terça-feira, 26 de maio de 2020

A Nova Econômica, por Eugueny Preobrajensky

Tradução para o português (brasileiro) do livro publicado originalmente em 1926, ou no original, "Nova econômica: uma tentativa de uma análise teórica da economia soviética" (em russo: 
Novaia ekonomika: Opy t teoreticheskogo analiza sovetskogo khoziaistva), do economista russo e bolchevique Ievgueniy Alekseiévitch Preobrazhensky. 

O livro A Nova Econômica, cujo capítulo II foi publicado pela primeira vez em agosto de 1924, em Moscou, constituiu um dos principais textos do período. Trata-se de uma das mais audaciosas e mais profundas obras de análise teórica da economia soviética do período dos anos de 1920, época pautada pela transição da economia russa ao socialismo.

Vamos ao livro:

A NOVA ECONÔMICA

SUMÁRIO

Prefácio do Autor à Primeira Edição 41
Capítulo Primeiro: Sobre o Método de Análise Teórica
da Economia Soviética 49
O método de economia política de Marx 51
Economia política e tecnologia social 55
Método de estudo do sistema de economia
socialista-mercantil 62
Capítulo Segundo: A Lei da Acumulação Socialista Primitiva 87
Acumulação capitalista primitiva e acumulação
socialista primitiva 89
A luta entre as duas leis 154
Capítulo Terceiro: A Lei do Valor na Economia Soviética 167
Observações gerais 167
A lei do valor e o capitalismo monopolista 170
A lei do valor e a socialização da indústria
num país agrícola 182
A mercadoria, o mercado, o preço 184
A mais-valia, o sobreproduto, o salário 207
A categoria do lucro na economia estatal 222
A categoria da renda 228
O juro. O sistema de crédito 237
 A cooperação 247



PREFÁCIO DO AUTOR À PRIMEIRA EDIÇÃO

A obra empreendida pelo autor sobre o estudo teórico do sistema econômico soviético, da qual submetemos aqui, à atenção do leitor, a parte inicial, deve compreender dois tomos. O presente vo­lume constitui a primeira parte (teórica) do primeiro tomo. A segunda parte (histórica) deste tomo será consagrada a uma breve apreciação geral das idéias socialistas e comunistas sobre o socialis­mo. Dois capítulos do presente livro, o segundo e o terceiro, já foram impressos no Mensageiro da Academia Soviética. Trata-se da mesma revista que publicou minha resposta ao Camarada Bukarine, colocada em anexo neste livro. Pela primeira vez aparecem o primeiro capítulo (metodológico) assim como a resposta a alguns de meus críticos.
O primeiro capítulo e a metade do segundo capítulo da segunda parte (histórica) do primeiro tomo já foram publicados. Toda a segunda parte começará a ser impressa no outono do presente ano de 1926, se as circunstâncias o permitirem.
O segundo tomo será consagrado à análise concreta da economia soviética, quer dizer, da indústria, da agricultura, do sistema de trocas e de crédito, da política econômica do governo soviético, assim como ao estudo dos inícios da cultura socialista. Proximamente, publicaremos o importante capítulo primeiro do segundo tomo, que examinará o problema do equilíbrio econômico no capitalismo concretamente existente e na economia da URSS.
O capítulo que trata da acumulação socialista é reproduzido aqui com poucas modificações, nas quais tive em conta as objeções, de importância secundária, que considerei justificadas. Além disso, excluí da exposição o termo "exploração" quando este diz respeito ao processo de alienação de uma parte do sobreproduto da economia privada em proveito dos fundos da acumulação socialista. Pro­cedi, depois, à transferência de certas passagens do segundo para o terceiro capítulo com vistas a uma melhor coerência na exposição.
No que concerne às objeções de fundo, considero-as injustificadas, assim como os ataques políticos encarniçados aos quais foi submetido o segundo capítulo do livro, consagrado à lei da acumulação socialista primitiva. Sobre isso, tirando certas conclusões da polêmica, quero dizer o seguinte:
As objeções de caráter metodológico resumiam-se, em primeiro lugar, ao fato de que, num estudo da economia soviética, seria impossível fazer abstração da política econômica do governo soviético, não obstante devêssemos abstraí-la numa determinada etapa de nosso estudo. Esta primeira objeção, se é necessário insistir sobre o assunto, ameaça, com uma lógica inelutável e inflexível, de lançar todos os meus opositores nas posições de Stammler e de sua escola e também nas posições da sociologia subjetiva de Mikhailovsky, de Karieev, etc. Aliás, esta posição não permite, no domínio da teoria econômica, de sair do pântano da economia política vulgar, embora ela apareça numa publicação “soviética”; com isso, ela impede que se dê um passo adiante no estudo científico de nossa economia.
A segunda objeção metodológica foi dirigida contra a tese desenvolvida no presente livro, segundo a qual o equilíbrio econômico na economia soviética se estabelece com base na luta entre duas leis antagônicas - a lei do valor e a lei da acumulação socialista primitiva-o que implica negar que exista um único regulador do conjunto do sistema1.
Os que levantaram objeções contra o modo como a questão foi colocada, tiveram que, em primeiro lugar, revelar sua concepção naturalista e a-histórica da lei do valor, confundindo a forma de regulação dos processos econômicos num regime de produção mercantil com o papel regulador que desempenham na economia social os gastos com mão-de-obra em geral, e o papel que estes gastos desempenharam e desempenharão em qualquer sistema de produção social. Em segundo lugar, meus opositores, ao afirmar a lei do valor como regulador único do sistema econômico da URSS, foram obrigados a negar inteiramente que nossa economia estatal é de tipo socialista (por mais primitivo que possa ser este tipo) e negar que exista uma luta, na economia soviética, entre as tendências da economia mercantil e as tendências do desenvolvimento socialista, luta que é óbvia para todo mundo. Com isso, meus opositores foram obrigados a se aproximar da concepção menchevique que entende a economia soviética como produto historicamente tardio da econo­mia capitalista.
A objeção fundamental à lei da acumulação socialista primitiva (que formulei e que somente se encontra mais desenvolvida na presente obra) reduz-se à seguinte argumentação: "Sim - dizem meus opositores - a acumulação socialista existe entre nós, mas não existe nenhuma lei da acumulação socialista primitiva ou, pelo menos, sua existência não está provada". Em resumo: a luta de um princípio socialista de planificação contra o mercado existe mas não há luta da lei do valor contra uma lei da acumulação socialista primitiva. Toda a profundidade irrefutável desta objeção" pode ser compreendida perfeitamente, sem palavras supérfluas, se a expomos como o fez um de meus leitores numa conversa pessoal comigo: “Por que falar de uma lei da acumulação socialista? O governo soviético, dentro de certos limites possíveis, acumulará quanto decidir acumular". Em tal interpretação, a lei da acumulação socialista se reduz à lei do Sovnarkom2  sobre a acumulação socialista. Estou persuadido que não existe nenhuma diferença de princípio entre ;primeira e a segunda argumentação. Admitir a existência de uma regulação objetiva em todos os processos e tendências da economia mercantil, objetividade que se relaciona à lei do valor e negar esta regulação objetiva para o processo de reprodução ampliada socia­lista - que se desenvolve apesar da lei do valor e em luta contra ela, ditando ao Estado soviético, por uma pressão coercitiva externa, proporções determinadas de acumulação para cada ano econômico - significa excluir este último processo da esfera de ação da lei de causalidade e abandonar o campo do determinismo, quer dizer, o campo de toda ciência em geral. E, se as coisas não forem assim tão trágicas, então meus opositores devem dizer com toda franqueza e honestidade: "Há uma lei mas nós não sabemos nada sobre ela". Tal resposta, é verdade, seria uma pobre recomendação para meus críticos em matéria de compreensão das leis do desenvolvimento da economia soviética. Porém, ao menos neste caso, eles não impedi­riam os outros de trabalhar na pesquisa teórica dessas leis. É possível apresentar como teoria uma soma determinada de conhecimentos mas não se pode criar uma teoria do não-conhecimento. Não se pode, com uma auto-suficiência limitada ou, se preferirmos, com auto-suficiência ilimitada, recitar frases gerais sobre a NEP, sobre a luta entre dois princípios, etc, fora dos limites da análise de nossa economia. O tipo do economista soviético vulgar que, com algumas exceções, aparece até agora como o herói do dia em nossa imprensa econômica, periódica e não periódica, não pode geralmente ser considerado como o tipo normal do economista soviético, marxista e bolchevique.
A outra objeção concerne às trocas não-equivalentes com a economia privada. Devo reconhecer abertamente ao leitor que não sei exatamente aonde param, nesta objeção, as considerações de ordem política, de propaganda e, enfim, todos os mal-entendidos, e onde começa a ignorância teórica mais vulgar.
Em regime capitalista, as trocas não-equivalentes entre a grande e a pequena produção - notadamente entre a indústria capitalista e a agricultura camponesa, forçada, em certa medida, a adaptar-se, no que toca aos preços, às relações de valor da grande agricultura capitalista, para só falarmos das causas e das relações puramente econômicas - apareciam como a expressão pura e simples de uma produtividade mais elevada da grande produção em relação à pequena. Entre nós, as trocas não-equivalentes estão atualmente relacionadas antes de tudo ao atraso histórico de nossa indústria, a sua baixa produtividade de trabalho, comparada à dos países capitalis­tas avançados, aos custos de fabricação mais elevados dos produtos e, finalmente, à alienação - histórica e economicamente inevitável, fundada na política de preços - de uma parte do sobreproduto da economia privada em proveito do fundo de acumulação socialista.
Conseqüentemente, enquanto não tivermos alcançado tecnicamente o capitalismo e terminado o período da acumulação socialista primitiva, existirá inevitavelmente trocas não-equivalentes com o campo, tanto pelas razões que condicionam as trocas não-equivalentes na economia mundial - economia que determina, em condições normais, os limites de preços de nossos produtos agrícolas - como por causas especificamente ligadas às condições de existência do sistema econômico soviético. Quando essas últimas causas desaparecerem, as primeiras subsistirão. Isto em primeiro lugar. Em segundo lugar, é precisamente o desenvolvimento da grande e da média agricultura cooperativa e socialista, assim como a proporção das trocas entre esta e a indústria estatal que imporão trocas não-equivalentes à agricultura não organizada em cooperativas, isto é, à maior parte da agricultura durante longo tempo. Isto ocorre não em conseqüência do desenvolvimento insuficiente e do atraso da indústria socialista mas, pelo contrário, graças ao desenvolvimento do setor cooperativo e socialista da agricultura e ao aumento da sua produtividade. Em tal situação, a não-equivalência das tro­cas não será senão a expressão pura e simples da posição desvantajosa da pequena produção com relação à grande produção. E, inversamente, trocas equivalentes» em tais condições, somente signi­ficariam uma taxação sobre o socialismo em proveito da pequena produção, uma taxação sobre a máquina em proveito do alqueive, do arado e do asiatismo econômico. É isto que propõem meus adversários? E que propõem eles de modo geral, fora das frases estéreis no estilo de um novo populismo?3
Como conclusão, quero dizer duas palavras de importância prática para fins de um estudo sério da economia soviética. Os dirigentes das empresas capitalistas, tal como os governos capitalistas, podem dar-se ao luxo de ignorar a teoria econômica. A lei do valor, mais seguramente do que eles próprios, do que seus diretores, seus professores e seus parlamentos, cumpre a função de regulador da economia e corrige todos seus erros. Entre nós, onde existe a economia estatal centralizada do proletariado, e onde a lei do valor está limitada e parcialmente substituída pelo princípio do planejamento. a previsão desempenha um papel absolutamente excepcional em comparação com a economia capitalista e, os erros de previsão po­dem ter, em razão da administração centralizada da economia, conseqüências mais graves do que os erros dos dirigentes das empresas privadas onde as tendências numa dada direção são freqüentemente contrabalanceadas, em conseqüência da lei dos grandes números, por influências opostas. Mas, se governar e dirigir corretamente è prever, prever é esclarecer, com as luzes da análise teórica, o campo dos fenômenos onde nascem as causas cujas conseqüências, precisamente, desejamos conhecer com antecedência. Quando a intuição de um gênio e de um economista talentoso como foi Lênin não nos pode ajudar sob a forma de influência pessoal, a teoria aparece como o único meio seguro, e o mais democrático, que assegura a todos os trabalhadores uma previsão científica no que diz respeito à direção planificada. Daí o papel propriamente produtivo de uma adequada teoria cientifica da economia soviética; dai também este fato, ainda insuficientemente reconhecido entre nós de que a socialização da indústria, por sua própria essência, implica, em relação à direção da economia, uma transferência da responsabilidade em proveito da ciência, numa escala até então desconhecida na economia capitalista. A crescente importância do Gosplan4 é uma prova direta deste processo.
Mas uma teoria da economia soviética só pode resultar de um trabalho coletivo. Assim, nosso objetivo será amplamente atingido se o presente ensaio estimular outros economistas a se dedicarem ao mesmo objeto e se, a partir de esforços comuns, consigamos progredir nesta tarefa que o desenvolvimento de nossa economia socialista requer insistemente.

p.49

Capítulo Primeiro

SOBRE O MÉTODO DE ANÁLISE TEÓRICA DA ECONOMIA SOVIÉTICA

Por que discutir a questão do método de estudo da economia soviética? Não é evidente que devemos estudar nossa economia de acordo com o método marxista?
Esta questão deve ser colocada pelas seguintes razões. É claro que não pode haver a menor dúvida de que, para o estudo de nossa economia, podemos e devemos nos ater, e o faremos, aos princípios gerais do método marxista, na medida em que se trata do método do materialismo dialético em geral e do método sociológico universal de Marx, em particular. Porém, na medida em que se trata do método utilizado por Marx na sua economia política, quer dizer, do método de estudo das relações de produção do capitalismo puro, somos levados a colocar um problema metodológico, porque a própria matéria de estudo muda de modo essencial. Esta matéria muda quando se trata do estudo não somente das leis do desenvolvimento capitalista mas também das leis da decadência capitalista e do desaparecimento das relações capitalistas de produção; e muda, finalmente, quando se trata da análise das leis de um novo sistema econômico que substitui o capitalismo, com todas as marcas de um tipo misto e transitório de economia. No O Capital, Marx estudou o capitalismo clássico. Nós devemos estudar a experiência de um sistema concreto de economia socialista-mercantil, que certamente não é muito clássica, talvez, inteiramente não clássica mas que é viva, real e historicamente a primeira. Haveria apenas um caso em que nenhum problema de método existiria, ou seja, se se partíssemos da hipótese de que o método de estudo empregado por Marx no O Capital é apenas uma aplicação do método sociológico geral do materialismo histórico, e se encontrássemos no O Capital um emprego do método materialista histórico que fosse aplicável, no seu conjunto e na sua íntegra, sem a menor modificação e sem a me­nor variação, ao estudo de qualquer sistema econômico, tanto ante­rior como posterior à economia mercantil. Porém, tal ponto de vis­ta supõe, por sua vez, como premissa lógica implícita, que a econo­mia política teórica seja não somente uma ciência que estuda um sistema historicamente determinado de relações de produção - a sa­ber, o sistema mercantil e mercantil-capitalista das relações de produção - mas também uma ciência das relações de produção dos homens em geral. Sabemos que existe entre os marxistas um grupo pouco numeroso de partidários desse ponto de vista. Isto aparece especialmente no relatório de I. I. Skvortsov para a Academia Comunista: "Do Objeto e do Método da Economia Política". Entretanto, é necessário considerar como fato absolutamente incontestável, e demonstrado uma vez mais pelos debates sobre o relatório do Camarada Skvortsov, que tal opinião sobre economia política contradiz integralmente tudo o que o próprio Marx escreveu sobre o objeto e o método da economia política. Esta opinião contradiz toda a teoria da economia capitalista exposta no O Capital e em outras obras de Marx. Ela só encontra apoio - se devemos falar nos fundadores do comunismo-científico - em duas ou três formulações imprecisas de Friedrich Engels.
Porém, se consideramos como estabelecido que a economia política de Marx é a ciência dos sistemas mercantil e mercantil-capitalista de economia, chegaremos mais perto do problema de saber precisamente se existe ou não no método utilizado por Marx no O Capital certos elementos específicos, ligados às particularidades da própria matéria do estudo científico. Se se revela que estes ele­mentos existem, a questão se coloca, então, de saber quais são os que se conservam e os que desaparecem, ou necessitam de modifica­ção, quando da passagem da análise do sistema econômico que substitui historicamente o capitalismo, sem falar da necessidade de mudanças nas análises do próprio capitalismo no estágio monopolista e durante o período de seu declínio,
É inteiramente evidente que não podemos responder a todas estas questões que acabam de ser colocadas sem nos determos bre­vemente - para o aspecto que nos interessa - no método da econo­mia política de Marx. Após esta incursão metodológica será mais fácil deslindar também o problema do método de análise teórica da economia soviética.

O Método de Economia Política de Marx

Para compreender o método empregado por Marx no O Capital, dispomos, de um lado, de uma série de formulações metodoló­gicas diretas do próprio Marx, dispersas em suas obras, e de outro lado, de estudos concretos em que a aplicação deste método foi demonstrada na prática.
Tratando do problema metodológico, Marx, por diversas vezes, tentou mostrar como a aplicação do método do materialismo dialético muda de acordo com o objeto específico de estudo. Marx indicou, por exemplo, que o estudo dos fenômenos da Natureza, quando é impossível observar o fenômeno na sua pureza, pode ser feito graças à organização de experiências que assegurem esta ob­servação. Ao contrário, "na análise das formas econômicas, quando não se pode utilizar nem microscópios nem reagentes químicos, ambos devem ser substituídos pela força da abstração” (Prefácio de O Capital). Marx formula aqui uma primeira grande subdivisão da matéria de estudo que focalizamos através do método dialético, isto é, a distinção entre a Natureza e a sociedade humana. No que concerne aos processos sociais, impossíveis de serem repetidos ou re­produzidos artificialmente, Marx julgava necessário substituir os resultados passíveis da experimentação pela força de abstração. O método do materialismo histórico é essencialmente um método de pesquisa altamente abstrato pois, no complexo indivisível do organismo social - onde as relações diretas do processo de produção se misturam muito estreitamente ao que se convencionou chamar, na terminologia marxista, de "superestrutura" - o marxismo começa a análise a partir do centro evolutivo de todas as modificações e de todo movimento, quer dizer, a partir da economia, separando-a de todo o resto, num momento determinado do estudo, pela força da abstração.
Mas as diferenças de aplicação do método não se limitam somente a isso. Quando a infra-estrutura é abstraída da superestrutura, quando nos ocupamos do estudo desta infra-estrutura (no caso particular, a economia mercantil-capitalista), a própria matéria de estudo, as particularidades específicas das leis do sistema propriamente capitalista, exigem um novo esforço de abstração. O fato é que o padrão de regularidade do modo de produção capitalista pos­sui seus aspectos particulares. A fim de apreender a lei dialética fundamental do desenvolvimento da economia capitalista e de seu equilíbrio em geral, cumpre, em primeiro lugar, elevar-se acima de todos os fenômenos do capitalismo concreto, que impedem a compreensão desta forma e de seu movimento no que ele tem de mais puro. A este respeito, Marx escreveu o seguinte: "Em teoria, supõe-se que as leis do mundo capitalista de produção desenvolvem-se no seu aspecto mais puro. Na realidade, sempre nos encontramos em presença de uma certa aproximação; esta aproximação é tanto mais exata quanto o modo capitalista de produção é mais desenvolvido e menos alterado e complicado pelas sobrevivências das situações econômicas anteriores"5.
Conseqüentemente, para compreender as leis do capitalismo é necessário construir um conceito de capitalismo puro, como Marx faz no O Capital. Mas não se trata apenas disso. Até aqui, com rela­ção à utilização da abstração, não há grande diferença entre o método sociológico geral de Marx e o método de sua economia política. As diferenças manifestam-se justamente quando a análise deste capitalismo puro revela as particularidades desta estrutura econômica as quais exigem um método analítico-abstrato adequado para estudá-las. O capitalismo é um sistema econômico que se apresenta, de um lado, como um organismo indivisível, integral, com conexões mútuas e uma dependência mútua de todas suas partes e, de outro equilíbrio é atingido de maneira puramente espontânea e onde, ao mesmo tempo e graças a tudo isso, as relações entre os homens tornam-se coisas, são reificadas. A essência das coisas e a forma de sua manifestação não coincidem. As leis imanentes do desenvolvimento e do equilíbrio do sistema se impõem através de uma massa de coi­sas fortuitas e de tendências contrárias, só podendo ser apreendidas mediante uma profunda análise crítica - e abstrata - da lei fundamental do sistema e das formas de sua manifestação, isto é, pelo estabelecimento da lei do valor, da lei da auto-regulação do mecanis­mo capitalista. Quanto mais pura for nossa representação do capi­talismo, mais nitidamente nos aparecem todas as leis imanentes de seu desenvolvimento e de seu equilíbrio, e mais óbvias nos parecem, também, as particularidades do próprio tipo de regulação da econo­mia capitalista e o sentido concreto do termo "lei" na sua aplicação a esta forma. "Geralmente, no regime de produção capitalista, toda lei geral só se realiza como tendência dominante, de modo muito confuso e aproximado, como uma média de oscilações incessantes, que não pode jamais ser estabelecida de modo preciso"6. É muito importante observar que Marx não faia aqui de um caráter confuso e aproximativo da manifestação de uma lei qualquer na sua aplicação ao capitalismo concreto, onde tudo isto pode ser suscitado pelas influências modificadoras de outras formas econômicas, como por exemplo as sobrevivências do feudalismo. Não. Marx fala justamente do capitalismo puro, do capitalismo em geral, cuja análise requer um segundo grau de abstração. É possível imaginar o capitalismo num estágio em que eleja tenha conquistado toda a economia mundial e no qual, no que diz respeito ao sistema de produção, ape­nas existam duas classes, os capitalistas e os operários, e compreen­der simultaneamente as leis do capitalismo segundo a economia vulgar, quer dizer, fazendo passar por ciência a simples descrição superficial, retirada das relações reificadas da produção mercantil. É justamente a análise do capitalismo puro que revela também, sob sua forma mais pura, este traço específico da regulação na econo­mia mercantil, que é próprio apenas de um complexo econômico não organizado e ao mesmo tempo indivisível e coerente. Daí tam­bém o método particular de abordagem aplicado ao estudo de uma economia deste tipo. Somente através do método da dialética analítico-abstrata, - e somente a partir do conceito de lei do valor - é possível deslindar todo este conjunto complicado e extremamente confuso para o pesquisador. No que concerne às formas econômi­cas em que a lei do valor não se exerce ainda, tal como nas formas econômicas em que a lei do valor não mais se exercerá, este segundo grau de abstração e esta complicação dos procedimentos metodológicos, característicos da economia política de Marx e do O Capital, não são necessários. Para esclarecer esta idéia, citarei um exemplo. A lei do afastamento entre o preço e o valor - que é apenas uma forma sob a qual se manifesta a lei do valor - é inerente ao sistema capitalista enquanto tal. Ela decorre de toda a estrutura do capitalismo e do método que lhe é característico de estabelecer o equilíbrio em todo o sistema de produção, de trocas e de distribuição. "Isto [quer dizer a não coincidência quantitativa entre o preço e a grandeza do valor. E.P.] não é um defeito; ao contrário, adapta o preço ao modo de produção cujas leis inerentes se impõem somente como uma média das irregularidades aparentemente caóticas que se compensam mutualmente''7. Na presença de tais condições, é somente graças à descoberta da lei valor, como lei central do sistema mercantil-capitalista, que se chega a apreender, através das "irregularidades aparentemente caóticas", o funcionamento de todo o sistema e seu movimento para, depois, deduzir logicamente da ação da lei do valor todas as categorias da economia política, enquanto descrições científicas dessas relações de produção reais do capitalismo, que na vida real se formam espontaneamente com base na ação desta lei.
Com isso, compreende-se também, de modo cabal, por que toda esta construção tem a aparência, na sua exposição, de uma construção a priori, se bem que o próprio Marx a ela tenha chegado pelo estudo crítico penetrante de um enorme conjunto de fatos. Foi somente graças ao estudo dos fatos concretos, combinados com o trabalho de análise e de abstração do pensamento, que Marx conseguiu elaborar sua teoria do capitalismo abstrato, onde o capitalismo real, despojado de tudo o que é acidental e não característico desta forma econômica, vive e se movimenta, iluminado com todas as cores do arco-íris; por sua vez, toda esta construção rebate um feixe de luz espantosamente brilhante sobre as relações capitalistas do mundo real.

