e seus ramos. Por evidente, não existia a sistematização que permite identificar, por exemplo, um grupo homogêneo no estatuto de ciências humanas (Economia, Psicologia, Sociologia, Linguística, História das Ciências, etc.); menos ainda correlacionar tal estatuto especialmente com: 

Tudo isso só engrandece o pensamento científico de Marx, e põe do lado aqueles que, exigem de Marx uma “teoria das classes sociais”, uma “teoria da dialética”, uma “teoria do comunismo”, etc.

Marx chega ao entendimento da crise partindo de sua teoria do valor e do capital, constitui a “lei do valor e da mais-valia”, erigida com base na apreensão da realidade do modo de produção capitalista, pela ótica do método dialético materialista. O capital é aí concebido como realidade social e historicamente determinada, sendo a forma de expressão que sintetiza as relações de dominação e exploração da classe capitalista sobre a assalariada. 

Marx, além de descobrir - notadamente nO Capital - várias leis, e foi mais adiante: estabeleceu o conceito de lei científica: não só indica o conhecimento de determinada relação constante entre fenômenos (lei “corrente”), mas a que exprime uma conexão interna e necessária entre coisas ou fenômenos. Por outras palavras, Marx acrescenta ao conceito a ideia da natureza das leis a partir do exame da correlação entre a essência dos fenômenos em seus condicionamentos; ou mudando-se estes condicionamentos concretos - há outras condições nas quais as leis podem, ou não, se verificar. 

NO Capital, de Marx, há várias passagens sobre o significado de lei econômica. E, além da lei da concentração e centralização do capital, e da lei geral da acumulação capitalista, assume principalmente na valiosa herança ontológica do marxismo, a lei da mais-valia, ou a valorização do valor [4]. Assim, Marx em sua notável obra vai adiante e analisa o valor em termos de sua forma, substância e magnitude. Isto porque esta forma capitalista da lei do valor é a lei fundamental do movimento deste modo de produção, específica deste movimento, em oposição aos modos de produção anteriores. E por meio dele pode-se narrar seu nascimento e desaparecimento (cf. Belluzzo, 1998). 

Pois bem, assim, a razão maior da crise econômica para Marx se devia que o capitalismo se baseava em premissas que o conduziam a uma crise recorrentemente e que determinava a sua própria, gradual e progressiva inviabilidade. 

A primeira delas a própria irracionalidade do processo produtivo, é que a concorrência provocava a anarquia da produção. Muitos capitalistas competindo entre si, quase sem regras, terminavam por jogar no mercado manufaturados em excesso, provocando uma superprodução. Ao não conseguirem vendê-los, porque os salários dos trabalhadores eram baixos ou que as compras dos capitalistas fossem menor que o esperado (crescessem menos), dava-se à dificuldade de realização da produção. 

Os seus lucro então estavam em decrescência fazendo com que os investimentos fossem suspensos, gerando desemprego e quebras em série. A outra premissa devia-se ao fato de que o sistema produtivo no capitalismo não estava voltado para as necessidades sociais (para atender o consumo básico da população) mas para satisfazer o lucro dos proprietários, provocando situações inacreditáveis (como por exemplo, num país faminto os produtores de grãos queimarem a produção por não considerarem os preços ofertados atraentes).

A evolução do capitalismo, além disso, gerava um outro problema. Devido à concorrência, onde os mais fracos eram eliminados do processo produtivo pelos mais fortes, dava-se uma assustadora acumulação de capital em poucas mãos (concentração e centralização do capital). Quanto mais o capitalismo avançava menos gente era proprietária, mais estreitava número dos poderosos, menos sobrava aos demais. Para Marx a convergência de riqueza e de poder sob controle da classe burguesa provocava, num outro polo social, o aumento da miséria da população e a proletarização dos indivíduos (proletário para Marx era o trabalhador, aquele que não tinha nada a não ser a sua força de trabalho, a qual alugava ao capitalista em troca de um salário), produzindo cada vez mais um setor que lutaria pela sua derrubada.