Economia Política e Tecnologia Social

A economia política é a ciência que esclarece as leis do desen­volvimento, do equilíbrio e, em parte, do declínio dos modos de produção mercantil e mercantil-capitalista enquanto modos de pro­dução não organizados e não planificados. A antítese da produção mercantil é a economia socialista planificada que a substitui historicamente. Mas se, no domínio da realidade econômica, a mercado­ria do modo de produção capitalista é substituída, na economia planificada, pelo produto; se o valor é substituído pela medida do tempo de trabalho; se o mercado (enquanto domínio de manifesta­ção da lei do valor) é substituído pela contabilidade da economia planificada; se a mais-valia é substituída pelo sobreproduto, do mesmo modo, no domínio da ciência, a economia política é substi­tuída pela tecnologia social, isto é, pela ciência da produção social organizada.
"A economia política não é tecnologia social", diz Marx na Introdução à Crítica da Economia Política, sublinhando com isso que a economia política tem como missão direta e imediata a análise das relações, não do Homem com a Natureza, mas dos homens en­tre si no processo de produção (tais como essas relações se estabele­cem na economia mercantil e na economia mercantil-capitalista). É por isso que a economia política não é uma tecnologia social. Ela estuda apenas as relações de produção de uma forma de economia espontânea e não organizada com os tipos de regulação que são inerentes somente a esta forma, isto é, com os tipos de regulação tais como eles se manifestam com base na ação da lei do valor. E estas regulações se manifestam aqui de tal maneira que o resultado da ação da lei do valor não coincide absolutamente com os objetivos, os planos, os desejos e as esperanças dos agentes da produção na medida em que os seus cálculos se limitam a um domínio econômico muito restrito e na medida em que, em razão da própria essência de todo o sistema, eles nunca podem prever qual o resultado, pelas suas conseqüências objetivas finais no conjunto da economia, de suas ações, esforços, e planos descoordenados. Mesmo o conheci­mento das leis da produção e das trocas capitalistas - leis muito importantes para a compreensão do que acontecerá na produção nes­tas e naquelas condições - não pode eliminar a supremacia das coi­sas sobre os homens quando existem e atuam, no domínio da realidade as relações de produção da economia capitalista. Se todos os capitalistas e comerciantes da economia mundial contemporânea conhecessem perfeitamente O Capital, eles certamente calculariam melhor os seus negócios e talvez cometessem menos erros, mas não poderiam superar, no terreno econômico, as conseqüências que decorrem da falta de organização, do caráter espontâneo, da ausência de previsão dos resultados possíveis e da inexistência de uma distribuição planifícada das forças produtivas. A realidade revela-se mais forte do que o conhecimento. No Anti-Duhring, ridicularizando a tentativa de Dühring de conservar a lei do valor na esfera da distribuição da "sociedade futura", escrevia Engels: ."A troca de trabalho contra trabalho, na base da igualdade de valor na medida em que tal troca tenha algum sentido, isto é, a troca de produtos com igual trabalho social, ou seja, a lei do valor, é precisamente a lei fundamental da produção mercantil e, conseqüentemente, de sua forma superior, quer dizer, da produção capitalista. Esta lei se ma­nifesta na sociedade contemporânea como se manifestam todas as leis econômicas num sistema de produção privado: como uma lei da Natureza, agindo cegamente, situada no mundo das coisas e das relações, independentemente da vontade e da atividade dos produtores" 8.
A questão que se coloca agora é de saber o que muda nessas re­lações no caso de uma sociedade de produção socialista plenamente organizada e planificada. Neste caso, a atividade dos homens esta­ria submetida à necessidade? As relações sociais estariam subordinadas a leis? Evidentemente, sim. Responder a estas questões diferentemente eqüivaleria a repudiar toda a teoria do materialismo dialético e substituí-la por uma concepção do mundo fundada sobre uma repetição da filosofia do livre-arbítrio, se não do livre-arbítrio individual pelo menos coletivo. Se consideramos que a liberdade é a consciência da necessidade, a subordinação a leis no domínio da atividade econômica e social dos homens continuam a existir aqui também. Ela muda somente de forma. A regulação se impõe na economia planificada de modo diferente do que na economia mercantil não-organizada. Mas aqui também existe regulação, subordinação a leis, se bem que, em razão desta diferença de forma, pareça necessário substituir aqui o termo "lei" por outro. Porém, quanto mais a regulação se impõe por meios diferentes, mais o método utilizado para captar esta regulação deve igualmente mudar. O método varia em conseqüência da mudança no objeto de estudo e uma ciência social substitui outra quando se trata do estudo desta realidade modificada.
Examinemos mais concretamente em que se modifica o objeto de estudo e por que a economia política deve ceder lugar a outra ciência. Neste aspecto, encontramos no Anti-Duhring de Engels a seguinte formulação clássica, que ele mesmo e o próprio Marx repetiram mais de uma vez em outras passagens e que, freqüentemente, muitas pessoas compreendem de modo simplista, para não dizer vulgar. Penso na célebre frase referente ao "salto no reino da liberdade".
"Com a propriedade social dos meios de produção, a produção mercantil desaparece e, com isso, a dominação do produto sobre os produtores. A anarquia na produção social é substituída por uma organização consciente e planejada. A luta individual pela existência cessa... O conjunto das condições de vida, o meio que, até então, dominava o homem, passa, enfim, para a seu domínio e controle; os homens, somente agora e pela primeira vez, tornam-se senhores reais e conscientes da Natureza, porque, e na medida em que, se tornam senhores das condições de sua própria organização social. As leis de sua própria atividade social que, até o presente, le­vantavam-se contra os homens enquanto leis da Natureza, estranhas a eles e os dominando, são a partir de agora aplicadas e dominadas pelos homens plenamente conscientes. A própria organização da sociedade, que até então era como estranha e determinada pela Natureza ou pela História, torna-se um ato voluntário dos próprios homens.
As forças objetivas e externas, que até então dominaram a sociedade, passam para o controle dos próprios homens. É somente a partir deste momento que os homens farão eles mesmos sua história com plena consciência; é somente a partir deste momento que as forças sociais, colocadas em movimentos por eles, terão, na sua maior parte e em escala sempre crescente, os resultados desejados pelos homens. É a humanidade passando de um salto do reino da necessidade para o reino da liberdade"9.
Em relação a esta questão, é útil relembrar igualmente o que Marx dizia da liberdade e da necessidade no domínio econômico. "O reino da liberdade só começa, na realidade, quando não existe mais obrigação de trabalho imposto pela miséria ou por fins externos; ele se encontra, pela natureza das coisas, fora da esfera da produção material propriamente dita. Tal como o selvagem, o civilizado deve lutar contra a Natureza para satisfazer as suas necessidades, conservar e reproduzir sua vida em todas as formas sociais e todos os modos de produção possíveis. Quanto mais ele evolui, tanto mais o império da necessidade natural se amplia, assim como as necessidades e com ele as forças produtivas que satisfarão essas necessidades. Neste estado de coisas, a liberdade consiste unicamente nisto: o homem social, os produtores associados, regulam de modo racional suas trocas com a Natureza e as submetem a seu controle coletivo, em lugar de se deixar dominar por elas como uma força cega; e eles realizam essas trocas com o menor esforço possível e nas condições mais dignas e mais de acordo com a natureza humana. Mas este domínio continua o da necessidade. É além dela que co­meça este desenvolvimento das energias humanas que constitui um fim em si mesmo o verdadeiro reino da liberdade, mas que só pode desabrochar sobre a base deste império da necessidade. A redução da jornada de trabalho é sua condição fundamental"10:.
A partir destas formulações de Engels e de Marx, o leitor pode ver quê nenhum deles fala da supressão das "leis da atividade social" dos homens, sé bem que a lei histórica concreta do valor, quer dizer, a lei que determina a atividade dos agentes da produção na sociedade mercantil desorganizada deixa de existir ao mesmo tempo que todo este tipo de produção. E Marx faz outra observação extremamente importante referente ao fato de que, sob o regime socialista, é justamente o aumento das exigências que deve aumentar o papel da necessidade, isto é, no caso particular, o papel da necessidade econômica da satisfação dessas exigências. No socialismo, e depois no comunismo, as leis são adaptadas e são utilizadas pelos homens. Deste ponto de vista, os homens as dominam. Mas não se pode dominar senão o que existe. Dominar a força do vapor, dominar a ação espontânea das leis da Natureza em geral, não significa fazer estas leis desaparecerem. Significa somente dirigir sua ação segundo um curso desejável. Não é preciso dizer que dominar "as leis de sua própria atividade social” significa ao mesmo tempo modificar do modo mais profundo possível a forma de manifestação dessas leis. É nisso que consiste a diferença entre as leis da produção capitalista e as regulações econômico-sociais da economia socialista planificada. O determinismo domina aqui também mas são diferentes as formas da dependência e as formas da causalidade. Isto pode ser esclarecido por um dos mais simples e dos mais típicos exemples através do qual aparece de modo cabal a diferença de estrutura entre o capitalismo e o socialismo, assim como a diferença que daí de­corre no que diz respeito às formas de regulação.
Admitamos que exista num dado país capitalista uma sub-produção de calçados de couro com relação à demanda efetiva. Em primeiro lugar, a desproporção se revela post factum, depois do aumento da demanda. E não poderia ser de outro modo em razão da ausência de uma organização social da produção, da inexistência de uma estimativa do volume de produção e da importância da demanda efetiva.
A sociedade capitalista elabora, é verdade, seus meios paliati­vos de cálculo da demanda futura, mas estes cálculos nada mais fazem do que atenuar as inevitáveis flutuações das crises, não conseguindo eliminá-las, uma vez que o modo de organização das forças produtivas continua sendo o da economia mercantil11. Conseqüentemente, com surpresas agradáveis para uns e desagradáveis para outros, em comparação com o que ocorreria num regime de equilíbrio entre a oferta e a procura, há uma nova e inesperada divi­são da renda nacional. Segue-se um aumento da produção nas em­presas de couros, um fluxo de novos capitais e, se for o caso, de novas instalações. Considerando que a importância do aumento da demanda adicional é tão desconhecida como tinha sido - antes do aviso lançado pelo mercado - a ocorrência de uma subprodução, a produção suplementar pode ultrapassar, e freqüentemente ultrapassa, os limites do aumento da demanda adicional. O período de subprodução cede lugar a um período de superprodução, com a queda consecutiva dos preços, nova redistribuição espontânea da renda nacional e dos capitais entre os diferentes ramos industriais e assim até que se produza uma nova desproporção. O equilíbrio da oferta e da procura é coisa fortuita, sendo a regra a desproporção num sentido ou noutro. É deste modo, através da ação da lei do valor, que a necessidade do equilíbrio entre a produção e a deman­da efetiva se impõe. As leis da atividade social dos homens no domínio da produção opõem-se aos agentes da produção enquanto forças externas a eles próprios, alheias, cegas e fora de controle. Do mesmo-modo que em qualquer sistema, a fim de se chegar a um equilíbrio no domínio da realidade, é necessário um regulador específico do sistema considerado, também - para se compreender todo este mecanismo e as formas de regulação que lhe são próprias - é necessário procedimentos metodológicos específicos.
Examinemos agora como a regulação se impõe num caso aná­logo sob um regime de economia planificada. Admitamos que ocorra um aumento da demanda de calçados numa sociedade socialista. No essencial, as estatísticas da produção socialista terão previsto de antemão, este aumento através dos métodos de cálculos do consumo de massa que serão elaboradas pelo regime. Aqui, o aumento da demanda (acarretado pelo crescimento da população e por outras causas que serão objeto de avaliação) será tomado em consideração quando da elaboração do programa de produção da indústria de calçados com todas as conseqüências daí decorrentes para os outros ramos. Mas o próprio aumento das necessidades de calçados de couro é um fato objetivo, na medida em que este aumento não resulta de uma variação decorrente da influência consciente da própria sociedade visando a substituição de um tipo de calçado por outro, e na medida em que a própria produção não acarreta deliberadamente novas demandas. Os centros reguladores da vida econômica po­dem adaptar-se a este fato objetivo mas não podem eliminá-lo. E a adaptação da produção às necessidades deste ou daquele ramo acarretará uma série de medidas necessárias na distribuição das forças de trabalho nos ramos vizinhos, notadamente em ramos como o da produção de couros que, na medida em que se trata de uma matéria-prima proveniente da pecuária, depende mais do que outros dos fenômenos da Natureza. A dificuldade pode ser parcialmente superada graças à utilização, na distribuição de estoques de reservas de emergência que desempenharão sempre um grande papel na economia planificada. Mas neste caso como em outros, continua a existir a subordinação a leis, enquanto fato externamente contingente. Porém, isto acontece de maneira diferente da que na economia mercantil. A regulação se impõe não por intermédio do mercado; sua presença se faz sentir não post factum mas se manifesta previamente, ante factum, com o conhecimento dos organismos econômicos reguladores da sociedade. Não são os preços de mercado posteriores à produção mas as cifras da contabilidade socialista anteriores à produção que dão o alarme e informam os centros planificadores. Estes informam os centros econômicos dirigentes do aumento de novas demandas e conseqüentemente de novas necessidades às quais é necessário adaptar-se. Esta antecipação do processo regido por leis constitui justamente o primeiro traço característico da pro­dução socialista, da nova produção, traço que a distingue da antiga. Este traço distintivo manifesta-se também no fato de que a dependência mútua das diferentes partes do mecanismo da produção também se faz sentir não de modo espontâneo mas nos ajustamentos das proporções previamente determinadas pelo Gosplan da economia socialista. O controle da sociedade sobre as forças produtivas resulta da previsão das medidas adotadas, de suas conseqüências e premissas necessárias. Nas condições desta adaptação A necessidade econômica, o número de métodos e de possibilidades de alcançar este novo objetivo aumenta extraordinariamente. Com a mesma força de trabalho e os mesmos recursos naturais que existem em regime capitalista, obtêm-se aqui um enorme aumento das pos­sibilidades de manobra econômica. Esta modificação qualitativa da estrutura econômica já possibilita aumentar quantitativamente o resultado obtido.
Entretanto, quanto mais muda a forma de manifestação da ne­cessidade econômica e a forma pela qual a. sociedade organizada reage diante dela na vida diária, mais se modifica também o método de estudo desta necessidade e a adaptação a esta necessidade tanto no que diz respeito ao conhecimento como à ciência. Com o desa­parecimento da lei de valor da realidade econômica desaparece igualmente a velha economia política. Uma nova ciência ocupa agora o seu lugar, a ciência da previsão da necessidade econômica numa economia organizada, a ciência que - no campo da produção ou em outro - visa obter o necessário do modo mais racional. Trata-se de uma ciência inteiramente diferente, de uma tecnologia social, a ciência da produção organizada, do trabalho organizado, a ciência de um sistema de relações de produção em que as regulações da vida econômica manifestam-se sob novas formas, em que não mais há reifícação das relações humanas, onde o fetichismo da mercadoria desaparece com a mercadoria, onde a previsão dos resultados dos atos econômicos e o estudo do que será ocuparão rapidamente um lugar ainda mais importante do que o cálculo de suas conseqüências objetivas, mais importante do que a análise do que foi e das causas do passado. Em certo sentido, esta ciência distingue-se tanto da economia política quanto o mercado da economia mercantil difere dos gabinetes de trabalho dos organismos socialistas reguladores, com seu sistema nervoso extremamente complexo e ramificado de previsão social e direção planificada.

Método de Estudo do Sistema de Economia Socialista-Mercantil.

A questão é mais complexa quando se trata da análise de um sistema econômico no qual existem, de um lado, um princípio de planificação - nos limites que resultam do grau de organização atingido pela economia - e de outro lado, a lei do valor com sua força de ação externamente coercitiva. O estudo de uma economia deste tipo é extremamente difícil porque nenhuma dessas formas de produção se apresenta de modo puro. A lei do valor - na medida em que se manifesta em tal sistema - é uma velha conhecida, suficientemente estudada tanto no capitalismo clássico como no siste­ma de produção simples de mercadorias. Em contraposição, o princípio de planificação é um desconhecido que entra pela primei­ra vez na arena histórica de nossa economia e só mostra parcialmente a sua fisionomia. Porém, há mais alguma coisa. A lei do valor e o princípio de planificação, cujas tendências fundamentais adquirem a forma da lei de acumulação socialista primitiva, agem no interior de um organismo econômico único, e são opostos um ao outro em conseqüência da vitória da Revolução de Outubro. Em suma: nenhuma dessas leis se manifestam sob sua forma pura. O governo proletário dirige simultaneamente a economia estatal e a política interna e externa, esforçando-se para conservar um sistema dado, para reforçá-lo e assegurar, no seu interior, a vitória dos princípios socialistas. Assim fazendo, ele enfrenta, externamente, a oposição do capitalismo mundial, e internamente, a resistência da economia privada. Nestas condições, a linha de sua política econômica não segue a linha ótima da lei da acumulação socialista primitiva mas a linha de uma resultante que se estabelece como conse­qüência de uma relação de forças entre as tendências socialistas e as influências opostas que elas encontram no seu caminho.
É perfeitamente claro que, nessas condições, a simples descrição do que é e do que foi não será uma ciência no verdadeiro sentido da palavra. Dizia Marx que se a essência das coisas e a forma de sua manifestação coincidissem, nenhuma ciência seria necessária. Isto não diz respeito apenas aos economistas vulgares que só descrevem superficialmente os fenômenos da economia capitalista mas constitui também uma advertência dirigida a toda recaída futura na economia vulgar, inclusive no estudo vulgar da economia soviética. A descrição do que aparece como resultado da luta entre dois princípios em nossa economia é incapaz de explicar por que se obtém justamente este e não outro resultado e é também incapaz de fornecer prognósticos concernentes ao futuro. Conseqüentemente, é necessário recorrer aqui ao método de estudo analítico-abstrato e
tentar preliminarmente revelar o aspecto puro das tendências que se enfrentam. Assim fazendo, a dificuldade principal não está na aná­lise da lei do valor, nem mesmo nas alterações e limitações desta lei observadas constantemente na economia soviética. Primeiramente, -sabemos o que, entre nós, sofre distorção e limitação. Podemos comparar ao original a fotografia da lei do valor com suas distor­ções. De outro lado, possuímos já certa experiência, que foi estuda­da, das alterações da lei do valor no capitalismo monopolista. Con­seqüentemente as alterações possíveis da lei de valor, para nós, não são novidades ou surpresas. A dificuldade principal reside precisa­mente do lado da lei de acumulação socialista primitiva. O mais difícil é pôr a nu, sob uma forma pura, as tendências dessa lei e ex­plicar, posteriormente, todas as restrições às quais estão submetidas as tendências que lhe são próprias em conseqüência da lei do valor.
Desde que se procure analisar esta lei sob sua forma pura e ob­servar seus desvios, pode-se encontrar as seguintes dificuldades e, em parte, as objeções que exprimem essas mesmas dificuldades. Em primeiro lugar, pode-se falar, de modo geral, da lei na sua aplicação ao processo de acumulação socialista primitiva? Não seria mais correto falar simplesmente do princípio de planificação e de sua ação? Em segundo lugar, é possível e correto metodologicamente analisar os efeitos da lei sob sua forma pura, se decidimos abstrair, num estágio determinado do estudo, a política econômica real do governo soviético, política que é ditada por toda a conjuntura polí­tica? Em terceiro lugar, pode-se, de maneira geral, partir da hipóte­se de que, em nossa economia, duas leis fundamentais estão em conflito? Neste caso, qual dessas leis é o regulador único da econo­mia?
Estamos já parcialmente preparados para a exposição que pre­cede a respostas à primeira questão. Eis em que sentido podemos falar da lei da acumulação socialista primitiva. Designamos por lei, no sentido sociológico geral, a repetição das conseqüências quando da reprodução de causas relativamente semelhantes numa conjuntura social que é relativamente a mesma. (Não há na Natureza e, com mais forte razão, na sociedade, repetições absolutas). Num sentido econômico, a lei é a repetição das conseqüências que decorre da reprodução de um tipo determinado de relações de produção. Exemplo: a lei do valor manifesta-se em toda parte em que aparecem as relações de produção da economia mercantil e mercantil-capitalista. Admitamos agora que um princípio de planificação se manifeste na sociedade. A lei da causalidade deixa de existir? Não há mais regulação na esfera das relações de produção? Anteriormente tínhamos já respondido negativamente a esta questão: há regulação mas de modo diferente, pois ela se impõe, desde o início, com o nosso conhecimento. A necessidade econômica é percebida com antecedência, considerada previamente, possibilitando uma ação organizada numa dada direção. Toda a diferença reside aí12. Mas, quando um novo tipo de relações de produção começa a se impor, ele deve, antes de tudo e sobretudo, lutar por sua existência e consolidação. Em nossa economia, nas condições do desenvolvi­ento das relações capitalistas, internamente, e do cerco capitalista, externamente, isso implica uma continuação da reprodução ampliada das relações socialistas, cada vez numa dada escala de expansão, objetivamente imposta ao Estado soviético. Esta c uma ques­tão de vida ou de morte para todo o sistema. Mas lutar pela reprodução das relações de um tipo determinado, quer dizer, do tipo socialista, significa lutar, em primeiro lugar, pela extensão dos meios de produção que pertencem ao governo proletário; em segundo lugar, significa lutar pela união de um número sempre maior de ope­rários em torno desses meios, e em terceiro lugar, pelo aumento da produtividade do trabalho em todo o sistema. Isto significa tam­bém lutar pela reprodução ampliada do sistema, lutar pelo máximo de acumulação socialista primitiva. Todo o conjunto de tendências, conscientes e semiconscíentes, dirigidas para o desenvolvimento máximo da acumulação socialista primitiva, constitui justamente esta necessidade econômica, esta lei coercitiva da existência e do crescimento de todo o sistema, que pressiona incessantemente a consciência do conjunto dos produtores da economia estatal e os conduz ainda e sempre a repetir as ações dirigidas para a realização do ótimo de acumulação numa conjuntura dada. A necessidade dessas ações, se bem que seja conscientemente percebida, nem sempre é percebida com a nitidez desejada13 '. Mas isto muda a forma de manifestação da lei sem suprimi-la. Se chegássemos a reconhecer a necessidade de agir, e principalmente, de agir com uma rapidez e energia crescentes no espírito da acumulação, seríamos estimulados por fatos objetivos, tais como o aumento da escassez de mercadorias e a ameaça que constitui para a existência de todo o sistema a fraqueza de nossa base industrial e militar, etc. Nestas condições, as objeções ao termo 'lei", baseadas somente no fato de que muda a forma de sua manifestação e o modo pelo qual ela determina a vontade dos homens, se reduziriam a um mero doutrinarismo filológico.
Portanto, podemos falar da lei da acumulação socialista primi­tiva, E não somente o podemos mas o devemos se quisermos fazer avançar o estudo científico da economia soviética e de suas particularidades.
O seguinte contra-argumento é utilizado freqüentemente: por que falar de uma lei quando se trata simplesmente da luta do princípio planificado, socialista, com o elemento espontâneo da econo­mia mercantil? Esta objeção é levantada por quem se recusa obsti­nadamente a se comprometer, achando que tudo está bem. Reconheço que, para os que não desejam se ocupar da análise científica e da fase atual de desenvolvimento do principio socialista em nossa economia, é possível permanecer aí. Mas todos que desejam ir a frente concordarão que a frase relativa à luta do princípio planificado e socialista com o elemento espontâneo da produção mercantil não ensina nada sobre a originalidade, as particularidades e os tra­ços específicos do período mais atual desta luta. Esta frase, quais­quer que sejam as formas sob as quais ela se apresente, permanece uma fórmula vazia e sem conteúdo se não introduzimos nela um conteúdo concreto ligado ao período atual e à presente conjuntura econômico-social da existência da economia estatal. Travamos uma luta contra a economia mercantil durante o Comunismo de Guerra; atualmente, esta luta continua e continuará nos próximos dez ou vinte anos e, quem sabe, nos próximos trinta anos. Ela continuará mesmo quando nossa indústria socialista tenha lançado suas novas bases técnicas, constituindo talvez, uma das partes do sistema de produção socialista da Europa, etc. Portanto, será possível que, diante de conjunturas tão diversas, de relações técnicas de produção tão variadas e de sistemas tão diferentes de relações entre a economia organizada e a economia privada, nós nos contentemos com uma frase geral, sempre a mesma e que, evidentemente, continuará válida por mais vinte ou quarenta anos mas que, precisamente por isso, será sempre inteiramente vazia de conteúdo?
Ao contrário, desde que tentemos passar desta frase geral para a análise mais concreta das regulações de um período determinado de nossa economia, desde que coloquemos concretamente a questão de saber o que significa a luta do princípio da planificaçâo con­tra a economia mercantil no decurso de um dado período histórico, caímos imediatamente no problema da acumulação socialista pri­mitiva, e no problema das regulações deste processo. Á luz desta colocação, a significação cognitiva de nossa análise se enriquece com uma série de generalizações que permitem apreender também os contornos fundamentais da lei característica de um estágio deter­minado da luta do princípio de planificação contra a lei do valor, separando o ocasional do geral, o secundário do essencial, a forma aparente da essência das coisas.
A segunda objeção de caráter metodológico, já colocada por alguns de meus oponentes depois do aparecimento na imprensa do segundo capítulo deste livro, consiste em indicar que é errado separar, na análise, a economia e a política do Estado soviético. Esta objeção não se justifica absolutamente e contraria o método sociológico universal de Marx e a teoria do materialismo histórico. Não foi por acaso que Marx precedeu sua primeira obra econômica im­portante - a Crítica da Economia Política - com um prefácio no qual ele expôs seu método sociológico universal  Por sua teoria da infra-estrutura e da superestrutura -, Marx fundou seu direito de iniciar a análise da sociedade capitalista pela infra-estrutura embora se possa supor, sempre, que existe também uma determinada su­perestrutura como fato social objetivo. Em teoria econômica, a abstração começa desde o começo do estudo, uma vez que esta ciência começa precisamente a partir da infra-estrutura. Isto não diminui o papel da superestrutura nem a importância do estudo deste aspecto das relações humanas na economia mercantil. Porém, não é por aí que começa o estudo. No esboço inicial do plano de O Capital, Marx incluiu uma seção concernente ao Estado, mas ele se propu­nha a tratar desta questão ulteriormente, depois da análise da eco­nomia capitalista no sentido próprio do termo. Por que seria im­possível, na análise teórica da economia soviética, começar igual­mente pela infra-estrutura? Sobre este ponto meus oponentes abandonam, sem o reconhecer, o método marxista para passar ao cam­po do conhecido sociólogo alemão Stammler e suas escolas, aliando-se, deste modo, a todos os demais críticos do marxismo que atacam a teoria do materialismo histórico justamente por sua posição me­todológica de princípio que consiste em colocar a questão da infra-estrutura e da superestrutura. Eis o que o próprio Stammler escreve sobre o problema que nos interessa.
Em sua obra Economia e Direito escreve ele que, em economia política, um ponto de vista puramente econômico é intrinsecamente impossível, negligenciando uma regulação social perfeitamente definida que logicamente o condiciona. Opondo-se à separação, no estudo, entre a Política e o Direito, de um lado, e a Economia, de outro, e pronunciando-se particularmente contra o prefácio de Marx- na Crítica da Economia Política, Stammler escreve: "Seria correto, portanto, opor, não a vida econômica, a produção econômica ou a estrutura econômica, etc, de um lado, à ordem legal e à superestrutura política, de outro lado, mas a matéria da vida social à sua forma, como dois elementos de um único e mesmo produto da realidade social do homem”14 E ainda: "Quem quiser tomar como objeto imediato de seu estudo científico a economia social em si enquanto sistema coeso de colaboração não poderá nem expor nem fundamentar nenhuma tese sócio-científica que não suponha uma regulação da vida social previamente determinada. Todo estudo sobre a renda da terra, o salário, os juros do capital ou o lucro patronal depende igualmente da existência de uma ordem legal específica. A mesma coisa poderíamos dizer para todo estudo sobre a moeda, o crédito, a formação dos preços ou qualquer outro capítulo da economia política"15
Poderíamos acrescentar outras citações tão reveladoras como as que acabamos de fazer. É perfeitamente claro que meus oponentes encontram-se na companhia, muito desagradável para eles, de Stammler, este crítico notório do marxismo, e também de Birman, Diehl, A. Hesse, R. Stolzmann, e dos sociólogos subjetivistas russos, dos quais se arriscam a se aproximar também em outras questões.
Procurando justificar suas objeções, meus oponentes apóiam-se sobre uma frase que Lênin gostava de repetir, segundo a qual a política é a economia concentrada. Entretanto eles não mostram como, para compreender esta concentração, é possível evitar a análise prévia do que se concentra na política16 '. De resto, se lhes agrada começar a análise onde habitualmente os marxistas a terminam, que tentem. Nós os escutamos. De minha parte, permaneço no campo do marxismo e considero que é necessário começar a análise a partir da infra-estrutura, a partir das regulações da vida econômica e explicar, em seguida, a necessidade de uma determinada política. É assim que procedia Marx, tanto para a análise da produção capitalista como para a de todo o sistema da sociedade capitalista. Respondendo as objeções que lhe tinham sido feitas realmente e às objeções possíveis de lhe serem feitas a propósito de O Capital, Marx escrevia numa carta de 11 de julho de 1868 a Kugelmann: “A tarefa da ciência consiste precisamente em explicar como opera a lei de valor. Conseqüentemente, se pretendemos explicar de uma só vez todos os fenômenos que parecem contradizer esta lei, seria necessário fazer ciência antes da ciência". Meus oponentes acreditam-se visivelmente mais capacitados do que Marx e acham possível "fazer ciência antes da ciência". Esta tarefa, manifestamente, está além das minhas forças. Esperarei que comecem seu estudo segundo seu próprio método. A História lhes será reconhecida se eles apresentarem, "antes da ciência", outra coisa que não seja a econo­mia vulgar sobre uma nova base, da qual já temos amostras sufi­cientes nos jornais e revistas econômicas. Quanto a mim - fazendo abstração da política econômica real do Estado, que resulta da luta entre dois sistemas econômicos e das correspondentes classes sociais, a fim de a investigar sob seu aspecto puro o movimento da acumulação socialista primitiva em direção a seu ponto ótimo - dar-me-ei a modesta tarefa de desvendar primeiro, se possível em seu aspecto puro, a ação das tendências em luta, para em seguida, tentar compreender por que a resultante da vida real segue precisamente tal linha e não outra.
Ao que tudo indica, uma análise deste tipo é difícil de ser feita na medida em que a política econômica deliberadamente seguida pelo Estado apresenta-se, amiúde, não como uma reação contra as dificuldades que surgiram na prática no curso do desenvolvimento da reprodução socialista, mas como o produto de um cálculo prévio dessas dificuldades. O que é de fato, uma política imposta por pres­sões externas (em razão da oposição da economia privada) toma o aspecto de decisões assumidas com Coda a liberdade. A necessidade econômica impõe-se sob a aparência de uma escolha externamente livre de uma linha política determinada. As decisões ditadas pelo ótimo da acumulação socialista primitiva tal como aquelas que são datadas pela necessidade de limitar este ótimo em conseqüência da oposição da economia privada e das classes que a representam, aparecem como decisões conscientes dos órgãos reguladores do Esta­do. Distinguir aqui o ótimo, sob seu aspecto puro, da política real, obrigada a se afastar deste ótimo, constitui um problema muito-difícil. Para resolvê-lo, é necessária uma análise concreta de toda a conjuntura econômica e política, em cada momento, ou pelo menos durante um período determinado do desenvolvimento econômico. Conseqüentemente, esta dificuldade resulta do próprio tipo de nossas relações de produção, da imtersecção, no seu interior, dos princípios socialistas com os da economia mercantil. Chegamos aqui ao ponto em que o uso dos princípios gerais do método marxista devem ser modificados pelos procedimentos metodológicos que Marx empregava para analisar as relações de produção do capitalismo puro. É precisamente aqui (mas não somente aqui) que encontramos esta mudança do próprio objeto de estudo. Isto nos obriga, num certo sentido, a passar do campo da economia política ao de outra ciência que se apresenta como uma transição entre a economia política e a tecnologia social. Esta ciência de transição está ainda para ser criada graças aos esforços coletivos de nossos economis­tas. Esta ciência deverá tratar da questão de saber como aparecem as regulações da vida econômica no sistema econômico misto, socialista e mercantil; como se determina a vontade dos participantes da produção coletiva quando esta produção coletiva está ligada por múltiplos laços com a economia privada, quer esta se desenvolva como tal, quer se adapte à economia estatal numa conjuntura de crescente limitação da lei do valor pelo princípio da planificação. É aqui que surgem fenômenos novos, não somente na própria economia estatal mas também em parte na economia privada que subsiste numa conjuntura em que as chamadas alavancas de comando são controladas pela economia coletiva do proletariado. Não estou, de modo algum, inclinado a considerar como único procedimento me­todológico possível, o método que utilizo no presente livro e que consiste em tentar separar, inicialmente sob sua forma pura, os dois princípios em luta, as tendências, os dois métodos de divisão das forças de trabalho e dos meios de produção para explicar, depois, a resultante econômica da vida real. Se um pesquisador (e se trata precisamente de pesquisadores e não de representantes da economia vulgar) propuser outro método que revele ter mais utilidade e afinidade como a própria essência da economia soviética, tal iniciativa só deve ser saudada.
Resulta de tudo isso que, parcialmente, o êxito do estudo científico e teórico de nossa economia exige, de um lado, uma análi­se mais circunstanciada da própria noção de lei, de regulação e de necessidade nas condições da economia coletiva em desenvolvimento e, de outro lado, a continuação da análise sociológica r iniciada pelos trabalhos geniais de Lênin - de todo o sistema da sociedade soviética enquanto formação social absolutamente nova e original, isto exige de todos nossos teóricos um enorme trabalho coletivo de pensamento, constantemente renovado e verificado na prática.
Passo, enfim, à terceira dificuldade e à terceira objeção surgida com base nesta dificuldade. De tudo que foi dito, não se poderia concluir que existe também em nossa economia, com a luta que se dá entre esses dois princípios, um campo de ação para dois reguladores diferentes de todo o sistema no seu conjunto? Se isso pode acontecer, a que então se reduz a unidade bem conhecida de todo sistema econômico como organismo econômico coeso?
Excluindo-se os que consideram que toda nossa economia é apenas uma variante da economia capitalista-burguesa, ninguém contesta que dois princípios estão em luta no interior do sistema so­viético. Mas se há, num único organismo econômico, uma luta entre dois princípios enquanto forma antagônica de desenvolvimento do mesmo sistema, enquanto forma característica do processo dia­lético do desenvolvimento em gerai, então não se deve colocar a questão de saber se podem existir dois reguladores numa tal situação mas sim se isto poderia não acontecer. A única coisa que pode ser considerada como unidade é uma dada resultante de duas forças em
luta; é isto que realmente decide, em cada momento, da distribuição do trabalho e dos meios de produção entre os sistemas e a forma dos laços de mercado entre eles, modificando principalmente seu conteúdo, de acordo com mudanças nos dois pólos opostos do conjunto econômico. Se cada princípio luta por sua hegemonia no conjunto do sistema, por isso mesmo ele luta em favor do tipo de regulação que é organicamente característico de um dado sistema de relações de produção considerado sob sua forma pura. Esclareçamos a questão com o seguinte exemplo. Admitamos que as relações mercantis-capitalistas sejam predominantes em nossa economia, o que significaria, no plano político, a liquidação inevitável da ditadura do proletariado e, no plano econômico, o livre desenvolvimento do regulador mercantil-capitalista da economia, quer dizer, da lei do valor. Assim, a divisão social do trabalho e dos meios de produção se estabeleceria como ela sempre se estabelece sob a ação da lei do valor, quer dizer, que ocorreria uma reorganização das forças de trabalho e dos meios de produção de modo a reproduzir espontaneamente as relações mercantis-capitalistas. Com a liquidação do monopólio do comércio exterior haveria a liquidação de certas empresas e o desenvolvimento de outras, juntamente com a redução da industrialização do país no seu conjunto. Todo este processo ficaria subordinado anarquicamente aos objetivos da reprodução das relações capitalistas no interior de nosso país e nos países capitalistas que estariam ligados a todo este processo de reconstrução burguesa de nossa economia. A atual indústria dá URSS e os padrões de sua economia, em particular a divisão das forças produtivas entre a indústria pesada e a indústria leve, entre a cidade e o campo, mudariam inteiramente. Daí deriva a seguinte questão: a tendência e a pressão nesta direção, são próprias, de um lado, de nossa economia privada e, de outro, dos países capitalistas que empenhadamente procuram obter, como programa mínimo, a liquidação do monopólio do comércio exterior e do protecionismo socialista? É claro que sim. Neste caso, há uma pressão em direção a seu próprio tipo de regulação, que tende a se impor em toda parte em que não ocorre uma reação proveniente do outro setor da economia.
Falemos agora deste setor, quer dizer, da economia estatal. Se ela obtivesse o máximo de possibilidades para reorganizar como desejasse, todo o sistema, especialmente se a revolução proletária vencesse na Europa, então, evidentemente - com a legalização das relações socialistas enquanto tipo total e incondicionalmente dominante em nossa economia - não somente o princípio da planificação triunfaria como método de organização e direção da economia, como também as proporções da divisão do trabalho e dos meios de produção seriam essencialmente diferentes, em comparação com a situação atual e ainda mais em comparação com a que resultaria se a forma capitalista triunfasse e a lei do valor se transformasse no único regulador da economia.
Mas se assim é, a seguinte questão se coloca: atualmente, quando o setor socialista luta por sua existência e desenvolvimento, é possível constatar, deste lado, a ação de outro regulador que se es­força por submeter todo o sistema, isto é, reconstruí-lo, procurando para isso reunir sempre mais recursos para a organização do trabalho sobre um modo novo e em torno de meios de produção em perpétuo crescimento quantitativo e em perpétua elevação qualitativa? Certamente, sim. E agora cumpre somente explicar mais nitidamente em que consiste a ação desta lei, a ação na qual todo este processo se concentra e encontra sua expressão.