Para o futuro, a lógica de Marx conclui-se por uma acelerada, crescente e contínua incompatibilização dos fundamentos do sistema, o que pôde ter induzido a previsão errônea de um futuro “colapso do capitalismo”. A aceleração da riqueza e da miséria, simultâneas, - duas faces da mesma moeda - levariam a uma aguda luta de classes, resultando que, o capitalismo devastado seria superado por um outro sistema produtivo, mais justo e mais igualitário, à medida que seria sucedido por um sistema socialista. O capitalismo estava condenado pela História porque trazia em si mesmo o germe da sua destruição.

O processo de superação do capitalismo, evidentemente, não se faria sem uma intensa batalha na qual os capitalistas e seus aliados sociais tentariam evitar o seu fim. A consequência lógica disso seria uma revolução político-social que implantaria, através da Ditadura do Proletariado, o modo de produção socialista, no qual a propriedade privada dos meios de produção seria abolida, numa ação desse novo Estado, substituindo-a pelo controle, planejamento, gestão e apropriação coletiva da produção.

Entretanto, esta visão terminal do capitalismo começou a ser revisada no final do século 19, e começos do século 20, pelos chamados Revisionistas, isto é, seguidores de Marx que acreditavam ser preciso fazer “alterações” na teoria porque a realidade não confirmava suas previsões (prognóstico), e ao longo do tempo várias e várias novas matizes - de origens distintas, mas com mesmas características - surgiram reivindicando a suposta necessidade de revisar o mestre.

2- Controvérsia sobre a crise

Sem dúvida, o marxismo sistematizou-se e consolidou-se através da análise da realidade e da crítica aos produtos teóricos de outras correntes epistemológicas e políticas. De tal modo que o acervo das obras marxistas principais constituiu-se ao sabor e como resultado de uma incessante polêmica no terreno da luta teórica. Mas, convém lembrar, o debate não se limitou apenas ao choque entre correntes de pensamento antagônicas. Ele se verificou no interior do próprio marxismo, como luta de opiniões no esforço coletivo de interpretação e transformação da realidade. Esse esforço, só é possível enquanto perdurar nas fileiras marxistas uma rigorosa coerência com as categorias básicas do materialismo dialético [5].

No entanto, o crescente, e já longo, processo de dogmatização do marxismo vem obstruindo seriamente a sua evolução enquanto ciência. A cedência ao dogmatismo sedimentou a crença de que o conjunto das obras de Marx, Engels, Lênin, ou mesmo Stálin e depois Mao, ou Trotski, tinham acumulado um máximo de conhecimento possível, a propósito tanto do método científico quanto da realidade capitalista e da revolução socialista. De maneira que a epistemologia marxista foi sendo encarcerada nos marcos de um sistema fechado, ao estilo metafísico, povoado de verdades eternas e absolutas.

O primeiro resultado foi o desabrochar de um desprezo pelo emprego dinâmico do método materialista dialético como ferramenta apropriada à análise da realidade e a sua substituição por uma prática “teórica” limitada às repetições mecânicas e estéreis das verdades descobertas a seu tempo pelos clássicos. Levados às últimas consequências, o dogmatismo provocou toda a gama de distorções que atrofiaram o conteúdo científico e revolucionário do marxismo. A concepção do marxismo como sistema fechado, esgotado pelos clássicos, reservava a cada nova geração de teóricos a função menor de meros propagandistas, quando não de vulgarizadores.

A grande maioria das tentativas de novas contribuições à luz do marxismo passaram a ser encaradas aprioristicamente como manifestações revisionistas. Por outro lado, a absolutização da contribuição dos clássicos produziu um desinteresse pela continuidade da polêmica com as novas correntes do pensamento burguês e pequeno-burguês surgidas no período pós-leninista, como o keynesianismo, o schumpeterianismo, o neoricadianismo e o novo classicismo liberal. O dogmatismo, a propósito de defender a pureza do marxismo, afastou-o da luta ideológica e do extraordinário desenvolvimento científico dos últimos sessenta anos. A polêmica, quando existia, era remetida basicamente aos clássicos, ainda que se tratasse de questões inteiramente novas.

A subordinação subserviente do marxismo internacional a um centro dirigente da revolução mundial indevidamente transformado numa entidade infalível e incontestável, influi profundamente no processo de dogmatização do marxismo. Primeiro porque a submissão a um centro dirigente deificado vibrava um golpe mortal sobre o espírito crítico na órbita do próprio marxismo, ou ainda sentido como manifestação pequeno-burguesa.