Admitamos, por um momento, que a partir de um certo ponto tenhamos, no conjunto de nosso sistema econômico, um processo de reprodução simples e não de reprodução ampliada. Em tal situa­ção, é fora de dúvida que a divisão das forças produtivas fotografadas, digamos em 1926, e muitos" outros aspectos da economia do país, teriam outra fisionomia diferente da atual uma vez que o siste­ma se encontra em movimento, e se coloca a questão da reprodução ampliada tanto na economia estatal como na economia privada. Mas em que consiste esta diferença? Podemos responder parcial­mente a esta pergunta através da analogia da repartição das forças produtivas na reprodução simples e na reprodução ampliada da economia capitalista. Os que leram o segundo livro de O Capital sa­bem que Marx traça um esquema da repartição das forças produti­vas, primeiro na reprodução simples, e depois, na reprodução ampliada, Para a mesma soma global de capital, em toda a economia, as proporções da divisão no interior de cada subdivisão em c + v +m 17 18e entre as duas subdivisões são, então, completamente diferentes. Elas estão como alinhadas, em formação de combate e nelas percebemos as proporções da dinâmica da reprodução ampliada. Na economia soviética, no regime da reprodução ampliada, da economia estatal e da economia privada, a divisão das forças produti­vas, as proporções entre o setor socialista e o setor privado, assim como entre ramos do setor socialista, devem não somente diferen­ciar-se daqueles que existiriam na reprodução simples como tam­bém das proporções da reprodução ampliada capitalista num dado nível de industrialização e diferenciar-se também inevitavelmente em cada ano em relação ao precedente. Caso a economia estatal es­teja em desenvolvimento, cada novo ano implica: 1) um acréscimo absoluto da produção em comparação à do ano precedente; 2) um acréscimo relativo, em comparação ao crescimento da economia privada e 3) uma nova divisão de forças no seu próprio interior, acarretada pela proporção da reprodução socialista ampliada do ano em questão.; Porém, a lei que rege todo este processo - o reagrupamento, o crescimento das relações socialistas de produção, a transferência de valores provenientes da economia privada - é precisamente a lei da acumulação socialista primitiva. Cada ano ela nos dita de modo coercitivo uma repartição das forças produtivas no interior de toda a economia estatal que antecipa também sua re­partição para o ano seguinte e, em parte, para os anos futuros. De um lado, o grau de organização já atingido pela economia estatal (apesar de pequeno e inferior às possibilidades objetivas já existentes para elevá-lo) e, de outro lado, a própria natureza de nossas gran­des obras - notadamente das novas instalações soviéticas - exige cada ano um reagrupamento das forças produtivas que antecipam parcialmente as proporções da economia nos anos futuros. Sem isso, em 1926, criaríamos inevitavelmente, em 1930, uma penúria de mercadorias, uma ruptura do equilíbrio entre nossa economia e a economia mundial, e o esfacelamento em beneficio da economia
privada, de nossos planos de importação que estão subordinados aos objetivos da industrialização do país, etc. O fato de o Gosplan já ter passado à elaboração de um plano qüinqüenal não é devido ao acaso. Tal aprofundamento do trabalho de planificação não é somente uma conquista mas também uma das nossas necessidades mais prementes, imposta diretamente à economia coletiva como uma lei externamente coercitiva da Revolução de Outubro possui sua própria lógica nesta frente de luta. A passagem a tal planificação é inevitável - e não podemos recusá-la ou evitá-la - uma vez que socializamos a indústria e o sistema de transporte (se assim não fosse não valeria a pena ter pego em armas em Outubro). Porém, inevitavelmente daí resulta, desde 1926, um reagrupamento das forças produtivas no interior da economia estatal de modo a responder não somente aos interesses do conjunto da economia neste ano mas também de modo a prever a conjuntura futura para muitos anos. Uma previsão nesta forma e nesta escala a economia capitalista não pode fazer em conseqüência de sua própria estrutura. Se excluímos parcialmente a ação da lei do valor, com seus aspectos negativos e positivas, salutares para a economia não-organizada, devemos substituir sua ação reguladora por outra lei que seja inerente à econo­mia planificada, num estágio determinado de seu desenvolvimento, isto é, a lei da acumulação socialista primitiva.
Esta lei nos dita certas proporções no interior da economia estatal, proporções que diferem das que são ditadas pela situação do mercado do ano considerado. Porém, uma proporção também determinada de todo processo de, reprodução ampliada (do ângulo quantitativo) e, conseqüentemente, um mínimo objetivamente necessário de acumulação de recursos materiais (às expensas dos recursos próprios da economia estatal e das transferências de uma parte do sobreproduto da economia privada para o setor socialista) nos são impostos de modo igualmente coercitivo a fim de alcançar tais proporções. Além desse mínimo podemos ter certa liberdade de manobra mas o fato de não atingirmos este mínimo afetará nosso sistema sob a forma de uma crise de subprodução, como vimos em 1925 e 1926. Esta crise, ao suscitar um aumento da acumulação privada em conseqüência do aumento dos preços a varejo, enfraquece nossas posições na luta contra os elementos burgueses de nossa economia e se mostra perigosa para a moeda, para o nível real dos salários, além de ser politicamente arriscada.
Tudo isso mostra do ponto de vista do problema examinado aqui, que a lei da acumulação socialista primitiva aparece como um regulador também sob este aspecto. Desconhecer a existência desta lei, ignorar que ela tem um caráter coercitivo para a economia estatal e que influi sobre a economia privada, constitui não somente um erro teórico, uma obstinação mental e um conservadorismo mas uma coisa perigosa na prática, em termos da luta pela existência de todo nosso sfttema econômico coletivo,
Quero ressaltar particularmente o perigo de uma posição teóri­ca equivocada com relação a esta questão, pois, com a centralização de toda a economia estatal e de sua direção, a previsão desempenha - para o desenvolvimento de nosso sistema e para a sua conservação - um papel absolutamente excepcionai, sem comparação com o da previsão num tipo de regime de regulação espontânea. Daí o papel enorme não somente científico mas diretamente produtivo de ama teoria adequada da economia soviética. Num país capi­talista, o palavrório e as intrigas podem se suceder constantemente no Parlamento e, no campo da ciência cada economista ou financista burguês pode considerar de seu dever, deslizando pela superfície da vida econômica, apresentar um desfile de paradoxos de sua própria invenção para poder distinguir-se dos outros em alguma coisa. Mas, na verdade, a sociedade burguesa pode se oferecer tal luxo em matéria de governo e de ciência porque a lei do valor cumpre a função de regulador da economia, de modo mais inteligente e mais seguro do que todos seus políticos e professores juntos. Não somente os ávidos interesses da classe burguesa (como Marx mostrou tão claramente) mas também a própria estrutura da produção capitalista rebaixam, no melhor dos casos, a ciência econômica ao papel de aparelho fo­tográfico da conjuntura ou, então, a mantém como futilidade intelectual. Os erros dos economistas burgueses têm apenas uma peque­na repercussão nos sucessos da acumulação capitalista. Em com­pensação, na economia soviética, em que a previsão ocupa um papel tão amplo e crescente, em que os erros da política econômica são dolorosamente suportados por todo organismo econômico c afetam todo seu desenvolvimento futuro, a ciência econômica, a previsão teórica, a análise correta do sistema econômico devem ter, entre nós, uma importância absolutamente excepcional. Ao contrário, os erros, no plano da teoria econômica, tornam-se perigosos, tanto do ponto de vista prático, como econômico e político. Parti­cularmente, é pernicioso, e mesmo perigoso, ignorar por mais tempo, no plano teórico, a presença, não "somente" da acumulação so­cialista (até mesmo a economia vulgar é capaz de observar este fato) mas da lei da acumulação socialista primitiva, enquanto fator objetivo, com todas as conseqüências daí decorrentes.
Alguns de nossos economistas, por princípio, não podem admitir que atuem em nossa economia não um mas dois reguladores. Isto não é o resultado de uma profunda assimilação da ciência econômica teórica mas um óbvio produto de um preconceito acadêmico, a incapacidade de aplicar o método dialético marxista às situações novas. Trata-se simplesmente de dogmatismo e pedantismo. Estes economistas estão acostumados com a análise do capitalismo desenvolvido ç com a concepção de um único regulador, na medida em que no capitalismo existe realmente apenas um regulador. E não. somente eles revelam o conservadorismo e a timidez de seu pensa­mento como entram em contradição com o espírito do marxismo, com o método sociológico universal de Marx quando se mantêm apegados à teoria econômica do capitalismo apesar de nosso sistema, na prática, já se ter afastado do capitalismo. Nossos economistas temem aceitar, nos fatos, que a economia política estude somen­te um tipo historicamente transitório de relações de produção e que sua transformação em outra ciência é absolutamente inevitável de­pois da revolução socialista, se podemos dizer que o progresso é inevitável no domínio da teoria. Esta timidez de pensamento - cujas raízes sociais no momento não me interessa procurar limitando-me às raízes lógicas - é tanto mais incompreensível quanto a lei do valor, ela também, não caiu do céu subitamente mas se desenvolveu com a expansão da economia mercantil. Se no sistema soviético, ela não desempenha o papel de único regulador da economia, cumpre ver que isso também não acontecia no passado. Durante o período em que a economia mercantil corroía e absorvia o regime das cor­porações, a lei do valor não se chocava contra o sistema corporativo da regulamentação do trabalho que ainda não tinha sido elimi­nado? Esta dualidade, no passado, às vésperas do desenvolvimento
do capitalismo, é um fato. Por que a dualidade seria impossível no começo do desaparecimento das relações capitalistas?
Os que nada têm a objetar a este argumento não têm outra coi­sa a fazer senão abandonar a discussão metodológica e levar a dis­cussão para outro terreno a fim de declarar o seguinte: "Tudo de­pende do peso relativo que se atribui ao princípio de planificação; você o superestima enquanto nós permanecemos no plano da reali­dade". Admitamos que assim seja. Entretanto, é pouco provável que seja possível, com sutileza no campo da lógica, escapar das conseqüências econômicas e sociais da Revolução de Outubro. Aqui, coVio diz a anedota, "existem duas possibilidades". Examinaremos ambas. Se uma só lei, do valor, na qualidade de regulador, é a lei essencial em nossa economia, então, com base nessa lei (que segundo Marx deve reproduzir espontaneamente as relações capitalistas), como é possível ocorrer a reprodução ampliada das relações sócia-listas e, mais ainda, ocorrer um progresso na qualidade socialista dessas relações?
Se esta suposição é exata, não teriam os mencheviques razão na análise de nossa economia? Não teria razão o falecido Parvus ao afirmar que nossa economia é inteiramente burguesa, com imensas possibilidades de desenvolvimento de tipo americano, constituindo o poder operário - com suas ingerências no processo de produção ~ o principal obstáculo para a expansão das forças produtivas de uma economia do tipo que ele supunha que existiria entre nós, isto é, uma economia de tipo burguês regulada pela lei do valor?
Se nossa planificação reduz-se simplesmente ao fato de observarmos a inevitável ação da lei do valor e fazermos o que ela ordena através de um soco espontâneo nas costas ou na nuca quando erra­mos em nossa "observação", não estamos, então, no direito de perguntar: neste caso, toda nossa planífícação e toda nossa regulação "socialista" não seriam uma simples função da lei de valor? Como, então, poderíamos deixar de reproduzir, em escala ampliada, as relações propriamente capitalistas e a divisão das forças produtivas que correspondem aos objetivos da reprodução propriamente capi­talista tanto no que diz respeito às proporções da economia como nas relações de produção? Ou uma coisa ou outra. Ou essas relações não podem permanecer muito tempo em contradição interna com seu "regulador" ou este não é nosso regulador ou ainda, mais provavelmente, há outro regulador. Acho que nossos economistas, com os quais polemizo neste instante, se negarão resolutamente a se colocarem como defensores do ponto de vista exposto mais acima e que hesitarão em tirar semelhantes conclusões.
Mas sobra, então, o outro modo possível de colocar a questão: na economia soviética existe uma luta entre dois princípios embora o princípio socialista seja extremamente fraco, mais fraco do que considerei neste trabalho. Formalmente, todos reconhecem o fato da existência de uma luta entre dois princípios, mas para que haja uma luta, como sabemos, é necessário no mínimo dois combatentes. A dualidade já está presente. A luta, se é efetivamente travada, não pode deixar de ser uma luta por dois diferentes tipos de organização do trabalho, por uma distribuição diferente das forças produtivas, por dois métodos de regulação. Como, então, outro regulador, an­tagônico à lei do valor, pode deixar de existir? Não é possível que isto aconteça, nem do ponto de vista dos fatos nem logicamente. Eu aconselharia insistentemente que os economistas com quem discuto introduzissem um pouco de "princípio da planifícação" em suas idéias. Pediria também que explicassem como conciliam, no plano teórico, a tese de que nossa indústria estatal é do "tipo consistente-mente socialista", em estágio da reprodução socialista ampliada (e não no estágio de forte erosão pela economia mercantil), com suas opiniões categóricas a respeito de um único regulador. É hora de se chegar a um equilíbrio neste assunto. É absolutamente impossível de escamotear a questão com uma frase relativa à luta do princípio socialista da planificação contra as leis do mercado. Como mostra­mos, durante o período do Comunismo de Guerra havia também luta do princípio de planificação com os elementos espontâneos da economia mercantil e esta luta deverá prosseguir, em certa medida, por mais vinte ou trinta anos. Podemos perguntar como se caracteriza, então, o tipo atual desta luta em relação à que existia há sete anos e a que existirá daqui a vinte anos? Em que consiste a regulação desta luta? Como ela se expressa, quando considerada do ângulo do setor socialista de nossa economia? Se rejeitamos a lei da acumulação socialista primitiva, que concepção propomos em seu lugar?
O motor da produção capitalista é a busca do lucro e. a lei do valor é o seu regulador. Õ capitalismo satisfaz as necessidades de consumo da sociedade justamente graças a esse mecanismo. O operário, em particular, recebe sua parte do fundo de consumo pela venda de sua força de trabalho. Em que se distingue a economia es­tatal, neste aspecto, do capitalismo? De um lado, não se trata mais de uma produção com vistas ao lucro, à mais-valia. De outro lado, não é ainda uma produção com vistas ao consumo dos trabalhadores da economia estatal e, ainda menos, de todos os indivíduos da economia privada. Nossa economia estatal encerra aqui uma contradição interna, ligada tanto à natureza desta economia como às condições da luta por sua existência e crescimento. A economia es­tatal pode, por um lado, ser derrubada se ela não realizar a função de todo sistema histórico de produção, isto é, se não satisfizer as exigências sociais de uma dada época; a este respeito, seu aguilhão, o chicote que a faz avançar, é a pressão dos consumidores, operários e camponeses. Esta pressão age tanto por vias diretas, quer dizer, sem passar pelo mecanismo capitalista da busca do lucro máximo como também através de múltiplas vias indiretas (impossibilidade de assegurar, nas proporções necessárias, o intercâmbio com a economia privada, etc.) - A economia estatal apenas começa a aflorar aqui, particularmente no interior de seu próprio sistema, os fatores de estimulação que lhe são próprios assim como as formas adequadas de sua organização. De outro lado, ela pode ser destruída em seu equilíbrio dinâmico, se a proporção necessária da reprodução ampliada, ditada pelo conjunto da situação econômica, não for garantida por um volume suficiente e sempre crescente da acumulação do sobreproduto sob sua forma material, fato que implica sempre uma restrição ao consumo individual. A contradição entre uma e outra tendência no interior da economia estatal não adquire a forma de um antagonismo entre classes. Porém, de uma forma geral, a contradição existe. Esta contradição também caracteriza inteiramente a própria lei da acumulação socialista primitiva quando se trata da distribuição. De um lado, a reprodução ampliada do setor socialista implica uma reprodução quantitativamente crescente e automática das relações socialistas de produção, juntamente com a correspondente proporção de distribuição anual das forças produtivas. Mas, de outro lado, esta extensão quantitativa das relações socialistas (que exige a alienação de uma massa determinada de sobreproduto proveniente igualmente da economia estatal e que coloca o aumento dos salários em função da acumulação) limita a me­lhoria da qualidade das relações socialistas, mantendo a disparidade entre o nível de salários e o valor da força de trabalho. Nisto se exprime não somente a contradição da própria lei mas também seu caráter historicamente transitório. É importante ter isto sempre presente na análise metodológica de toda a economia e, particularmente, da forma de manifestação das regulações que lhe são próprias.
Quando os economistas referidos anteriormente falam da percepção da ação da lei do valor para nossa regulação planificada, eles cometem os erros que apontamos não somente porque julgam que as proporções que se estabelecem na economia com base na ação da lei do valor são proporções naturais.e válidas também para uma economia que se desenvolve num sentido não capitalista Esses economistas não se dão conta da importância das modificações que afetaram o conjunto da economia em razão da mudança da estrutura do orçamento camponês após a Revolução; e não querem compreender que o regulador da lei do valor foi necessariamente posto de lado e não pode objetivamente deixar de ser afastado e substituído pelo regulador do setor coletivo em expansão. Além disso, é claro que eles confundem a proporcionalidade econômica objetiva­mente necessária com os métodos de obtenção desta proporcionalidade. Conseqüentemente, eles confundem a industrialização do país sob a ditadura do proletariado com o desenvolvimento da grande indústria em geral. Entretanto, não somente a forma do valor mas também o que chamamos de relações de valor sob o aspecto de des­pesas com mão-de-obra, modificam-se não apenas em razão da melhoria da técnica e da produtividade do trabalho mas também em conseqüência da transformação do conjunto da economia estatal num truste19  único, o que, juntamente com o desenvolvimento da organização científica do trabalho, cria um fator novo, engendrado pela cooperação de imensos corpos econômicos ligados entre si. Esta particularidade de nossa economia estatal, que decorre de sua natureza socialista, não se faz sentir de modo tão acentuado nas condições de uma técnica pouco desenvolvida mas aparecerá com o fator de grande importância quando o nível tecnológico da indústria soviética se aproximar do nível alcançado pelos países capitalistas avançados, É possível dizer se as mudanças daí decorrentes estão ligadas à ação da lei do valor? Não dependeriam estas mudanças antes de sua eliminação, ou de sua limitação, e da luta de nossa economia estatal por sua existência e desenvolvimento enquanto tipo de economia coletiva? É impossível compreender este aspecto assim como nosso empenho em afastar o capital privado do comércio a fim de substituí-lo pelo comércio estatal e cooperativo se consideramos que a lei do valor é o regulador fundamental de toda a economia soviética. Do ponto de vista específico dos gastos administrativos, o capital privado é "mais rentável" para toda a economia, sendo a produtividade do trabalho no comércio privado mais elevada. Entretanto, esta não é nossa linha de desenvolvimento; nós avançamos seguindo a linha de outra lei, submetendo-nos à ação de outro regulador.
O segundo ponto a rejeitar é evidentemente a confusão que se faz entre a proporcionalidade na economia, objetivamente necessária a todo sistema de produção social, tal como a divisão do trabalho, e o método historicamente transitório de realização de tal proporcionalidade com base na lei do valor. Uma divisão adequada e proporcional do trabalho é necessária tanto ao capitalismo e ao socialismo como ao nosso atual sistema econômico mercantil-socialista. Porém, a teoria do regulador único não seria comprovada mesmo se fosse demonstrado - e mostrei a impossibilidade de tal demonstração - que a distribuição das forças produtivas, que se realiza de fato entre nós através de uma luta, corresponde, por al­gum passe de mágica, à distribuição que se estabeleceria através da ação da lei do valor num regime de supremacia das relações capita­listas, isto é, que as proporções da produção coletiva num determi­nado estágio de industrialização correspondem às proporções capitalistas. Por que razão as proporções que nos são necessárias seriam determinadas pela lei do valor enquanto regulador e só poderiam ser obtidas por seu intermédio, uma vez que a lei do valor está ligada historicamente - material e fisicamente, se quisermos - à produção mercantil, sendo inseparável dela na medida em que se trata de uma produção onde a propriedade privada dos meios de produção é predominante? Seria a substituição da propriedade privada pela propriedade coletiva, no que diz respeito a todas as alavancas de comando, um mero ato jurídico formal que não modificaria a essência do sistema? Por que não podemos dizer que encontramos, no essencial, as proporções necessárias para nossos métodos que são, apesar da extrema pobreza de nossa experiência em planejamento, melhores e mais perfeitos do que os métodos de obtenção de um equilíbrio de modo espontâneo? Considerando que a lei do valor só estabalece correções por meios espontâneos, por que uma tal propo­sição seria agora objetivamente impossível uma vez que traçamos as linhas gerais de proporcionalidade graças a nossos métodos de cálculo estatístico das necessidades e da demanda efetiva, métodos que compreendem também o cálculo das possibilidades de nossa in­fluência sobre a economia privada, assim como de nossa dependên­cia diante dela? Se isso for possível, se for possível em 50%, dizer que essencialmente só existe entre nós um único regulador, significa confundir do modo mais grosseiro a regulação com base no custo do trabalho sob o capitalismo com a necessidade econômica objeti­va de uma distribuição proporcional de trabalho, a qual não existe somente na economia mercantil e mercantil-socialista e não se esta­belece somente através de métodos capitalistas. No sistema mercantil-socialista, esta proporcionalidade somente pode estabelecer-se mediante uma luta contra a lei do valor; ela será sempre a resultante de uma luta - embora a direção na qual a lei do valor e a lei da acumulação socialista operam possa coincidir em certos casos particulares na conjuntura real.
Poder-se-ia perguntar: se a forma mercantil e monetária das relações é predominante, isto não tornaria inevitável a existência de um único regulador, a saber, a lei do valor? Esta objeção é essencial mas ela parece formal e, em pontos importantes, permanece na superfície dos fenômenos.
Se lançamos um rápido olhar na história da Humanidade, na história da luta de classe e na história das formas econômicas com a finalidade de verificar se um movimento para frente se realiza de modo antagônico, de modo pacificamente evolutivo ou alternando ora um ora outro, sempre e em toda parte, a regra é que a mudança de conteúdo precede a mudança da forma das relações entre os homens. Ocorre a mesma coisa no sistema econômico criado pela Revolução de Outubro. Nossa economia estatal está ligada com a economia privada; assim, esta última penetra automaticamente no próprio interior das relações da economia estatal. A economia privada, enquanto economia individual, não pode se desenvolver sem a forma de relações baseadas nas trocas. (Neste sentido, basta lembrar a experiência do sistema de confisco dos gêneros agrícolas durante o Comunismo de Guerra). Em compensação, a economia estatal, na presença da antiga forma de trocas, pode ir extremamente longe, mudando o conteúdo das relações sociais de produção. Para o jurista, confundir aqui a forma, o conteúdo e o lugar respectivo de am­bos num momento dado ainda, é parcialmente desculpável. Porém, para economistas marxistas, tal confusão é absolutamente imperdoável, tal como é imperdoável que eles apreendam antes sob seu aspecto formal do que de conteúdo as conseqüências objetivamente necessárias da socialização da indústria e dos transportes para todo o sistema de regulação da economia.
Por fim, cumpre afastar aqui um mal-entendido que pode surgir da leitura dos capítulos seguintes. Entre nós, freqüentemente os numerosos erros e falhas de cálculo do Gosplan e de outros órgãos dirigentes da economia soviética são apresentados como prova das limitações das possibilidades de regulação planificada da economia. Quero observar que, na análise teórica da economia soviética, é necessário estabelecer e avaliar somente as possibilidades de regulação que existem objetivamente e que dependem da efetiva relação de forças entre a economia estatal e a economia privada, do grau possível de organização da economia estatal numa determinada etapa, assim como da influência interna e da pressão externa que ela sofre de parte do mercado mundial.
Não podemos reduzir as possibilidades objetivas de planificação à soma de erros que cometemos em matéria de planificação. Isto significaria culpar a necessidade histórica por cada erro de cálculo, incluindo a deficiente distribuição das pessoas nas diferentes funções. Exatamente do mesmo modo, é completamente errado atribuir à necessidade econômica nossa compreensão insuficiente do sistema econômico que dirigimos e de suas leis, assim como os erros que daí decorrem, qualquer que seja a gravidade de suas conseqüências objetivas, diminuindo assim, na porcentagem correspondente da análise teórica, as possibilidades de regulação cientificamente determinadas que são objetivamente existentes em nosso sistema.
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Capítulo Segundo
A LEI DA ACUMULAÇÃO SOCIALISTA PRIMITIVA

Não é exagerado dizer que a questão mais interessante, mais atual e mais apaixonante depois de Outubro de 1917 e da vitória militar da Revolução, é para todos nossos teóricos e práticos, a questão de saber o que é o sistema soviético, em que direção ele se desenvolve, quais são as leis básicas de seu desenvolvimento e como se situa - ante as nossas antigas e tradicionais concepções de socialismo - esta primeira experiência de um sistema econômico cujos elementos de vanguarda ultrapassam os limites do capitalismo. Aliás, é mais correto colocar esta última questão sob a seguinte forma: como se configura atualmente, depois de oito anos de ditadura do proletariado num imenso país, nossa primeira concepção de socialismo.
Nenhuma formação econômica pode hoje desenvolver-se sob forma pura baseando-se unicamente nas leis imanentes de sua própria formação. Isto estaria em contradição com a própria idéia de desenvolvimento. A expansão de qualquer forma econômica implica o afastamento de outras formas, que se submetem e desaparecem progressivamente. Nestas condições, a diagonal do paralelograma das forças que atuam no campo econômico nunca pode seguir a linha das leis internas da forma dominante, mas se afastará lentamente, distanciando-se sempre desta linha sob a influência de forças opostas. Estas forças opostas, quer dizer, as forças das outras formas econômicas, inseridas no sistema econômico considerado, operam seguindo a linha das suas próprias leis de desenvolvimento. Estas leis de desenvolvimento das formas antigas reduzem-se, agora, a leis de resistência à forma nova.
Mas a análise de um sistema econômico em que atuam duas leis fundamentais complica-se enormemente no caso em que a forma historicamente progressista não é a que já predomina no interior na economia mas somente a que está se transformando na forma dominante. É precisamente isso que ocorre no sistema econômico soviético. A dificuldade, como mostraremos adiante com mais detalhes, surge na análise do papel de uma terceira força econômica. No caso considerado, trata-se da pequena produção. Na época da guerra civil, os quadros do socialismo, quer dizer; a classe operária e os camponeses pobres, dirigiram a luta em favor do campesinato médio contra os quadros do capitalismo, quer dizer, a burgue­sia, os latifundiários, os kulaks e os'burocratas. Nesta luta, o campesinato médio, perpetuamente hesitante, colocou-se em geral do lado da classe operária. Agora este luta transportou-se para o domínio econômico. A pequena produção alimenta tanto a acumu­lação capitalista como a acumulação socialista. Uma questão de fundamental importância para os destinos do socialismo num país agrícola é saber se a pequena produção, em vias de desagregação, evoluirá fundamentalmente em direção do capitalismo, separando de um lado, assalariados e, de outro, pequenos proprietários do tipo kulak, ou se ela se transformará cada vez mais num elemento periférico da economia estatal. No primeiro caso, não somente o ritmo de desenvolvimento será mais lento como também o método de luta da forma socialista contra a forma capitalista será outro; toda a estrutura econômica será diferente. Não me refiro aqui às conseqüências políticas muito importantes que inevitavelmente acompanharão esta variante.
Esta dificuldade do campo da análise teórica das tendências do desenvolvimento da economia soviética não é a única. Os céticos geralmente consideram infrutíferas as tentativas de análise teórica de nossa economia pelo fato de que ela tem apenas oito anos de vida e, conseqüentemente, não poder fornecer elementos concretos suficientes para generalizações teóricas. Como prova, aparecem fre-
quentes alusões à Economia do Período de Transição, do Camarada Bukarin. Mas esta obra era e permaneceu uma teoria do período guarda-vermelho da revolução social e não poderia, objetivamente, ser outra coisa. Por outro lado, toma-se como exemplo O Capital de Marx que só pôde ser escrito depois de um período de muitos de­cênios de capitalismo contemporâneo e de um século de economia mercantil.
Depois de tudo que foi dito no capítulo anterior, parece-me um esforço inteiramente inútil gastar mais algumas páginas para s provar que a análise teórica da economia soviética é possível. Um tal esforço significaria afastarmo-nos da verdadeira prova que con­siste na própria análise do sistema econômico soviético. Eis porque passo diretamente a me ocupar da questão essencial,
Acumulação Capitalista Primitiva e Acumulação Socialista Primitiva
A fim de compreender a fase atual do desenvolvimento da eco­nomia soviética é importante comparar sistematicamente os inícios do socialismo com os primeiros passos do modo de produção capi­talista. Esta comparação é extremamente instrutiva è facilita bas­tante nossa análise. Semelhanças e diferenças - estas últimas incom­paravelmente mais numerosas - marcam igualmente bem as parti­cularidades da economia soviética.
Comecemos pela diferença mais importante que" condiciona uma série de outros traços distintivos. A produção capitalista nasce e se desenvolve dezenas de anos antes das revoluções burguesas, no interior de uma sociedade feudal, ou de uma sociedade feudal semi-desagregada pela produção mercantil. Isto diz respeito inteiramente ao desenvolvimento do capital comercial enquanto estágio, prévio necessário da produção capitalista. Isto diz respeito também aos primeiros passos da manufatura na Inglaterra e da indústria capita­lista utilizando máquinas no continente europeu. O capitalismo po­dia atravessar seu período de acumulação primitiva numa época em que, no plano político predominava o absolutismo, e no plano eco­nômico, a produção mercantil simples e as relações feudais e servis.
As revoluções burguesas começam depois que o capitalismo já progrediu bastante no campo econômico. A revolução burguesa é
apenas um episódio no processo do desenvolvimento burguês que começou bem antes dela e prosseguiu com grande rapidez depois dela. O sistema socialista, ao contrário, começa sua cronologia com a tomada do poder pelo proletariado. Isto decorre da própria essên­cia da economia socialista enquanto complexo único que não pode ser construído pouco a pouco no interior do capitalismo. Enquanto o capital comercial podia desenvolver-se nos poros da sociedade feudal, enquanto as primeiras empresas capitalistas podiam funcio­nar sem entrar em contradição irredutível com o regime político existente e com as formas de propriedade, (nutrindo-se, ao contrá­rio com sua seiva, como veremos mais abaixo) o complexo da pro­dução estatal socialista só pode nascer em conseqüência da ruptura do antigo sistema em todas suas frentes, somente como resultado da revolução social. Este fato adquire uma colossal importância para a compreensão, não somente da gênese do socialismo, mas também de todo processo de edificação socialista subseqüente. Ao contrário, uma compreensão insuficiente ou o esquecimento da própria essência do que constitui o socialismo conduziu, mais de uma vez, e ainda conduz uma série de camaradas, a concepções niti­damente filistéias e, algumas vezes, diretamente reformistas da eco­nomia soviética e das vias de seu desenvolvimento.
Para que a acumulação capitalista possa começar, as seguintes premissas são necessárias: 1) uma acumulação anterior de capital nas mãos de algumas pessoas, acumulação suficiente para a aplica­ção de uma técnica mais evoluída ou de um nível mais elevado de divisão do trabalho, no caso de a técnica permanecer a mesma; 2) a presença de um contingente de operários assalariados; 3) um desen­volvimento suficiente do sistema de economia mercantil em geral, como base da produção e acumulação mercantil-capitalista,
A respeito dessas condições, escreveu Marx: "No que diz res­peito à produção de mercadorias, a produção em grande escala só pode prosperar sob sua forma capitalista. Uma certa acumulação de capital entre produtores individuais constitui, portanto, uma condição preliminar ao modo de produção especificamente capita­lista. Deste modo, é preciso supor a presença de tal acumulação quando da passagem do artesanato à produção capitalista. Esta acumulação é denominada de acumulação primitiva porque ela não é o resultado histórico mas a base histórica da produção especifica-
mente capitalista. Não é necessário agora procurar aqui suas ori­gens. Basta saber que ela constitui o ponto de partida" '20
A este respeito, o que acontece com a acumulação socialista primitiva? O socialismo tem a sua pré-história? E, em caso afirmati­vo, quando ela começa?
Como já vimos, a acumulação capitalista primitiva podia reali­zar-se a partir do feudalismo, enquanto a acumulação socialista pri­mitiva não pode ocorrer dentro do capitalismo. Conseqüentemente, se o socialismo possui sua pré-história, esta só pode ter início de­pois da conquista do poder pelo proletariado. A nacionalização da grande indústria constitui o primeiro ato de acumulação socialista, quer dizer, um ato que concentra nas mãos do Estado o mínimo de recurso necessário para a organização da direção socialista da in­dústria. Mas aqui abordamos imediatamente outro aspecto do problema. Ao socializar a grande produção, o Estado proletário, com o simples ato de socializar, transforma de uma só vez o sistema de propriedade dos meios de produção: o Estado proletário adapta o sistema de propriedade a suas próprias ações futuras relacionadas à reconstrução socialista do conjunto da economia. Em outros ter­mos, somente através da revolução a classe operária obtém o que o capitalismo já tinha obtido no interior do feudalismo sem nenhuma revolução 21*'ou seja, a instituição da propriedade privada. A acumu­lação socialista primitiva - enquanto período de formação das pre­missas materiais da produção socialista no sentido preciso da pala­vra - só começará com a tomada do poder e a nacionalização.
A acumulação capitalista é uma acumulação que se baseia numa produção econômica e tecnicamente diferente do artesanato. A manufatura capitalista apenas pôde provar sua superioridade sobre o artesanato na medida em que se revelou economicamente superior e na medida em que a divisão do trabalho que ela impunha e as outras vantagens da grande produção sobre a pequena, lhe de­ram a possibilidade de fabricar uma unidade de produto na manu-
fatura a custos inferiores aos da produção artesanal. Mas a organi­zação da manufatura, a construção de edifícios, os estoques de ma­térias-primas, as despesas de capital circulante durante o processo de circulação, tudo isso, na ausência do atual sistema de crédito à indústria, exigiu enormes recursos, criados não pela manufatura mas antes dela pela pequena produção, e pilhados, depois, pelo ca­pital comercial. Uma prévia acumulação de capital é necessária num grau ainda mais elevado para o início do funcionamento da grande indústria mecânica. Conseqüentemente, é necessário um longo período de pilhagem da pequena produção para que a produ­ção capitalista possa demonstrar sua superioridade técnica e econô­mica sobre a produção artesanal.
Exatamente da mesma maneira, a acumulação socialista no verdadeiro sentido da palavra, quer dizer, a acumulação com base técnica e econômica socialista, que já tenha desenvolvido todos os traços que lhe são característicos e todas as vantagens que lhe são. es­pecíficas só pode começar depois que a economia soviética tenha ul­trapassado a etapa da acumulação primitiva. Tal como um mínimo determinado de meios previamente acumulados sob a forma de re­cursos produtivos materiais é necessário ao funcionamento das ma­nufaturas, e ainda mais das fábricas que utilizam uma técnica mecâ­nica, também é necessário um certo mínimo para que o conjunto da economia estatal possa desenvolver todas suas vantagens econômi­cas e estabelecer seus novos fundamentos técnicos.
Aqui também reencontramos subitamente uma diferença es­trutural extremamente importante entre o capitalismo e o socialis­mo, à qual voltaremos ao analisar as condições de concorrência en­tre as formas econômicas socialistas e capitalistas. Para que a ma­nufatura possa provar sua superioridade sobre o artesanato, a orga­nização de numerosas manufaturas não é de modo algum necessá­ria. Uma, duas, cinco manufaturas podem já mostrar suas vanta­gens com relação ao artesanato e o vencer na luta competitiva. O volume de capital primitivamente acumulado pode, conseqüente­mente, ser muito reduzido em comparação com a economia nacio­nal tomada no seu conjunto. Algumas poucas empresas que consti­tuam a vanguarda na frente econômica e que representem a nova economia podem iniciar um movimento de progressão sem que a
transição se realize de modo maciço e simultâneo. Se bem que, de um ponto de vista concreto e histórico, durante o período de desen­volvimento do capital comercial a acumulação primitiva tenha pro­gredido a tal ponto que, no momento da organização das manufa­turas não houve grande escassez de capitais disponíveis, todo este processo teve um caráter desorganizado e espontâneo. Este modo de progressão da nova forma foi posteriormente ainda mais facilita­do pela exportação de capital. Empresas capitalistas podiam surgir tanto nos países pequeno-burgueses onde não existiam nem as pre­missas técnicas nem as premissas econômicas do novo modo de produção como também nos países em que tudo isso existia poten­cialmente, faltando apenas um impulso externo dado pelo capital estrangeiro progressista22 '.
Ao contrário, nenhuma acumulação socialista parcial e de re­duzida importância é capaz de resolver o problema fundamental da organização socialista da economia. Particularmente, na medida em que se trata da economia da União Soviética; é necessário uma acumulação: 1) que permita à economia estatal atingir a técnica capitalista contemporânea nos lugares onde for impossível a passa­gem gradual a uma nova base técnica; 2) que torne possível a mu­dança da base técnica da economia estatal, a organização científica do trabalho, a direção planificada de todo complexo da economia estatal, medidas que não poderão ser adotadas sem a formação de grandes estoques de emergência e reservas planejadas; 3) que garan­ta o progresso de todo o sistema e não somente de partes isoladas pois a interdependência do movimento do conjunto do sistema tor­na absolutamente impossível um progresso descoordenado segundo o método da guerrilha capitalista, da iniciativa individual e da concorrência. Consideramos, assim, que o período da acumulação so­cialista primitiva não somente não termina com a nacionalização daquilo que foi acumulado pelo capital mas, pelo contrário, começa com ela. Este período de acumulação só pode desenvolver-se depois da conquista do poder pelo proletariado e do primeiro ato de acumulação, isto é, da socialização dos ramos mais importantes da economia. Sendo assim, seria possível e correto falar, em termos ge­rais, da acumulação socialista primitiva23 em analogia com a acumulação capitalista primitiva? Esta última começa antes da produção capitalista enquanto a primeira deve ocorrer ao mesmo tempo em que começa a transição para a produção socialista, no mesmo tempo em que ocorre a acumulação no próprio sistema econômico socialista. Pensamos que é possível conservar estes termos no sentido convencionado, embora a acumulação socialista primitiva coincida cronologicamente com a produção socialista e em parte com a acumulação socialista com base na produção, porque a essência econômica deste processo, nas suas relações com a produção socia­lista, é, apesar de tudo, a mesma que encontramos na acumulação capitalista primitiva em suas relações com a produção capitalista24. E mesmo que este termo se revele infeliz, cumpriria substituí-lo por outro pois a realidade material que ele designa não deixa de existir se o termo for deixado de lado. Ao contrário, a distinção entre a acumulação socialista primitiva e acumulação propriamente socialista tem uma importância de princípio considerável. Veremos adiante que esta distinção tem enorme importância para nossa polí­tica econômica pois a confusão entre esses dois processos acarreta graves erros no que tange à direção prática da economia soviética. Por acumulação socialista designamos a adição, aos meios de produção em funcionamento, de um sobreproduto que foi criado no interior de uma economia socialista já constituída e que não ser-
virá para uma repartição suplementar entre os agentes da produção socialista e o Estado socialista mas será empregado na reprodução ampliada. Ao contrário, qualificamos de acumulação socialista pri­mitiva a acumulação nas mãos do Estado dos recursos materiais ex­traídos total ou parcialmente de fontes situadas fora do sistema da economia estatal. Esta acumulação deve desempenhar, num país agrícola atrasado, um papel de grande importância, apressando consideravelmente o começo da reconstrução técnica e científica da economia estatal e o momento em que ela terá, finalmente, a supre-rijacia puramente econômica sobre o capitalismo, É certo também que, durante este período, há uma acumulação que se produz a par­tir da própria economia estatal. Mas, em primeiro lugar, esta acu­mulação apresenta também o caráter de uma prévia acumulação de meios com vistas a uma economia autenticamente socialista e está submetida a este objetivo. Em segundo lugar, a acumulação pelo primeiro meio, quer dizer, às expensas do setor não-estatal, predo­mina manifestamente no transcorrer deste período. Desta maneira, devemos qualificar esta etapa de período de acumulação socialista primitiva ou de acumulação prévia. Este período possui suas carac­terísticas e leis particulares. A lei-da acumulação socialista primiti­va ou prévia constitui precisamente a lei fundamental da economia soviética que atravessa atualmente essa etapa. Todos os processos fundamentais da vida econômica no âmbito da economia estatal es­tão subordinados a essa lei Ela modifica e faz desaparecer parcial­mente a lei do valore todas as leis da economia mercantil e mercantil-capitalista na medida em que estas últimas se manifestam e po­dem aparecer em nosso sistema econômico. Conseqüentemente, não só podemos falar de acumulação socialista primitiva como nada podemos compreender da essência da economia soviética se não com­preendermos o papel central desempenhado pela lei de acumulação socialista primitiva que determina - em sua luta com a lei do valor - a divisão das forças de trabalho e a importância da alienação do sobreproduto do país em benefício da reprodução socialista ampliada.
Vejamos de modo sistemático os métodos fundamentais da acumulação capitalista primitiva e comparemo-los, na medida do possível, com os métodos e processos análogos, ou próximos, da acumulação socialista primitiva, Podemos tomar, para fins de comparação, não somente o período que precedeu a produção capitalista mas também a época dos primeiros passos da produção capitalista pois a acumulação primitiva, enquanto acumulação fora do círculo de produção capitalista, continuou também depois do nascimento das empresas capitalistas sob as mais diversas formas.
Comecemos pela pilhagem das formas econômicas não capitalistas. Na realidade, todo o período de existência do capital comercial - a partir do momento em que o trabalho do artesão para uma freguesia e para um mercado local foi substituído pelo trabalho des­tinado a mercados afastados e o intermediário tornou-se um agente necessário da produção - pode ser considerado como um período de acumulação primitiva, como um período de pilhagem sistemáti­ca da pequena produção.
Outra forma de pilhagem, que teve grande importância, foi a política colonial dos países que participavam do comércio mundial. Pelo momento não consideraremos a pilhagem ligada às trocas de uma menor quantidade de trabalho contra uma quantidade supe­rior num intercâmbio comercial "normal". Trataremos apenas da pilhagem sob a forma de imposto sobre os indígenas, da expropriação de seus bens, de seu gado, de suas terras e de suas reservas de metal precioso, da transformação dos vencidos em escravos e dos mais variados modos de engodo. É aqui também que se encontra todos os métodos de coerção e de pilhagem da população campone­sa das metrópoles. A pilhagem da pequena produção camponesa em benefício da acumulação1 primitiva adquiriu as mais variadas formas. As famosas enclosures, às quais Marx consagrou páginas tão brilhantes no Primeiro Livro de O Capital, não foram um méto­do típico de acumulação primitiva para todos os países. Os métodos mais típicos foram: de um lado, a pilhagem dos servos pelos se­nhores e a partilha do botim com o capital comercial e de outro la­do, os impostos aplicados pelo Estado sobre o campesinato, com a transferência de parte dos recursos obtidos ao capital.
Quando a economia senhorial começou a se transformar de economia puramente natural em economia baseada no dinheiro, ou seminatural, quando os proprietários de terras, em razão da exten­são do comércio e do desenvolvimento de suas necessidades, se sentiram estimulados a reforçar as exações sobre os camponeses, eles entraram inconscientemente num determinado tipo de cooperação com o capital comercial. Tudo o que foi pilhado do campo, excluin­do-se o que foi localmente consumido, era vendido aos mercadores. Por sua vez, estes forneciam aos latifundiários os produtos das ci­dades ou do exterior que serviam para satisfazer suas crescentes e mais refinadas necessidades. O capital comercial vendia estes pro­dutos com um lucro de cem por cento, ou mais. Em seguida, a por­centagens usurárias, ele emprestava dinheiro aos nobres arruinados, 'Num certo sentido, os senhores feudais apareciam, portanto, nesta época, como agentes do capital comercial, como uma máquina de colocar a pequena produção camponesa em proveito da acumula­ção capitalista primitiva. Com relação ao Terceiro-Estado, os proprietários feudais, embora continuassem a ser, do ponto de vista jurídico, a "classe superior", cooperavam economicamente com os mercadores, os quais tiveram não o maior mas o menor papel na expropriação dos camponeses.
Outra forma de pilhagem da pequena produção era constituída pelos impostos estatais. A partir de seus recursos fiscais, os Estados absolutistas encorajavam o desenvolvimento das manufaturas, con­cediam subvenções aos comerciantes que se tornavam industriais ou aos nobres que se transformavam em fabricantes. Este apoio era sobretudo concedido às manufaturas que asseguravam, de algum modo, o equipamento do Exército: fábricas de tecidos, de arma­mento, estabelecimentos metalúrgicos, etc. Mas semelhante canali­zação dos recursos da pequena produção agrícola para a grande in­dústria e particularmente para a indústria pesada, através'do apare­lho estatal, se realiza igualmente num período bem mais posterior.
A respeito do papel do Estado e particularmente a respeito do papel da violência do Estado durante o período da acumulação primitiva, Marx escreveu o seguinte: "Estes métodos, como por exemplo, o sistema colonial, apóiam-se em importante medida na força bruta. Mas todas utilizam o poder do Estado, quer dizer, a coerção organizada e concentrada da sociedade para apressar artificialmen­te o processo de transformação do modo feudal em modo capitalista de produção e para abreviar as etapas de transição deste processo. A violência aparece como a parteira de toda a velha sociedade quando esta contém em seu ventre uma nova sociedade. A violência, ela mesma, é uma força econômica".25
Esta violência desempenhou também um papel considerável quando da formação dos Estados nacionais enquanto campo de atividade do capital comercial. Lembremos somente a análise de classe, profunda e plena de verdade histórica, à qual M. N. Pokrovsky submete a política dos czares moscovitas, a fim de fazer reviver, em nossa memória, estas páginas extraídas do período estudado. A conquista do território necessário, as vias comerciais, etc, não passam de um elo na corrente da acumulação capitalista primitiva pois, sem acumulação das premissas territoriais necessárias, a extensão do capital comercial e sua passagem ao capital industrial não poderia se realizar com êxito. Deste ponto de vista, o camponês pagava seu tributo ao deus Moloch da acumulação primitiva não somente quando remetia, por intermédio do senhor, uma parte de seu foro ao comerciante e, por intermédio do Estado, uma parte da talha ao 'fabricante mas igualmente quando a vida de seus filhos era sacrificada na construção de novas vias comerciais e para a con­quista de novas regiões.
Os empréstimos estatais desempenharam um papel importante no processo de acumulação primitiva. Graças a eles, efetuou-se a transferência, sob forma de juros, de uma parte da renda anual dos pequenos produtores para as mãos dos credores capitalistas do Es­tado que efetuou o empréstimo. Escreve Marx: "A dívida pública torna-se uma das mais poderosas alavancas da acumulação primitiva. Como um passe de mágica, ela transforma o dinheiro improdutivo em força produtiva, transformando-o, assim; em capital, afastando toda necessidade de submetê-lo aos perigos e às dificuldades indissoluvelmente ligadas à aplicação do dinheiro na indústria e mesmo nas operações particulares de usura. Os credores do Estado, na realidade, nada arriscam pois as somas que eles emprestam são transformadas em títulos de dívida pública, facilmente conversíveis e funcionando como dinheiro líquido. Porém, mesmo deixando de lado a classe dos usurários ociosos e o enriquecimento deliberado dos financistas que atuam como intermediários entre o governo e a nação e também os que arrendam os impostos, os mercadores e os fabricantes privados em cujas mãos retorna, como um capital caído do céu, uma boa parcela de todo empréstimo do Estado, a dívida pública veio dar impulso também às sociedades por ações, ao co­mércio de valores de toda espécie, à especulação desenfreada, à agiotagem, numa palavra, ao jogo da Bolsa, à moderna bancocracia"26.
Detenhamo-nos um pouco sobre os métodos de acumulação primitiva que acabamos de enumerar, baseados principalmente na pilhagem da pequena produção e na pressão extra-econômica que esta sofre, e examinemos o que se passa durante o período de acumulação socialista primitiva.
No que concerne à pilhagem colonial, o Estado socialista que aplica uma política de igualdade de direitos das nacionalidades e de sua entrada voluntária em alguma forma de associação de nações, rejeita por princípio todos os métodos da violência capitalista. Esta fonte de acumulação primitiva lhe está fechada desde o início e para sempre.
Porém, a questão è diferente no que diz respeito à alienação em proveito do socialismo, de uma parte do sobreproduto de todas as formas econômicas pré-socialistas. A taxação das formas não-socialistas não só deve ocorrer inevitavelmente durante o período de acumulação socialista primitiva como deve inevitavelmente ad­quirir um imenso papel, diretamente decisivo nos países agrícolas, como a União Soviética. Devemos nos deter neste ponto de modo mais pormenorizado.