Assim sendo, as sucessivas gerações tanto pós-engelsianas como posteriormente as pós-leninistas, alienado sua própria consciência crítica à fé na infalibilidade do centro dirigente, foram formadas (ou deformadas) na exaltação de um praticismo combativo mas desorientado, entorpecido pelas certezas grandiloquente e triunfalista.

Por seu turno, o praticismo provocou uma verdadeira subversão entre as categorias do materialismo dialético. Foi assim que a ciência acabou subordinada aos interesses políticos imediatos, de tal modo que se comprometeu seriamente a ação recíproca dinâmica que a prática política e a atividade científica exercem uma sobre a outra: a primeira fornecendo subsídios em forma de questões, objetos de pesquisa, estímulos concretos; a segunda respondendo com a descoberta das leis do desenvolvimento histórico, com a interpretação da realidade em todos os seus níveis, com a constatação das novas tendências na evolução do mundo real, com a sistematização da prática em geral, etc.

A resposta de Lênin aos revisionista de sua época aponta num sentido oposto. Além de que o revisionismo em voga atualmente apenas há muito pouco tempo fala em “inovação”. Durante várias décadas ele se apresentou como o fiel depositário da herança leninista. Na verdade, o combate ao revisionismo e a luta de classes em geral exigem imperiosamente uma renovação, ou seja, uma constante atualização do marxismo diante das peculiaridades de cada período histórico. E as razões são simples. Historicamente, os surtos revisionistas não são produtos de uma subjetividade arbitrária. Ao contrário. Esses surtos verificam-se no âmago do movimento operário, e representam reflexos distorcidos, ao nível teórico e ideológico, de novas questões postas por modificações que se operam na realidade.

Após a morte de Engels, ao tempo de Lênin e dos primeiros revisionistas, essas questões brotavam da mudança da realidade mundial com o ingresso do capitalismo em sua fase imperialista. Em nossa época, novas questões da realidade mundial, como no pós-guerra a expansão do imperialismo e o seu ingresso em novo ciclo de depressão, a degenerescência do projeto socialista na URSS e dos antigos partidos da III Internacional, a inegável e persistente influência da socialdemocracia no seio das massas operárias (sobretudo nos principais centros imperialistas) embora com grande desgaste, todas essas questões permanecem ainda precariamente sistematizadas sob uma ótica marxista. 

Por outro lado, essa sistematização exigirá um tal fôlego, uma tal dimensão teórica, que ela só poderá realizar-se no contexto de um marxismo comprometido com a sua autorrenovação. Isto é, de um marxismo que, seguindo sua tradição mais autêntica, decida-se a enfrentar concretamente, sem dogmas e tabus, as questões candentes de nossa época. Por isso mesmo, uma tal resposta dinamizadora terá de passar, necessariamente, contundentemente, pela mais plena superação do dogmatismo, esse sim, outra forma de revisionismo transfigurada.

As mudanças radicais de orientação ocorridas nos PCs da Europa Ocidental iniciados quando ainda existia a URSS e os regimes socialistas no Leste Europeu, em fins da década de 1960 e início da década de 1970, e incrementadas depois de seu fim, colocaram certas vertentes marxistas na condição de aliados da democracia liberal burguesa e do bloco imperialista. Com efeito, a conduta delas nas questões política e político-econômica vem sendo sistematicamente a oposição a quem quer que combata a política da burguesia europeia ocidental. Trabalham pelo fortalecimento das posições do imperialismo europeu ocidental e pregam a conciliação de classe no âmbito dessas potências. Estabelece variadas formas de relacionamento com o capital e procurar diminuir as restrições à acumulação.

Não é difícil perceber a estreita conexão que existe entre essa prática e a chamada “teoria da regulação”. Entretanto, indo além dessa percepção, o presente trabalho tem intenção de penetrar na real natureza dessa teoria e desvendou o seu caráter revisionista. Facilitando, assim, a compreensão de que a conduta política-econômica dos PCs convertidos e da socialdemocracia européia ocidental é a expressão de uma linha estratégica contrária aos interesses históricos da classe trabalhadora e de seus aliados oprimidos e explorados, como de uma violação a teoria marxista, às base ontológicas dessa teoria.