Vimos anteriormente que a produção capitalista podia começar a funcionar, e depois a se desenvolver, apoiando-se somente sobre recursos extraídos da pequena produção. A transição do sis­tema pequeno-burguês ao sistema capitalista de produção não teria podido realizar-se sem a prévia acumulação realizada em detrimen­to da pequena produção e posteriormente teria marchado muito lentamente se uma acumulação adicional, às custas da pequena produção, não tivesse acompanhado a acumulação capitalista efe­tuada mediante a exploração da força de trabalho do proletariado.
A própria transição supõe, enquanto sistema, uma troca de valores entre a grande e a pequena produção, durante a qual a última dá mais do que recebe. Durante o período da acumulação socialista primitiva a economia estatal não pode prescindir da apropriação de uma parte do sobreproduto do campo e do artesanato e, também não pode deixar de subtrair da acumulação capitalista em proveito da acumulação socialista. Não sabemos em que grau de ruína sairão da guerra civil os outros países nos quais triunfará a ditadura do proletariado. Mas um país como a URSS, com sua economia ar­ruinada e, de modo geral, muito atrasada, deverá atravessar seu período de acumulação primitiva recorrendo amplamente às fontes das formas econômicas pré-socialistas. Cumpre não esquecer que o período de acumulação socialista primitiva é o período mais crítico da vida de um Estado socialista após o término da guerra civil. Durante esse período, o sistema socialista não está ainda em condições de desenvolver todas as vantagens que lhe são organicamente inerentes, mas, ao mesmo tempo, ele destrói inevitavelmente uma série de vantagens econômica? próprias a um sistema capitalista evoluído. Percorrer mais rapidamente este período, atingir mais depressa o momento em que o sistema socialista desenvolverá todas suas vantagens naturais sobre o capitalismo é uma questão de vida ou morte para o Estado socialista. De qualquer modo, é assim que se coloca hoje o problema para a URSS e que talvez venha a se colo­car para uma série de países europeus em que o proletariado vencer. Nestas condições, contar apenas com a acumulação no interior do sistema socialista eqüivale a arriscar a própria existência da econo­mia socialista ou prolongar infinitamente o período da acumulação prévia, o que aliás não depende da boa vontade do proletariado. Na parte concreta desde livro, que será consagrado à indústria e agri­cultura da URSS, apresentaremos alguns cálculos numéricos con­cernentes ao longo período que deveremos esperar a recuperação da indústria soviética, mesmo em seu nível de ante-guerra, se dpoiarmo-nos apenas no sobreproduto da própria indústria. Em todo caso, a idéia de que a economia socialista pode se desenvolver sozinha, sem utilizar os recursos da economia pequeno-burguesa e em particular da economia camponesa, aparece indiscutivelmente como uma utopia pequeno-burguesa reacionária. A tarefado Esta­do  socialista   não  consiste  em  tirar  dos  produtores  pequeno-
burgueses menos que o capitalismo tirava mas tirar mais de uma renda ainda mais elevada que será assegurada ao pequeno produtor através da racionalização de toda a economia, incluindo a pequena produção, através da industrialização do país e intensificação da agricultura.
Outra fonte de acumulação socialista pode ser a taxação do lu­cro capitalista privado, quer dizer, através de deduções sistemáticas da acumulação capitalista. A natureza deste gênero de recurso pode ser diversa mas, evidentemente, trata-se também, no final das con­tas, de uma acumulação às expensas do trabalho dos operários, por um lado, e dos camponeses, por outro. Quando o Estado aplica for­tes impostos sobre as empresas capitalistas privadas, ele faz retor­nar ao fundo da acumulação socialista uma parte da mais-valia que teria recebido, permanecendo todos os demais fatores constantes, sob a forma de sobreproduto se ele próprio fosse proprietário das empresas consideradas. Os capitalistas desempenham aqui, em rela­ção ao Estado socialista, o papel que desempenhavam os proprietá­rios feudais em relação ao cavaleiros da acumulação primitiva. Exatamente do mesmo modo, a taxação úa classe dos kulaks rurais que exploram trabalho assalariado implica, no final das contas, uma acumulação às custas do trabalho dos assalariados agrícolas. Ao contrário, na medida em que o Estado socialista taxa os comerciantes, os especuladores, os capitalistas e os kulaks cujas rendas são parcialmente obtidas do campesinato que trabalham a terra de modo independente, temos uma acumulação ás custas do trabalho dos camponeses, diante da qual, como antes, os personagens indi­cados representarão, de um lado, acumuladores da acumulação capitalista e, de outro, uma instância intermediária do processo da acumulação socialista27.
No que concerne aos empréstimos estatais, que serviram de canal extremamente importante da acumulação capitalista primitiva, seu papel é diferente no período da acumulação socialista. Cumpre distinguir aqui dois sistemas de empréstimos, diferentes nos seus princípios. Nossos empréstimos semicompulsórios pertencem mais exatamente ao sistema de acumulação mediante procedimentos fiscais,  quer dizer,   acumulação   por   métodos   de  pressão  extra-econômica. Ocorre diferentemente nas operações de crédito do tipo dos empréstimos normais existentes em regime burguês. Tais em­préstimos - digamos, empréstimos por trinta anos, a 7%, junto a capitalistas ingleses - não podem ser diretamente classificados entre as fontes de acumulação socialistas porque o Estado soviético pagará os juros do empréstimo com suas rendas e, deste modo, funcionará como uma instância intermediária na acumulação e na explo­ração capitalista das massas trabalhadoras da URSS pela burguesia estrangeira. Mas, de outro lado, estes empréstimos podem constituir forte estímulo para a acumulação socialista trazendo, finalmen­te, para o fundo de acumulação socialista um juro mais forte do que ao fundo da acumulação capitalista. Falaremos deste tipo de empréstimo, sob outro ângulo quando da análise da significação eco­nômica destes empréstimos e das concessões28 estrangeiras num sis­tema econômico mercantil-socialista.
Antes de passar às formas da acumulação primitiva sobre uma base econômica, devemos mencionar ainda uma fonte de renda do Estado e, conseqüentemente, no sistema soviético, uma fonte de acumulação primitiva, que seria mais correto incluir entre os im­postos mas que, na aparência e formalmente, a literatura econômi­ca teórica não o faz. Refiro-me à emissão de papei-moeda. Nos meus trabalhos intitulados O Papel-Moeda na Época da Ditadura do
Proletariado e As Causas da Queda de Nosso Rublo, mostrei que a emissão constitui uma das formas de imposto num sistema de moe­da em processo de depreciação. Basta constatar aqui que a emissão aparece igualmente como um dos métodos de acumulação primiti­va. No que concerne ao período correspondente na história do sis­tema econômico burguês, a emissão não desempenhava o papel do fator auxiliar da acumulação capitalista. A deterioração da moeda que praticavam os príncipes feudais e os czares, a colocação em cir­culação de papel-moeda durante o período seguinte, representavam impostos estatais sobre toda a população e, inclusive e parcialmen­te, sobre os capitais monetários da burguesia. Mas quando o Estado é simultaneamente o órgão que dirige o país e o proprietário de um vasto complexo econômico, a emissão serve diretamente de ca­nal de acumulação socialista. Esta acumulação se opera tanto às custas das rendas dos pequeno-burgueses e capitalistas como pela redução do salário dos operários e dos funcionários do Estado. Per-cebe-se a que ponto esta fonte é importante pelo fato de que, desde a organização do poder soviético até a introdução definitiva de uma moeda estável a renda da emissão, inclusive as perdas do própiio Estado, atingiam a soma de aproximadamente 1.800 milhões de rublo-ouro. A emissão desempenhou também para o poder soviéti­co da Hungria - durante seus quatro meses de existência - o papel de um recurso financeiro dos mais importantes.
Passemos agora aos métodos de acumulação primitiva que conduzem à acumulação de capital por vias econômicas. Cumpre distinguir aqui a acumulação realizada na própria produção, às custas da mais-valia do proletariado empregado nas empresas e, de outro, a troca de uma menor quantidade de trabalho de um sistema econômico ou de um país contra uma quantidade superior de trabalho de outro sistema econômico ou país.
Examinemos de início, como fizemos anteriormente, os métodos de acumulação primitiva por meios econômicos durante o período do-modo capitalista de produção.
Comecemos pela nossa segunda subdivisão, quer dizer, pelo que chamamos atualmente de nossa política de preços. Encontramos, a este respeito, no Terceiro Livro de O Capital, uma passagem extremamente interessante que tem sido insuficientemente utilizada na literatura econômica marxista para a análise teórica tanto da exploração colonial como da exploração que o capitalismo fez das formas pré-capitalistas da produção em geral.
“O país mais favorecido recebe, quando das trocas, uma quantidade maior de trabalho contra uma menor quantidade, se bem que uma classe determinada se apropria desta diferença, deste exce­dente, como ocorre, de modo geral, nas trocas entre capital e trabalho. Conseqüentemente, na medida em que a taxa de lucro é mais elevada - como acontece geralmente num país colonial - isto pode marchar paralelamente, em condições naturais favoráveis, com um baixo preço das mercadorias”29.
Se consideramos qualquer país capitalista europeu, a Inglaterra por exemplo, e tomamos* por outro lado, o conjunto de suas co­lônias ou dos países semicoloniais ligados à Inglaterra por relações comerciais, podemos sempre verificar, analisando-se o valor que a Inglaterra exporta para suas colônias e o que ela importa, a desi­gualdade dos custos do valor trabalho na massa de mercadorias trocadas enquanto equivalentes. O exemplo mais patente e mais grosseiro deste fenômeno pode ser visto na troca de enfeites de ouro de um selvagem contra uma peça de tecido vermelho trazida da Eu­ropa por um mercador. Mas, mesmo em caso de comércio "nor­mal" com as colônias, o fenômeno notado por Marx continua a existir, pois um país tecnicamente pouco evoluído gasta em média, por unidade de mercadoria, mais trabalho do que um país de nível técnico mais elevado. Isto se relaciona com o nível de vida mais baixo da população trabalhadora e, particularmente, com o nível de vida e de salários mais baixo dos operários das colônias ou dos paí­ses economicamente atrasados. No caso de uma técnica equivalente, uma empresa do mesmo ramo nas colônias terá um lucro supe­rior em comparação com uma empresa análoga na metrópole. Isto è constantemente observado, permanecendo todos os demais fatores constantes, e só acontece porque - com base na lei do valor que assegura a relação dos preços num dado país - o valor e o preço da força de trabalho é mais baixo nas colônias do que na metrópole.
Conseqüentemente, o país com técnica mais evoluída, com salários mais elevados e ao mesmo tempo com preços mais baixos, encon­tra-se em condições de troca mais favoráveis do que o país com bai­xo nível tecnológico, baixos salários e preços mais elevados. Nas colônias, o lucro mais elevado sobre o capital investido baseia-se no aproveitamento desta diferença fundamental entre a situação das colônias e das metrópoles.
Deste ponto de vista, o lucro suplementar sobre o capital in­vestido nas colônias é, na realidade, um lucro que aparece quando , da passagem de um sistema técnico a outro, de um sistema econô­mico a outro de nível mais elevado. Em princípio, este lucro em nada se distingue do lucro suplementar que recebe o capitalista que introduz pela primeira vez, numa dada linha de produção, uma má­quina que reduz subitamente os custos de produção. Mas, conside­rando que o capital é, de modo geral, um movimento, considerando que a passagem de um sistema técnico a outro, de certas formações econômicas a outras (por exemplo, das formas pré-capitalistas às formas capitalistas) não se interrompe jamais, a exploração desta passagem "por uma dada classe" não é uma coisa fortuita mas um fenômeno permanente no decurso de todo o período de desenvolvi­mento capitalista. Este imposto, que a classe capitalista impõe ao desenvolvimento econômico da sociedade, é pago tanto pelos pro­dutores pequeno-burgueses da metrópole como pelos países colo­niais e semicoloniais considerados no conjunto de sua economia. No presente caso, somente nos interessa o período do começo do desenvolvimento capitalista. Este período tem peculiaridades que o aproxima um pouco do período do capitalismo monopolista. É necessário distinguir três períodos na história da exploração econômica que o capitalismo efetuou das formas pré-capitalistas. Hou­ve um período de juventude do capitalismo, teoricamente de livre-concorrência mas, de facto, de monopólio pois as primeiras empresas criadas pelo capital tiravam vantagem do nível dos preços esta­belecidos com base na produção artesanal, inteiramente incapaz de enfrentar uma ampla concorrência. Os grandes capitais, e as empresas capitalistas eram, ipso facto, um monopólio em mãos de poucas pessoas. Acontecia o mesmo com o capitalismo comercial na medi­da em que a falta de capitais, a magnitude do risco e conseqüentemente dos gastos com seguros e finalmente, a existência de organi-
cações monopolistas do comércio exterior que tinham surgido nestas condições (como a Companhia das Índias Orientais), faziam igualmente da exploração colonial baseada nas trocas um monopó­lio de um grupo muilo pequeno de capitalistas. Este período foi se­guido de um período de livre concorrência. Ela não suprimiu esta forma de exploração da pequena produção nem os métodos de acu­mulação aos quais nos referimos mas determinou seus limites, nas condições de um determinado equilíbrio. O terceiro período, enfim, é o do capitalismo monopolista. Durante este período, graças à criação de um sistema de organismos capitalistas nacionais protegi­dos da concorrência estrangeira por barreiras alfandegárias, am­plia-se novamente a exploração dos pequenos produtores de cada país realizada através dos preços de monopólio dos trustes. Esta ex­ploração volta a ser, como no período da acumulação primitiva, o privilégio de um pequeno grupo de tubarões capitalistas. No que concerne à correspondente exploração das colônias, observa-se aqui, de um lado, a tendência de cada grande potência capitalista colonial a estender às colônias a monopolizaçao do mercado inter­no e a defender este direito pelas armas. Por outro lado, graças à ex­portação de capital das colônias, o lucro suplementar proveniente das colônias adquire cada vez mais a forma de superlucro obtido por empresas que possuem o mesmo nível técnico mas cujo nível de salários é mais baixo. Esta progressiva substituição de uma forma de exploração por outra conduz, concornitantemente, a um dado nivelamento das condições da economia colonial com relação à das metrópoles. Este fato reforça precisamente a tendência dos diferen­tes capitalismos a reservar para si o mercado interno dos seus paí­ses, que deve fornecer, mediante uma acumulação reforçada, o que foi perdido em razão do desenvolvimento das indústrias nas colô­nias.
Voltaremos mais adiante à questão do enorme papel que de­sempenha a compreensão da lei de acumulação socialista o fato de o socialismo historicamente surgir do capitalismo monopolista e não do capitalismo de livre concorrência. Basta notar que a acumu­lação capitalista primitiva estava baseada não somente sobre a ex­ploração da pequena produção através de impostos, não somente sobre sua exploração feudal que constituía apenas um grau da acu­mulação capitalista mas também esteve mascarada por um sistema de trocas no mercado de quase-equivalentes, atrás da qual se escon­dia a troca de uma menor quantidade de trabalho contra outra maior. Neste caso, o camponês e o artesão eram explorados pelo capital aproximadamente da mesma maneira como os operários que só recebem - sob a forma de salário, de preço de sua força de trabalho no mercado - uma parte do produto seguidamente recria­do por seu trabalho.
Após esta incursão histórica no domínio da acumulação capitalista primitiva, passemos à análise dos momentos corresponden­tes do período da acumulação socialista primitiva.
A diferença com o período da acumulação capitalista primitiva reside, em primeiro lugar, no fato de que acumulação socialista deve realizar-se não somente às custas do sobreproduto da pequena produção mas também às custas da mais-valia das formas capitalis­tas de produção. Em segundo lugar, a diferença, aqui, é determina-daj>elo fato de que a economia estatal do proletariado surge histo; ricamente após o capitalismo monopolista e dispõe, conseqüente­mente de meios de regulação de toda a economia e dos métodos de redistribuição da renda nacional que não existiam na aurora do de­senvolvimento do capitalismo.
Comecemos pelas tarifas das estradas de ferro. Esta poderosa alavanca de regulação da economia, que se encontra inteiramente em mãos do Estado soviético, é muito pouco utilizada em benefício dessa regulação e inteiramente posta de lado como instrumento da acumulação socialista primitiva. O sistema de tarifas privilegiadas para certas cargas (carvão, petróleo, sal) aparece aqui antes como um meio de redistribuição dos recursos do Estado do que como uma taxação indireta do setor não socialista da economia. Do mes­mo modo, até agora é mínima a importância desses privilégios pou­co numerosos de que gozam as empresas estatais e as cooperativas comparadas com o setor privado. A utilização desta alavanca de acumulação primitiva é ainda inteiramente algo para o futuro. So­mente quando os transportes tornarem-se rentáveis em lugar de de­ficitários - com o estabelecimento de tarifas de estradas de ferro apropriadas baseadas na diferenciação entre as mercadorias do Es­tado e as do setor privado - será possível realizar a taxação sistemá-
tica dos produtores privados e dos negociantes, possibilitando as­sim, a apropriação de uma parte do lucro privado. É inútil demons­trar que tudo isso significaria um desses golpes desferidos contra a lei do valor que fazem da economia do período de acumulação so­cialista uma época de modificação e de limitação progressiva e, em parte, de liquidação desta lei30l.
Uma segunda e poderosa alavanca da acumulação primitiva é o monopólio do sistema bancário. Durante o período da acumula­ção capitalista primitiva, o crédito usurário aparecia como um meio de redistribuição da renda nacional das mãos dos senhores feudais para as da burguesia que nascia e se reforçava.
O crédito como instrumento de mobilização de recursos dis­poníveis da sociedade e de sua distribuição através da reprodução ampliada, não existia então, ou existia apenas em forma embrioná­ria. Ao contrário, durante o período da acumulação socialista pré­via, que a economia da União Soviética atravessa atualmente, quer dizer, durante os primeiros estágios deste período, o sistema de cré­dito estatal age mais a nível da distribuição de recursos disponíveis do país do que no da redistribuição da renda nacional. Isto pode parecer inexato na medida em que os juros recebidos pelos bancos sobre os empréstimos (excetuando-se o período em que a moeda de­preciava-se rapidamente) parecem muito elevados com relação às condições capitalistas normais, enquanto as operações de depósito são muito reduzidas. Mas não devemos esquecer um só instante esta fonte econômica real que torna possível a emissão de chervo-nets31 e as operações de empréstimos bancários a partir das fontes
desta emissão. Se o banco coloca em circulação 60 milhões de cher-vontsi sem variação na taxa de câmbio, isto significa economica­mente que, de um modo ou de outro, mercadorias no valor desta quantia, foram colocadas à disposição do Gosbank32 * em diferen­tes períodos. Se observamos que este "empréstimo sobre a circula­ção" se divide entre a economia estatal e a economia privada - su­pondo-se que esta divisão ocorra de modo proporcional à contri­buição de uma e de outra no volume das trocas monetárias e que os recursos deste empréstimo destinem-se quase exclusivamente ao fi­nanciamento da indústria e do comércio estatais e das cooperativas - estaremos diante de uma rápida evolução do processo de acumu­lação socialista. Uma análise teórica e numérica pormenorizada deste processo, assim como da ação de todo o sistema de crédito sobre a economia do país, será feita num capítulo especial do se­gundo tomo.
No que concerne ao problema da redistribuição da renda na­cional através do sistema de crédito, a tarefa principal ainda está para o futuro. Se o Gosbank impõe juros elevados às empresas esta­tais que recebem empréstimos a longo e a curto prazo, não teremos um processo de acumulação no setor estatal mas principalmente um processo de distribuição de recursos no interior do setor estatal. Uma redistribuição em favor do setor socialista dos recursos da economia privada sópoderá operar diretamente quandoos recursos da economia privada, acumulados no sistema bancário sob forma de depósitos, retornem à economia privada com juros mais eleva­dos, destinando-se ao fundo da acumulação socialista a diferença entre a soma global do que é pago pelo banco para os depósitos e o que ele recebe sob a forma de juros pelos empréstimos e outras for­mas de remuneração de seus serviços. A mesma coisa acontecerá se os recursos do Estado forem emprestados a juros mediante a con­cessão de créditos à economia privada. Entretanto, esta última ope­ração, numa situação de escassez geral de capitais no país e princi­palmente no setor estatal, embora permanecendo formalmente uma fonte de acumulação, é manifestamente desvantajosa atualmente
acumulação capitalista às custas do crédito estatal. Esta ope­ração só pode realizar-se em detrimento da operação mais vantajo­sa da concessão de crédito às empresas estatais pois a concessão de crédito a essas empresas estatais garante não somente o juro pago ao banco mas também a acumulação de capital nas empresas do Es­tado com base na produção. Nessas condições, a concessão de cré­ditos ao comércio e à indústria privada, que pode dar um juro anual de 10% ao banco, é menos vantajosa do que a concessão de crédito à indústria estatal. Esta pode pagar ao banco, digamos 8% de juros, mas receber de volta, através do processo produtivo, 15% do exce­dente sobre o capital que recebeu emprestado. Neste caso, é mais vantajoso para o Gosbank, enquanto banco, fornecer crédito à in­dústria e ao comércio privado, enquanto - do ponto de vista de todo o complexo econômico estatal, e do ponto de Vista da acumu­lação socialista no seu conjunto, e não apenas do setor do Gosbank - esta operação seria manifestamente deficitária. Assim se explica o fato que, atualmente, o Gosbank quase não finafteie o comércio e a indústria privada, embora estes estejam dispostos a pagar mais do que as empresas estatais, reservando para estas últimas quase todos seus recursos. Do ponto de vista da acumulação socialista, tal polí­tica aparece como a única correta.
Porém, no futuro, quanto a esse aspecto, a situação deve modi­ficar-se. Pode chegar um momento em que a concessão de crédito à economia privada se torne um(dos instrumentos mais importantes da redistribuição da renda nacional no interesse da economia estatal, e um dos mais importantes meios de submeter a economia privada aos centros reguladores da economia estatal. O sistema de crédito da União Soviética pode desempenhar, aqui, um papel particular­mente importante quando do desenvolvimento do crédito agrícola a longo prazo, notadamente se conseguirmos obter empréstimos importantes no Exterior e se o Gosbank ficar como o distribuidor desses empréstimos mediante a transferência dos recursos externos para os organismos econômicos soviéticos.
Vemos, assim, depois do que foi dito, que toda nossa política de crédito está atualmente submetida, e não pode deixar de estar, à lei da acumulação socialista primitiva.
Passemos agora ao comércio interno e externo.  Durante o período da acumulação capitalista primitiva, os dois tipos de co­mércio apareciam como um instrumento desta acumulação. Historicamente, a primeira forma de exploração é a da pequena produção artesanal pelo capital comercial. Este tipo de exploração, atra­vés do comércio e a execução de certas funções produtivas (forneci­mento aos artesãos de matérias-primas a crédito,etc), nada tem de comum com o comércio dos produtos fabricados pelos operários nas empresas capitalistas. Com efeito, no primeiro caso, o nego­ciante e o intermediário, que desembolsam cem unidades para a compra de mercadorias produzidas artesanalmente e obtêm, por elas, 150 sob pretexto de cobrir os gastos de transporte, etc, rece­bem 50 unidades provenientes da renda do produtor. A situação é di­ferente quando o capital comercial opera com mercadorias da pro­dução capitalista. O lucro comercial médio é apenas uma subtração da mais-valia criada no processo de produção capitalista. Neste ca­so, um lucro extra do negociante, que não se origina da produção capitalista, não pode ser ofoido senão quando das trocas do sistema capitalista com um meio não-capitalista, e às custas deste último. Este lucro extra pode surgir especialmente na ausência de uma ade­quada concorrência e, sobretudo, em condições especialmente favo­ráveis para determinados grupos que detêm o capital comercial, quando o próprio comércio (em conseqüência, por exemplo, de uma grande escassez de capitais no país) constitui uma espécie de capital destes grupos.
Quando o desenvolvimento da circulação das mercadorias de um país, no qual o papel principal pertence aos produtos da produ­ção pequeno-burguesa, efetua-se mais rapidamente do que o desen­volvimento da rede comercial e mais rapidamente do que o proces­so de acumulação do capital comercial, este último pode intensifi­car a exploração dos produtores não capitalistas num grau superior ao que conseguiria realizar numa situação em que existisse um exce­dente de capital comercial e uma concorrência satisfatória, Para o período de acumulação primitiva, com seu monopólio de fato tanto do capital comercial quanto do jovem capital industrial, não tem sentido colocar a questão teórica de saber se convém considerar este lucro extra, que cai nos bolsos do capital comercial nesta situação de monopólio, como um lucro do capital produtivo, que só se realiza no comércio, ou como um lucro do capital comercial especi­ficamente, na medida em que se trata aqui da pilhagem de pequenos produtores e não de operários. Ê necessário distinguir estritamente este tipo de lucro do lucro normal do capital comercial numa socie­dade capitalista evoluída, tanto mais que, numa empresa real, os dois tipos estão confundidos e nenhuma contabilidade os diferen­cia. Entretanto, a distinção entre um e outro tem uma enorme im­portância pois se trata efetivamente de duas fontes completamente diferenciadas deste lucro, e portanto de uma troca de material entre dois sistemas econômicos diferenciados, fato que se reveste de gran­de importância teórica quando da análise das fontes de acumulação socialista primitiva.
Passemos agora às trocas e particularmente ao comércio inter­no no sistema soviético. Devemos distinguir aqui; 1) as trocas no próprio interior do setor da economia estatal; 2) as trocas no interior da economia privada; 3) as trocas entre o setor da economia es­tatal e a economia privada.
No c|ue concerne à primeira subdivisão, nela não pode existir nenhuma tarefa positiva para a acumulação socialista. A economia das trocas reduz-se aqui ao intercâmbio econômico, à redução dos custos do processo de circulação. Estes custos representam di­retamente uma diminuição do sobreproduto da economia estatal e, no caso em que intermediários privados participam das trocas entre empresas estatais, eles constituem não somente uma diminuição do fundo de acumulação socialista mas também uma contribuição ao fundo da (acumulação capitalista "secundária". Do mesmo modo como os deuses de Epicuro aninhavam-se nos poros do Universo, também os intermediários privados, no primeiro período de formação dos trustes estatais no mercado livre esforçaram-se por instalar-se nos interstícios e fissuras que separam as empresas estatais entre si e aí coletar os "custos de circulação". A racionalização do comér­cio estatal implica a eliminação sistemática do setor estatal dessas sanguessugas da acumulação capitalista e conduz não somente à re­dução dos custos do setor estatal mas também à organização da cir­culação através de recursos deste mesmo setor.
No que concerne à segunda subdivisão, isto é, às trocas no interior da economia privada, ao contrário do que ocorre na segunda, é possível a acumulação socialista. Já falamos do método extra-econômico de acumulação a partir desta fonte, quer dizer, dos impostos sobre o comércio de produtos provenientes da economia pr­vada. Uma acumulação de outro tipo, quer dizer, com base no intercâmbio comercial, não somente é possível mas já se realiza parcialmente e, sem dúvida, deverá aumentar 33'. Um exemplo deste gê­nero de acumulação é encontrado nas compras de trigo e de produtos alimentares dos camponeses pelo Khleboprodukt34 * e sua revenda aos consumidores privados nos mercados urbanos. O lucro co­mercial assim obtido significa, na verdade, diminuição na renda dos produtores que vendem suas mercadorias a organismos estatais. Quando os organismos do comércio estatal e cooperativo distri­buem, junto aos consumidores privados, a produção não somente dos camponeses mas também dos artesãos e dos empresários priva­dos, obtendo com isso um lucro, esta parte do comércio estatal e cooperativo constitui uma fonte da' acumulação socialista que esta­mos examinando. A luta do comércio estatal e cooperativo com o comércio privado neste setor das trocas tem objetivos que, do pon­to de vista da acumulação socialista, não são negativos mas positi­vos. Ocorre neste caso (infelizmente, até o momento em pequena escala) uma transferência da acumulação proveniente do fundo de um dos sistemas em proveito de outro. O que será retirado do co­mércio privado, se todos os demais fatores permanecerem constan­tes, será adquirido pelo fundo da economia estatal. Digo "se todos os demais fatores permanecerem constantes" porque é possível de­senvolver, neste caso, uma política comercial não no interesse da acumulação socialista mas no interesse dos produtores pequeno-burgueses, política que teria como objetivo a redução das taxaçoes sobre suas rendas. Uma tal política seria racional? Tudo depende do que é mais importante para a economia estatal num momento dado: a redução dos preços das mercadorias postas à venda e eliminação do capital privado, ou acumulação na esfera da circulação. Econo-
micamente, em troca, esta política implica inevitavelmente uma re­dução do fundo de acumulação socialista, implica uma gratificação dada à produção privada, gratificação tanto mais pesada para a eco­nomia estatal quanto mais ela ê pobre em capitais e quanto mais lhe é desvantajoso aplicar o comércio uma parte dos capitais necessários para o investimento na própria produção, em vez de intensificar a mo­bilização dos recursos dos pequenos produtores com vistas ao desen­volvimento de cooperativas.
Aliás, num determinado estágio de seu desenvolvimento, o co­mércio estatal conduz seus negócios de modo inferior a que faz o comércio privado, sendo um dos seus problemas mais prementes re­duzir seus custos, se mais não for de modo a atingir o nível do co­mércio privado. É importante aqui colocar toda a questão de modo teoricamente correto porque não se trata da política do momento presente mas da compreensão dos processos fundamentais de de­senvolvimento de todo o período de crescimento socialista. Vere­mos mais adiante quais as enormes dificuldades que encontra o co­mércio estatal na concorrência com o capital privado, e como essas dificuldades situam os problemas fundamentais da construção so­cialista em geral. Devemos somente observar que, em razão de nos­sa enorme carência de capitais, e numa conjuntura de desenvolvi­mento muito rápido da circulação de mercadorias, o lucro comer­cial atinge proporções enormes que se assemelham à situação do período de acumulação capitalista primitiva. Nestas condições, a questão da acumulação adquire uma importância extrema: os êxi­tos do capital privado retarcjam consideravelmente o afluxo de re­cursos provenientes do meio pequeno-burguês para o fundo de acu­mulação socialista e devoram uma parte do sobreproduto da pró­pria economia estatal.
A terceira subdivisão, quer dizer, as trocas entre a economia estatal e a economia privada, constitui um ponto onde a acumula­ção socialista tem diante de si tantas tarefas puramente negativas -tal como no caso das trocas no interior de seu próprio setor - como tarefas positivas, quer dizer, a alimentação da economia estatal às custas do meio não-socialista. A este respeito, devemos examinar separadamente a realização da produção industrial do Estado fora do setor socialista, e a realização da produção da economia privada no interior do setor estatal.
Comecemos pelo primeiro processo, quer dizer, pelo movi­mento da massa de mercadorias da indústria estatal em direção do meio não-socialista. As tarefas que existem aqui, do ponto de vista da acumulação socialista, são negativas: reduzir os custos de circu­lação dos próprios órgãos, quer dizer, simplesmente, comerciar com menores despesas de funcionamento do aparelho comercial; e afastar o comércio privado de todo o caminho percorrido pela mer­cadoria dos trustes estatais, da fábrica até o seu ponto final, isto é, os consumidores.
No que concerne aos primeiros desses objetivos, trata-se de melhorar a organização dentro do próprio sistema econômico esta­tal. Ao contrário, o segundo objetivo tem uma significação muito mais importante porque está ligado à luta entre dois sistemas hostis para se apoderar do sobreproduto da economia estatal. Aqui o inimigo se encontra quase em nossa casa. Cumpre notar, a propósito, a diferença que existe nas relações mútuas, de um lado, entre o capi­tal comercial e ò capital industrial na época da acumulação capitalista primitiva, e de outro lado, entre o capital comercial privado e a indústria estatal na época da acumulação socialista primitiva. Se, durante o período de acumulação capitalista primitiva, o capital comercial extrai do capital produtivo privado uma grande parte da mais-valia criada na indústria, trata-se apenas de uma repartição diferente da mais-valia no interior de um mesmo e único sistema econômico. O que atualmente é acumulado em excesso pelo capital co­mercial a partir da mais-valia do capital industrial retornará ama­nhã à indústria; a passagem do capital excedente do comércio para a indústria constitui um processo ininterrupto, que se operou desde os inícios do aparecimento da produção capitalista. A questão é di­ferente quando a indústria, no essencial, pertence a um sistema e o aparelho comercial pertence a outro, a um sistema hostil, como no caso considerado.
A acumulação do capital comercial privado constitui então uma apropriação direta e irreversível do sobreproduto criado pelos operários da indústria estatal. Se o valor global anual dos novos va­lores mercantis criados pela indústria estatal entrados na circulação comercial eqüivale, por exemplo, a um bilhão nas vendas por ataca­do dos trustes estatais e, a varejo, esta massa de mercadorias se ven­de por um bilhão e meio, 500 milhões constituem uma apropriação
direta do sobreproduto da indústria em proveito do aparelho co­mercial. Se o aparelho comercial privado se apropria dos 4/5, ou seja, cíe 400 milhões, isto significa uma fonte de evasão das mais pe­rigosas para a acumulação socialista, e não somente da acumulação mas também da reprodução simples no sistema da economia esta­tal. Aqui temos a expropriação pelo capital privado não do sobre­produto da pequena produção, a partir da qual o capitalismo se de­senvolve historicamente e que, posteriormente, ele nunca deixa de explorar, mas a expropriação do sobreproduto da indústria socia­lista, fenômeno desconhecido da história econômica. A luta contra o capital privado, neste domínio/é para a economia estatal uma luta contra a pilhagem dos valores que ela própria criou. Levar pre­cisamente para este terreno a luta contra o capital privado é inteira­mente justa, como é inteiramente justo a tentativa de passar da re­solução dos problemas m.ais fáceis aos problemas mais difíceis, quer dizer, de começar pela conquista do comércio semi-atacado e antes de tudo, do comércio por atacado de produtos da indústria estatal.
Assim, no que diz respeito ao controle tio processo de troca de sua própria produção, a economia estatal resolve ela mesma uma tarefa de caráter negativo: não entregar ao capital privado o que pertence essencialmente ao próprio setor socialista, o que constitui seu próprio fundo, criado a partir de sua própria base produtiva.
Ocorre diferentemente no que diz respeito ao movimento dos valores da economia privada em direção da economia estatal. Aqui, a luta dos órgãos do coméfcio estatal com o capital privado é, em ampla medida, uma luta pelo sobreproduto da economia privada. Quando, por exemplo, o abastecimento da indústria de matérias-primas no mercado camponês é efetuado pelo capital privado e toda a comunicação, desde a produção da matéria-prima até o trus-te estatal, é cortada pelos intermediários privados, a diferença entre o preço de venda aos trustes e o preço de compra ao camponês constitui essencialmente uma apropriação da parte da renda dos camponeses. Ao contrário, se supomos que os próprios organismos estatais realizam todo o abastecimento de matérias-pTimas, tudo o que é retirado da renda do campesinato entrará no setor da econo-•mia estatal. No presente estágio da acumulação socialista primitiva, a luta com o capital privado é, ao mesmo tempo, tecnicamente mais difícil e de menor importância do que a luta contra a Pilhagem do sobreproduto próprio da economia estatal pelo capital privado. De outro lado, o sucesso desta última luta, quer dizer, o afastamento do capital privado da esfera da comercialização da produção da in­dústria estatal, intensificaria, sem nenhuma dúvida, o processo de transferência do capital privado na indústria privada, processo eco­nomicamente vantajoso em geral, e que não apresenta perigo numa situação de rápido desenvolvimento da economia estatal.
i Passemos agora ao comércio externo e ao sistema do protecio­nismo socialista (segundo a expressão do Camarada Trotsky)- A instituição do monopólio do comércio externo tem uma importân­cia absolutamente excepcional em todo o sistema econômjco socia­lista. Ela própria aparece, em primeiro lugar, como um dos órgãos da acumulação socialista. Ela constitui, em segundo lugar urn dos órgãos mais importantes de garantia do próprio processo desta acu­mulação sob todos seus aspectos e sob todas suas formas e, com is­so, um dos mais importantes instrumentos de lula contra a lei do valor da economia capitalista mundial. E, em terceiro lugar, esta instituição é um dos instrumentos mais importantes da regulação de toda a economia da URSS.
Convém se deter um pouco sobre o monopólio do comércio externo considerado somente como instrumento da acumulação so­cialista. Na medida do desenvolvimento do caráter mercantil da economia camponesa e do incremento das relações comerciais da economia soviética com a economia mundial, o volume das expor­tações aumenta. Considerando que a produção de nossa indústria, na soma global das exportações, antes da guerra desempenhava um papel secundário em relação às exportações agrícolas, consideran­do que em razão da recuperação da agricultura, devemos esperar o restabelecimento das proporções anteriores no volume das merca­dorias exportadas, é necessário contar também com um incremento das possibilidades da acumulação socialista a partir da renda da economia camponesa. Quanto mais a exportação dos produtos agrícolas for importante tanto mais forte será a dependência econô­mica desta última com relação à instância que liga a economia cam­ponesa ao mercado externo. Não somente o monopólio do comér-
cio externo coloca a pequena produção sob a dependência do Esta­do no que toca a realização dos excedentes, não somente coloca sua renda a serviço da acumulação socialista, como é também um ins­trumento importante para a obtenção de um lucro adicional através do mercado externo.  Existem ramos do comércio mundial nos quais a economia estatal da URSS tem quase uma posição de mo­nopólio. É suficiente lembrar o comércio da platina, em parte a do Unho, etc. O monopólio estatal do comércio das mercadorias ex­portadas, é verdade, não implica absolutamente, que a diferença entre os preços do mercado externo e do mercado interno se encon­tre inteiramente em mãos do Vnechtorg*'. Se, por exemplo, realizan­do sem intermediário a produção da indústria madeireira, o Severo-les** é senhor de todo seu sobreproduto, o Estado está longe de sempre encaminhar as mercadorias exportadas em todas as etapas de sua caminhada até os mercados internacionais. Se o trigo, por exemplo, é comprado diretamente dos camponeses pelo Khlebopro-dukt e vendido ao Exterior pelo Vnechtorg, a diferença entre o pre­ço de venda e o preço de compra passa, neste caso, inteiramente às mãos do Estado. Ao contrário, onde o abastecimento é feito por in­termédio de representantes do capital privado e, particularmente, onde os órgãos do comércio estatal compram dos atacadistas parti­culares as mercadorias de exportação, o lucro comercial do Estado é seriamente diminuído em beneficio do capital privado. Por outro lado, mesmo quando os produtos de exportação são obtidos e enca­minhados pelos próprios órgãos do comércio estatal, isto não signi­fica absolutamente que, no caso considerado, o Vnechtorg receba o lucro máximo.
Com nosso mecanismo de trocas extremamente imperfeito e oneroso, freqüentemente toda a diferença entre o preço de venda no mercado externo e os preços de compra (diferença que é freqüente­mente muito grande em termos percentuais) acaba por ser engolida pelos chamados gastos gerais, de modo que o lucro líquido é nulo. Mas a acumulação socialista, particularmente em sua fase primiti-
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va, está' longe de implicar sempre um aumento do capital produtivo na indústria. A criação de uma rede de organismos comerciais as­sim como a criação de uma infra-estrutura mínima necessária capaz de servir a economia estatal e afastar o capital privado das posições decisivas na luta econômica, é por si só uma acumulação socialista mas sob outra forma. Como veremos mais abaixo, uma visão estrei­tamente comercial e inspirada em observações sobre o capital pri­vado relativas a todos os processos internos à economia estatal, prejudica seriamente a compreensão da própria essência da forma econômica socialista durante seus primeiros estágios e amiúde, na prática, toma o caminho errado. Em razão da imperfeição deste ou daquele aparelho, freqüentemente não se percebe a importância deste aparelho no conjunto da economia estatal. E, no caso consi­derado, a extrema desvantagem, do ponto de vista comercial, de uma série de nossos órgãos estatais de comércio fala a favor da ne­cessidade de uma racionalização deste trabalho e não da substitui­ção desses órgãos pelos órgãos privados, "mais eficientes". Eles são mais eficientes se consideramos de um ponto de vista capitalista as deficiências do socialismo em seus primeiros estágios em lugar de apreciar, de um ponto de vista socialista, as "eficiências" do capita­lismo (ao qual deve-se associar imediatamente as crises, as guerras, etc), mesmo quando num domínio isolado, a forma capitalista leva vantagem '.35
Na análise precedente, partimos da hipótese de que os preços dos produtos da indústria estatal absorvidos pela economia privada representavam uma grandeza determinada. Cumpre examinar ago­ra a questão extremamente importante do papel desempenhado pela política de preços na acumulação socialista. Em primeiro lu­gar, examinaremos a política de preços das mercadorias exporta­das, quer dizer, os princípios de nossa política alfandegária e de seus resultados e, em segundo lugar, a política de preços de nossos trustes e órgãos estatais em geral.
Comecemos pela política alfandegária. Falamos da política al­fandegária em relação às mercadorias importadas, pois a taxação das mercadorias exportadas pelos organismos estatais e pelo Vnechtorg não constitui em si uma nova fonte de acumulação mas somen­te uma repartição diferente entre diversos órgãos estatais (por exemplo, entre o Narkomfín36* e o V.S.N.H.37** com seus trustes) de uma mesma e única fonte de lucro comercial ou de renda da circula­ção comercial 38'. A política alfandegária da URSS, com suas taxas quase proibitivas sobre os produtos da indústria leve importados e suas elevadas taxas sobre os produtos da indústria mecânica, cons­titui uma poderosa barreira que protege as trocas internas contra a ação da lei mundial do valor e que preserva nossa indústria socialis­ta, pobre em capitais e tecnologicamenteatrasada, dadtstruição sob os golpes da concorrência estrangeira. Examinaremos o papel do protecionismo socialista, assim como o do monopólio do comércio externo quando da análise do conflito da lei de acumulação com a lei do valor. No momento, só trataremos da política alfandegária como fonte de acumulação socialista.
A renda alfandegária soviética divide-?e em duas categorias di­ferentes, de importância desigual do ponto de vista da acumulação. A renda alfandegária proveniente dos meios e instrumentos de. pro­dução importados para o equipamento ou reequipamento da indús­tria estatal não é de modo algum um instrumento de acumulação. Com efeito, se o sindicato têxtil, por exemplo, compra na Inglaterra novas máquinas destinadas às fábricas têxteis por 30 milhões de rublos, e se paga dez milhões a título de direitos de importação, esta­mos somente em presença de uma simples redistribuição dos recur­sos do Estado entre a indústria têxtil e o Narkomfín. A soma total dos recursos estatais não mudaria um só copeque se não existisse absolutamente nenhuma taxação sobre as máquinas têxteis ou se o
dinheiro obtido com esta taxação ficasse com o sindicato têxtil. Po­de-se dizer, é verdade, que o aumento de valor do equipamento da indústria têxtil obrigará os trustes estatais a aumentar suas taxas de amortização e correlativamente os preços de seus artigos. Mas esta objeção é ilusória porque o sindicato têxtil, no presente caso, so­mente desempenha o papel de um canal de transferência para o Narkomfín de uma soma de dez milhões provenientes dos consumi­dores. É perfeitamente indiferente, no que tange à essência da ope­ração, que ele obtenha esta soma elevando o preço de venda para ,cobrir as despesas suplementares de amortização ou que eleve sim­plesmente este preço e remeta a soma ao Narkomfín a título de ces­são do lucro proveniente das empresas estatais e que importe com isenção os trinta milhões de equipamento.
Saber o que é tecnicamente mais adequado constitui outro as­sunto. A questão reduz-se precisamente a isso: para preços determi­nados, se todos os demais fatores permanecem, constantes, o fundo de acumulação da indústria têxtil é, como outros, uma grandeza constante. Se a taxação alfandegária r?cai sobre uma parte do fun­do desta indústria e não é transferida aos consumidores, trata-se de uma redistribuição no interior do setor estatal deste único e mesmo fundo. Se, em troca, ocorre um aumento dos preços, há uma am­pliação do fundo mas esta ampliação ocorre em conseqüência do aumento dos preços e não em conseqüência da política alfandegá­ria. O volume possível deste aumento é determinado por uma série de condições econômicas concomitantes e não pela importância das taxações alfandegárias.
Porém, de modo geral, será mais racional taxar os consumido­res de um dado ramo da indústria em razão da pressão das taxações do equipamento importado por esta indústria ou será mais racional estabelecer corretamente uma política de preços e fixar as condições de transferência do lucro das empresas estatais para a caixa do Nar-komfirí] Trata-se aqui de um problema técnico de acumulação que não afeta a produção da renda em si mesma.
Assim, a taxação dos instrumentos de produção importados pela indústria estatal é uma transferência de valor de um bolso do Estado para outro: do fundo de capital fixo da indústria estatal para a caixa do Narkomfm. A taxação das matérias-primas para a
indústria reveste-se, ela também, exatamente das mesmas carac­terísticas. Aqui também, para um dado nível de preços, o problema reduz-se a uma redistribuiçâo de recursos estatais no interior do mesmo setor estatal, ainda que, por outros motivos, esta taxação possa ser racional.
A questão se coloca de outra maneira no caso da taxação dos instrumentos de produção importados pela indústria privada e da importação de produtos de consumo. A taxação aparece inteira­mente como uma diminuição da renda da massa dos consumidores, ou do fundo de capital fixo da indústria privada. Com efeito: se o Vnechtorg importa açúcar, calçados, etc, do Exterior, na medida em que nossa produção for insuficiente, as diferenças entre os pre­ços do mercado interno e os preços de compra no Exterior serão pa­gas pelo consumidor e recebidas pelos órgãos do comércio estatal. Mesmo se o operário pagar a diferença, teremos também um au­mento da renda e da acumulação estatal, se bem que isto ocorra às custas do orçamento real do consumo da classe operária.
Esta situação se configura se os produtos de consumo importa­dos cobrem somente o déficit da produção nacional e são vendidos aos preços do mercado interno. Esta operação de importação não paralisa em nada o processo de acumulação e de reprodução em ou­tros setores da economia estatal. À situação é diferente quando se importa mais mercadorias do que o mercado pode absorver, consi­derando os produtos fabricados internamente, e quando eles são vendidos a um preço inferior ao da mercadoria nacional, Neste ca­so, a acumulação na esfera do mercado e através da taxação alfan­degária é obtida ao preço de uma redução parcial da produção in­terna, quer dizer, ao preço de uma restrição num dos setores, não somente da acumulação com base na produção mas também da re­produção simples. Se, em troca, importamos apenas produtos que o mercado comporta mas os vendemos a um preço mais baixo, o lu­cro de um dos pólos se acompanha de uma perda no outro. Uma política desse tipo pode ser vantajosa se as perdas são compensadas pelo ganho e o rebaixamento de preços conduz a uma ampliação da demanda e é, no final das contas, vantajosa para a indústria. A op­ção prática num sentido ou noutro será determinada, neste caso,pe­los resultados de um simples cálculo numérico. 122
Passemos agora à política dos preços dos produtos industriais. Esta política tem enorme importância não somente para a acumula­ção socialista mas também para a marcha normal da produção em geral, mesmo sem que esta última aumente; essa política é também importante para a economia camponesa e se relaciona às relações políticas entre o proletariado e o campesinato. No momento, só trataremos desta política do ângulo da acumulação socialista primi­tiva.
A questão teórica fundamental que cumpre resolver desde o início se reduz a esta indagação: de um modo geral, trocas equiva-Jentes são possíveis entre a economia estatal e o setor não socialista? Aqui é possível distinguir três possibilidades:
1) Primeiro caso: a economia estatal transfere mais valor do que recebe do setor não socialista. Neste caso, estamos diante de uma desagregação constante da grande produção socialista e de uma venda progressiva de seus produtos abaixo de seu custo de fabricação. Esta desagregação pode tomar ou a forma de venda abaixo do custo de reposição do capital fixo da indústria, que não é reconstituída em toda sua extensão, a salários constantes, ou tomar a forma de venda a preço vil da força de trabalho do proletariado industrial, ou, enfim, as duas formas concomitantemente. Durante o período inicial da NEP, tivemos uma série de exemplos de um ta-belamento dos produtos industriais que implicaram a venda a preço vil tanto do capital fixo quanto da força de trabalho do proletaria­do39 '. A transformação de tal política dos preços em sistema implica­ria, sem nenhuma dúvida, o esfacelamento gradual da grande in­dústria e a vitória da pequena produção sobre a grande. O leitor en­contrará exemplos concretos no capítulo que trata da economia in­dustrial. Não se deve, absolutamente, confundir este caso com aquele em que, diante da concorrência dos preços, há um aumento na depreciação do capital fixo mas, de fato, não ocorre a sua re-constituição porque as somas correspondentes recebidas se desti­nam ao aumento dos salários ou à constituição de estoques de ma-
téria-prima, quer dizer, ao aumento do capital circulante. Este em­préstimo temporário retirado das reservas do capital fixo em pro­veito de outras necessidades mais prementes desempenhou um im­portante papel na vida da indústria soviética. Este processo era ine­vitável em razão da extrema pobreza da indústria estatal no que tange aos capitais circulantes e se reproduzia freqüentemente, mes­mo com preços bastante elevados, acima dos preços de reconstitui-ção.