O revisionismo encarna os sentimentos burgueses no interior do marxismo diante da crise do capitalismo que assim assume a forma de social-reformismo, isto é, mantendo a fachada socialista, serve de esteio às pretensões da burguesia. Assim, é que, em suas primeiras manifestações, o revisionismo germinou durante uma fase crítica do capitalismo internacional e a partir de uma capitulação da “aristocracia operária” e de setores da pequena-burguesia à ideologia burguesa. Esse fenômeno, que parecia enterrado com a II Internacional, reproduz-se nos anos de 1970 na transfiguração dos principais partidos comunistas que rompem abertamente com a sua vinculação ao movimento comunista internacional, ao Leninismo e à defesa da implantação da ditadura do proletariado, dando origem à corrente Eurocomunista, e posteriormente a Escola da Regulação.

Sendo a teoria da regulação, como é, uma variante do socialrreformismo, a crítica a essa teoria assume necessariamente a condição de uma crítica ao socialrreformista como um todo, e ao revisionismo contemporâneo, em particular. 

Com efeito, um dos derivados do agravamento da crise do capitalismo e das alterações políticas que vêm ocorrendo no país e no mundo desde 1974 foi o crescimento da influência social-reformista, nos seus diversos matizes. Um crescimento tal que permite afirmar que a garantia de uma evolução da situação política atual num sentido favorável aos trabalhadores e da solução a grave e crônica crise por que perpassa o capitalismo passa necessariamente pelo aprofundamento da crítica ao social-reformismo.

Além disso, atualmente, certos segmentos do reformismo e social-reformismo, de expressão antiga [6], procuram ajustar-se às peculiaridades do momento e apresentam uma formulação cujo parentesco e semelhança com a análise e a proposta regulacionista salta aos olhos. Desde que a crise econômica se precipitou, a partir da metade da década de 1970, observa-se que a plataforma reformista deixou de representar apenas uma receita específica de correntes representativas da pequena e média burguesia e da burocracia operária e estatal, para se incorporar também ao pensamento político de alguns setores do grande capital. 

Numa época marcada, de um lado, pelo ascenso do movimento operário [7] e, de outro, pela dificuldade de emprego, pela reação, da diminuição político-institucional da sua capacidade de organização (mudança na legislação sindical ou desregulamentação do mercado de trabalho) ou até de métodos puramente repressivos para conter esse movimento (criminalização dos movimentos sociais), além da velha tática de cooptação da lideranças e organizações agora de maneira repaginada, é compreensível essa propensão de parte da grande burguesia a ver no reformismo o ingrediente ideológico mais adequado à defesa do capitalismo e à preservação da hegemonia do capital monopolista sobre o conjunto da sociedade brasileira, tal como acontece na Europa Ocidental.

Esse fenômeno favorece a caracterização que este trabalho apresenta sobre a teoria da regulação enquanto “expressão ideológica de certas frações da burguesia”, fato que fica mais evidente quanto se observa que vários ideólogos reformistas da grande burguesia brasileira apresentam um esquema particularmente semelhante às teses da Escola da Regulação.

Suas teses são como que a readaptação do velho liberalismo às condições de hoje, mas, no contexto da discussão da teoria da regulação, apresenta aspectos interessantes. A defesa de uma política social focalizada e compensatória, a exemplo da implantação de programas de renda-mínima, e um discurso de cooperação entre as classes, como o “aperfeiçoamento” das instituições da democracia burguesa e promoção de uma política exterior de cooperação e interdependência maior entre as nações.

Caracteriza-se assim a teoria da regulação, primeiro como uma estratégia de conciliação de classe, segundo, como uma estratégia de luta das potências imperialista da Europa contra excessos da superpotência Estados Unidos, terceiro, como uma estratégia de luta contra convulsões sociais resultantes de crise econômicas ou dos ataques a rede de proteção social, quarto, como uma resposta de gerir o sistema econômico a fim de evitar o agravamento da crise econômica crônica por que vive às potências imperialista iniciada nos anos de 1970 ou corrigir os seus fatores geradores, na hipótese de reconstituir a base semelhante da época anterior (os Anos Gloriosos do após Guerra), e quinto último, como expressão ideológica da burocracia estatal e sindical e de certas frações das burguesias dos países europeus ocidentais e dos dependentes que, experimentam um determinado nível de contradições (contudo não-antagônicas) com o capital de operação mundial e o capital financeiro (principais defensores das políticas neoliberais).

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