2) Segundo caso. Os preços dos produtos da indústria estatal são calculados de tal maneira que, quando das trocas dos produtos desta indústria com os da economia privada, há uma troca de equi­valentes, quer dizer, nenhum dos sistemas econômicos explora o ou­tro. Uma tal situação geralmente só é possível como episódio de duração muito curta. Julgar normal uma tal situação significa su­por que o sistema socialista e o sistema de produção mercantil pri­vado, incluídos num mesmo sistema econômico nacional, possam existir lado a lado com base num mútuo equilíbrio econômico. Tal sistema não pode existir de modo duradouro, pois um dos sistemas deve afastar o outro. Decadência ou desenvolvimento são possíveis aqui mas o equilíbrio é impossível. A este respeito, referindo-se ao capital enquanto processo de movimento, Marx escrevia; "o capital enquanto valor em auto-expansão não abrange apenas as relações de classe, uma sociedade de características determinadas que se baseia no trabalho assalariado. O capital, além disso, é movimento, um processo de circulação que passa por diferentes estágios e que por sua vez encerra em si mesmo três formas distintas do processo de circulação. Desta maneira, só se pode compreender o capital como movimento e não como uma coisa que permanece em repouso"40. Se o capital, tanto na sua circulação individual numa empresa qualquer como na medida em que consideramos o sistema capitalista no seu conjunto, em suas relações com o meio pré-capitalista, constitui um movimento, como a forma socialista nas suas relações com o meio pré-socialista pode ser, então, uma "coisa que permanece em repouso"? E que significa movimento neste caso? De duas, uma: ou a forma capitalista corrói rapidamente o bloco monolítico
da economia estatal que se formou na lava da Revolução de Ou­tubro e da guerra civil ou a forma socialista se desenvolve às expen-sas tanto de sua própria acumulação como do meio não-socialista, nutrindo-se igualmente de sua seiva. Se o capitalismo é movimento, o socialismo é movimento mais rápido ainda. E, o que o socialismo perde em rapidez no período da acumulação primitiva, do ângulo do desenvolvimento de sua base técnica e econômica - em conse­qüência de sua extrema pobreza em capitais - ele é obrigado a com­pensar mediante uma intensificação da acumulação às custas do meio não-socialista. Uma das maneiras mais importantes de efetuar • tal acumulação - além das que já foram descritas acima e do méto­do que analisaremos adiante - é a troca não-equivalente de valores com o meio não-socialista. Esta troca, com uma balança favorável à forma socialista, só é possível com uma correta política de preços dos produtos da indústria estatal.
3) Chegamos aqui ao terceiro caso, que é não somente possível mas inevitável em nossa situação, isto é, a política de preços cons­cientemente calculada com vistas à alienação de uma parte determi­nada do sobreproduto da economia privada sob todas suas formas. Uma tal política é possível porque a economia estatal do proletaria­do nasce historicamente a partir do capitalismo monopolista. E este último, a partir da supressão da livre concorrência, acarreta a cria­ção de preços monopolistas no mercado interno para produtos de sua própria indústria, recebe um lucro suplementar em razão da ex­ploração da pequena produção e prepara, assim, o terreno da polí­tica de preços durante o período da acumulação socialista primiti­va. Mas a concentração de toda a grande indústria do país em mãos de um truste único, a saber, o Estado operário, aumenta considera­velmente as possibilidades de realizar, através do monopólio, uma política de preços que não é outra coisa senão uma forma de taxa­ção da economia privada. Os obstáculos que a economia estatal en­contra nesta via não consistem em sua falta de força econômica para realizar tal política mas antes de tudo na necessidade de unir esta política a uma política de baixa de preços, o que só é realizável se o rebaixamento dos custos de fabricação se efetua ainda mais ra­pidamente. E isto supõe, por sua vez, a necessidade de reequipar a indústria logo que se atinja o limite da racionalização da produção no quadro da técnica antiga. Outra dificuldade provém do falo de
que o Estado não detém o monopólio de todos os ramos da indús­tria. A política de preços, conseqüentemente, deve ser calculada de tal maneira que a acumulação estatal não acarrete automaticamen­te uma acumulação capitalista privada. Enfim, não me refiro aqui às dificuldades de natureza política que decorrem das relações mú­tuas entre a classe operária e o campesinato, e que obrigam fre­qüentemente a falar de trocas equivalentes quando, com a socializa­ção da grande indústria, estas trocas equivalentes são uma utopia ainda maior do que no capitalismo monopolista.
A acumulação através de uma política de preços apropriada tem suas vantagens sobre as outras formas de impostos diretos e in­diretos sobre a pequena propriedade. O mais importante entre eles consiste na extrema facilidade da arrecadação que não exige nenhum copeque para mecanismos fiscais particulares.
A objeção de que a taxação mediante uma política de preços determinada41 ' afeta os salários dos operários e camponeses pobres é uma objeção absolutamente insignificante. Não São os camponeses pobres os principais compradores dos produtos de nossa indústria. O que eles perdem desta maneira eles podem receber do Estado sob a forma de crédito, sob a forma de acumulação forçada do capital fixo de sua propriedade. E, no que concerne aos operários, esta ob­jeção é tão pouco fundada como a que se faz a respeito dos impos­tos indiretos que podem ser compensados pelos salários. Eis um exemplo numérico; se. graças a uma política de preços correta, a classe operária, juntamente com toda a população, paga uma soma de 50 milhões, por, exemplo, à indústria estatal, o Estado pode fa­cilmente lhe devolver esta soma através do aumento dos salários, uma vez que a soma recebida dos consumidores burgueses e pequeno-burgueses não lhes é devolvida, servindo para aumentar o fundo de acumulação socialista. Voltaremos a este problema com mais de­talhe e com cifras em mãos no capítulo referente à economia industrial.
Passemos agora à acumulação com base na produção, quer dizer, no aumento dos valores criados pela reprodução ampliada no interior do próprio sistema por suas próprias forças.
Comecemos, como precedentemente, por lembrar os momen­tos correspondentes da acumulação capitalista primitiva. Definin­do o que se chama de período de acumulação capitalista primitiva, Marx escrevia: "Conseqüentemente, o que-se chama de acumulação primitiva não passa de um processo histórico de separação dos produtores dos meios de produção. Ela se apresenta como 'primitiva' pelo fato de formar a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde" '42, Em outros termos, o período da acumulação capitalista primitiva não acaba absolutamente com a orga­nização da primeira manufatura capitalista mas ainda continua quando a produção capitalista está em plena marcha. Para que o modo de produção capitalista possa tornar-se a forma de produção dominante, para que o período de acumulação capitalista primitiva dê lugar ao período da acumulação capitalista "normal", para que a separação do produtor dos meios de produção, quer dizer, a criação de uma classe de operários assalariados esteja suficientemente avançada, para tudo isso - e ao mesmo tempo para que ocorra a expropriação dos camponeses de suas terras e a passagem dos arte­sãos independentes para as fileiras do proletariado - um processo de exploração produtiva desses quadros deve realizar-se com rapidez suficiente. Para cumprir, em suas grandes linhas, a tarefa fun­damental da acumulação primitiva, “a separação do produtor dos meios de produção", o capitalismo deve, justamente para a realiza­ção desta tarefa e no processo de sua realização, começar e desen­volver sempre mais a acumulação com base na produção. Este pro­cesso se realiza através de seu desenvolvimento incessante; paralela­mente prossegue a acumulação através dos meios econômicos e extra-econômicos descritos mais acima. Mas o papel da acumulação com base na produção aumenta constantemente na medida em que os principais ramos da produção se transformam numa produção capitalista. Marx expressou nestes termos o desenvolvimento dialé­tico deste processo, em que as conseqüências tornam-se causas: "Assim, com a acumulação do capital, o modo de produção especificamente capitalista se desenvolve e, com ele, a acumulação do capital"43.
A fonte da acumulação capitalista com base na produção é a exploração da força de trabalho. As formas desta exploração são mais primitivas, mais grosseiras nos primeiros estágios, quando a mais-valia absoluta ocupa o primeiro lugar comparativamente à mais-valia relativa. Posteriormente, as relações entre elas se invertem.
No período inicial do desenvolvimento do capitalismo, a jornada de trabalho nas primeiras empresas capitalistas era mais longa do que na produção artesanal da Idade Média; existiam menos dias de férias; a intensidade do trabalho era forçosamente mais elevada. Conseqüentemente, a massa global do trabalho fornecido diaria­mente pelo trabalhador era maior do que na produção artesanal da Idade Média. Por outro lado, o salário era mais baixo nas primeiras empresas capitalistas do que na do companheiro artesão. Assim, sa­lários mais baixos, jornadas de trabalho mais longas do que no sis­tema econômico precedente, tudo isso com base numa técnica mais evoluída e numa produtividade do trabalho mais elevada, consti­tuiu as fontes da intensa acumulação primitiva com base na produ­ção, durante o período inicial do desenvolvimento capitalista. Du­rante esse período, o Estado interveio no processo de produção, não para diminuir ou atenuar a exploração, como ocorrefu no perío­do seguinte, mas para diminuir a resistência da classe operária a esta exploração. O Estado protegeu a acumulação primitiva quan­do apoiou o processo de desapropriação das terras dos camponeses, quando promulgou leis sobre a vagabundagem e enforcou impiedosamente os "vagabundos sem teto" que recusavam-se a submeter-se ao jugo do capital, quando promulgou leis fixando o salário máxi­mo e a duração mínima da jornada de trabalho. Os inimigos do so­cialismo, particularmente os adversários do sistema econômico so­viético, observam com maldosa satisfação que, durante os primei­ros anos da acumulação socialista primitiva, os salários se encon­tram, entre nós, em nível mais baixo do que antes da guerra e da re­volução. Convém lembrar a esses senhores que, durante o período da acumulação capitalista primitiva, as condições de vida dos ope­rários assalariados das fábricas capitalistas eram bem piores do que as dos companheiros e, a fortiori, dos mestres-artesãos da Idade Média, como foi provado por Marx no O Capital e por muitos ou­tros pesquisadores. E isto apesar da enorme superioridade técnica da produção capitalista sobre a produção artesanal. Em outros ter­mos, o agravamento aparente das condições de vida das massas tra­balhadoras durante o período da acumulação socialista primitiva, com relação à situação dos operários no sistema capitalista avança­do, diz tão pouco em favor da superioridade econômica do capita­lismo quanto a agravação da situação dos operários nas primeiras manufaturas e fábricas capitalistas, com relação ao artesanato, po­dia dizer em favor das vantagens econômicas da pequena produção independente sobre a produção capitalista.
Todos os principais métodos da exploração da força de traba­lho pelo capital foram descritas de modo suficientemente vivo no O Capital e são universalmente conhecidas. Desejo aqui me deter sobre" um dos aspectos dessa exploração que tem grande importân­cia para uma correta comparação com o período da acumulação socialista primitiva. Trata-se do enorme desperdício da força de tra­balho do proletariado em nome da maior economia possível dos meios de produção, no interesse, conseqüentemente, da redução do custo de fabricação das mercadorias. Eis o que dizia Marx a este respeito.
"Esta economia resulta em superpovoar de operários os locais exíguos e insalubres, fato que, na linguagem capitalista, denomina-se de economia de construção; ela exige, depois, amontoar máqui­nas perigosas num só e mesmo lugar, assim como a ausência de dis­positivos de proteção e de prevenção nos processos de produção que são, por sua própria natureza, prejudiciais à saúde ou perigo­sas, como as minas, etc. Não falamos aqui da ausência de todas as medidas destinadas a humanizar o processo de produção e torná-lo agradável ou pelo menos suportável para os operários. Do ponto de vista capitalista, isto significaria um desperdício, perfeitamente inú­til e absurdo. De maneira geral, a produção capitalista, apesar de toda sua sórdida avareza, é indiscutivelmente pródiga a respeito do material humano, tal como,graças a seu método de distribuição dos produtos com auxílio do comércio e graças ao seu modo de concor­rência, ela é também extremamente pródiga na dissipaçao dos re­cursos materiais, e com isso o que é ganho pelos capitalistas isola­dos é perdido para sociedade"44. Esta atitude bárbara a respeito da força de trabalho, atitude característica de todos os estágios do ca­pitalismo, atinge formas monstruosas justamente durante o período de acumulação primitiva, quando a luta econômica dos operários apenas começa e as relações de forças são extremamente desvantajosas para a classe operária.
Deste período cumpre reter ainda esta circunstância de que o capitalismo não arcava então cornos gastos de um exército indus­trial de reserva, economicamente necessário na etapa seguinte. Alem disso, os próprios capitalistas reduziam, tanto quanto possível, seu consumo pessoal a fim de ampliar a reprodução. Eis um pe­queno exemplo:
"Durante o primeiro período, os fabricantes de Manchester eram obrigados a trabalhar duro para sua subsistência". Em parti­cular, eles ganhavam bastante ludibriando os pais que lhes entrega­vam os filhos na qualidade de aprendizes e deviam pagar caro pelo aprendizado enquanto esses aprendizes quase morriam de fome. Por outro lado, o lucro médio era baixo e a acumulação exigia uma enorme poupança. Eles viviam como avarentos, juntando tesouros, não usufruindo dos ganhos de seu capital. "No segundo período, eles começaram a constituir pequenas fortunas, mas trabalhavam tão encarniçadamente como antes" - porque a própria exploração direta do trabalho implica trabalho, como o sabem todos os capatazes de escravos - e eles conservaram o mesmo estilo de vida, tão modesto quanto antes... No terceiro período, o luxo começou e as
empresas não paravam de ampliar graças ao envio de cavaleiros (caixeiros-viajantes a cavalo) para procurar encomendas em todas as cidades comerciantes do reino. Convém lembrar que, até 1690, existia muito pouco capital, ou mesmo nenhum capital de três a quatro mil libras esterlinas adquiridas pela indústria. Mas, por vol­ta desta época, ou um pouco mais tarde, os industriais tinham já aumentado sua acumulação e começaram a mandar construir mo­dernas casas de pedras em lugar de casas de madeira e de terra... Em Manchester, mesmo durante os primeiros decênios do século Xyill, o fabricante que oferecia a seus hóspedes uma taça de vinho estrangeiro suscitava ainda falatórios e mexericos entre os vizi­nhos". Até o aparecimento do maquinismo, os fabricantes que se encontravam à noite nas tavernas nunca consumiam mais do que um copo de ponche de seis pénce e um pacote de tabaco de um pen-ny. Apenas a partir de 1758 é que encontramos pela primeira vez - e isto marcou data - "um personagem se ocupando da indústria em sua própria carruagem". "O quarto período" - o último terço do século XVIII - "distingue-se por um grande luxo e prodigalidade apoiados no comércio que se expandiu por toda a Europa através dos caixeiros-viajantes e representantes" . "Que diria o bom dou­tor Aikin se ele ressuscitasse e lançasse um olhar na Manchester de hoje?'"'45.
Tratemos agora do problema da acumulação com base na pro­dução na economia estatal. A fonte desta acumulação é a mesma que existe no capitalismo, quer dizer, o trabalho da classe operária cujo salário deve ser mais baixo do que o valor global dos produtos criados por esta classe operária. Mas existe aqui uma série de dife­renças importantes, tanto nas condições gerais da acumulação so­cialista primitiva como nas formas de utilização da força operária e de sua remuneração.
É necessário, antes de tudo, lembrar o fato, já observado acima, que a acumulação socialista, de modo geral, só pode começar, depois da revolução proletária, enquanto o processo de acumulação capitalista primitivo começa e prossegue antes das revoluções burguesas. Em certos países, ele atinge seu apogeu durante a época des­sas revoluções (.Inglaterra, França); em outros, nessa época, eleja ultrapassou seus principais estágios (Alemanha).
Pela possibilidade de reconstruir todo o sistema econômico, a burguesia não tem que pagar um tributo, sob a forma de devasta­ção das forças produtivas e dos estoques anteriores, tributo que no século XX a revolução proletária e a guerra civil impõem. Não sa­bemos o que poderá custar, em outros países, a conquista do Poder pelo proletariado. Porém, entre nós, esta conquista custou tão caro que a acumulação através da produção não pôde nem mesmo co­meçar imediatamente. Houve um período prévio durante o qual a soma global dos valores criados no interior do setor estatal, que era distribuída por vias internas e externas a este setor, era inferior aos custos de produção. O período do Comunismo de Guerra colocava ao Estado, de um lado, não apenas um problema de acumulação e de reprodução ampliada nas condições de um novo sistema de pro­priedade mas o problema da vitória militar, e, de outro lado, o da alimentação desta comuna de pobres que lutava contra todo o mundo capitalista e que constituía, então, o proletariado e parte mais pobre do campesinato com seu exército. A economia deste período era o Comunismo de Guerra e de consumo. Sua tarefa constituía em se manter, em alimentar o povo, mal ou bem, e ven­cer. A característica deficitária da economia estatal não pode ser, em nenhum caso, um motivo para reduzi-la ou, mais ainda, para suprimi-la. A diminuição da produção só ocorria quando faltavam matérias-primas e combustível. A produção, deficitária do ponto de vista capitalista e do ponto de vista da acumulação, era necessária e útil do ponto de vista das tarefas específicas deste período. Citarei um pequeno exemplo com dados tomados arbitrariamente: se faze­mos o cálculo do preço de fabricação em empresas típicas do perío­do, obteremos o seguinte quadro: valor das matérias-primas e de­preciação dos instrumentos de produção, quer dizer, capital cons­tante: 1.000; salários, quer dizer, capital variável: 500; custo de fabricação: 1.500; valor comercial do produto a preços de ante-guerra: 600. Em tal situação, não somente não há sobreproduto mas existe um déficit colossal: 1.500 - 600 = 900. Entretanto, com o sistema de Comunismo de Guerra, face às suas tarefas, tal resultado não era absolutamente negativo. Os operários produziam para seus
salários, e alguma coisa mais, a saber, cem unidades iam alimentar a marmita coletiva da comuna do Estado. Essas cem unidades re­presentavam, não um sobreproduto mas um empréstimo tomado do capital fixo ou uma dilapidação do capital fixo. Mas esse em­préstimo, essa dilapidação constituíam alguma coisa de positivo neste período pois o capital fixo e os estoques de matérias-primas teriam permanecido no estado de capital morto se a força de traba­lho não os tivesse transformado em produtos de consumo. Poderia haver o caso, e isso aconteceu, em que o valor comercial da produ­ção era mesmo inferior ao salário (no presente exemplo, 400 contra 500). Mas neste caso, era racional continuar uma parte da produ­ção no momento em que, de todo jeito, era necessário nutrir os ope­rários e manter as despesas de manutenção e conservação das fábri­cas. Era mais vantajoso para o Estado ter um déficit de cem unida­des em produtos fabricados não medidos em termos de valor man­tendo as fábricas em funcionamento do que um déficit de 200 ou 500 com as fábricas fechadas. Tratava-se de um sistema econômico to­talmente original, radicalmente oposto por suas tarefas e métodos de cálculos à produção capitalista.
A respeito do estímulo fundamental da produção capitalista, quer dizer, do lucro, escreveu Marx: "A taxa de lucro é a força que coloca em movimento a produção capitalista; só se produz o que se pode produzir com lucro"46.
Mesmo durante o período da acumulação capitalista primitiva, o capital que passava do comércio à produção geralmente o fazia com lucro. Como regra geral, o capitalismo não conheceu - e não poderia ter conhecido em razão de sua estrutura - um período durante o qual teria "trabalhado" durante longo tempo no "vazio", quer dizer, sem lucro ou com prejuízo, cobrindo este último através de outras fontes da acumulação primitiva, situadas fora dos limites das empresas capitalistas. Ao contrário, o que não pode existir para o capital privado senão como exceção, como um episódio - a produção sem lucro, quer dizer, a produção sem mais-valia - foi a regra durante a fase do Comunismo de Guerra. Parafrasean­do o trecho de Marx que acabamos de citar, poderíamos dizer o seguinte a respeito do Comunismo de Guerra: produziu-se, e por todos os meios, tudo que podia aumentar os fundos de consumo do dia-a-dia, ainda que fosse através da dilapidação do capital fixo e do capi­tal circulante e sem a esperança de uma rápida reconstituição47'.
Porém, uma economia deste tipo não pode se manter por longo tempo. Com o término da guerra civil esta pré-história da acumulação socialista primitiva terminou e agora começa sua história. Entretanto, esta acumulação iniciou-se não pelo aumento do fundo anual de reposição da economia estatal mas pela redução do déficit anual dessa economia. Nisto reside o primeiro traço característico de nossa acumulação socialista comparada à acumulação capitalista.
A acumulação socialista não começa a partir do zero para elevar-se depois a níveis mais elevados: ela começa abaixo de zero. Um zero do sobreproduto do conjunto da economia estatal e ao mesmo tempo um zero do déficit - esta linha formada de pontos zero aparecia como o ideal quando da passagem do período do Comunismo de Guerra ao da acumulação socialista prévia48 2. Diferentemente do capitalismo onde a corrida para o lucro máximo constitui o principal estímulo da produção, existia durante o período do Comunismo de Guerra uma corrida para a quantidade máxima de produtos fabricados mesmo ao preço de uma déficit máximo. Depois do começo da acumulação socialista, o principal objetivo é a obtenção do déficit mínimo no conjunto da economia estatal (e, na medida do possível, para cada empresa considerada separadamente). Atualmente, quer dizer, em 1925-26, a indústria e os transportes estatais soviéticos, no seu conjunto, são lucrativos. Se o valor da produção bruta da indústria é de 2.500 milhões de rublos e a produção líquida é de 1.000 milhões não haverá acumulação se estes 1.000 milhões = v , quer dizer, se a produção líquida é igual à totalidade dos salários, e
se m - quer dizer, no caso considerado, não a mais-valia mas o sobreproduto49 ', é igual a zero. Ao contrário, se a soma de todos os salários é menor do que a dos novos valores criados durante o an.o pelos operários da indústria estatal, haverá então um sobreproduto, mesmo se o conjunto da indústria não somente nada acrescentou a este produto estatal como exigiu para si mesma muitos milhões em subsídios para a reconstituição do capital fixo e capital circulante.
Na época da guerra mundial, da revolução e da «uerra civil não so­mente não houve reprodução normal como ocorre um imenso des­gaste dos fatores produtivos básicos. No momento, assistimos" à sua reconstituição. Se, além disso, os recursos essenciais destinados à esta reconstituição fossem obtidos não mediante a acumulação com base na produção mas às custas do meio não-socialista pelos métodos anteriormente descritos, isto não significaria absoluta­mente que não existiu acumulação do primeiro tipo. Se a produção líquida anual da indústria estatal for igual, por exemplo, a 1.000 mi­lhões de rublos, se a soma de todos os salários pagos durante o ano e de 700 milhões, e se não somente esses 1.000 — 700 = 300 milhões de rublos (invisíveis para o orçamento do Estado) como também mais 200 milhões, (visíveis e muito pesados para o Narkomfin) são destinados à reconstituição do capital fixo e do capital circulante, isto não significa de modo algum que não houve sobreproduto. Ele está presente no caso considerado. Além disso, cumpre acrescentar aos 300 milhões a soma de todos os impostos locais e estatais pagos pela indústria durante o ano, as despesas de seguro, etc. Evidente, estou supondo no presente caso que o valor do capital c transferido ao produto, quer dizer, do capital constante, igual no exemplo dado a t .500 milhões, é calculado de modo correto e que as perdas da in­dústria resultantes e cálculos inadequados de depreciação e de pre­ços baixos não absorvem o sobreproduto criado pelos operários. Suponho, além disso, que o cálculo é correto também no caso inverso, isto é, que o resultado dos preços de monopólio mais eleva-
dos não é atribuído à produtividade do trabalho dos operários mas lançado sobre a economia privada como um imposto que, no caso particular, é cobrado de modo imperceptível graças a uma política de preços adequada.
Assim, desde o começo da acumulação socialista, o Estado di­rige a produção apesar de seu caráter deficitário, esforçando-se so­mente em reduzir as perdas da economia como um todo, sem se preocupar com o déficit das empresas individuais que cumpre fazer funcionar (se não teríamos que paralisar o sistema de transporte). Ê desta diferença fundamental com relação à produção capitalista que decorre toda uma série de diferenças da mesma natureza Mes­mo quando a linha de pontos-zero no domínio da acumulação é ul­trapassada, quando a economia estatal no seu conjunto realiza a mesma política de acumulação que realiza uma empresa capitalista individual, existe uma enorme diferença entre a acumulação capita­lista primitiva e a acumulação socialista primitiva. Esta diferença não reside somente no fato de que o princípio de acumulação numa empresa estatal isolada e os princípios da acumulação em todo o complexo são duas coisas diferentes, fato extremamente importante para a política econômica dos trustes isolados. Esta diferença está ligada à seguinte circunstância: enquanto as empresas capitalistas eram, desde o início, de nível técnico e econômico mais elevado do que as empresas isoladas do modo de produção que elas deveriam eliminar ou submeter, quer dizer, a pequena produção, a produção socialista é obrigada a atravessar um longo período de acumulação de recursos materiais, durante a qual uma empresa isolada da eco­nomia estatal será inevitavelmente de nível técnico mais baixo e economicamente mais fraca do que uma empresa capitalista con­temporânea de um Estado burguês evoluído.
Todo o sistema da economia estatal durante este período será inevitavelmente submetido, de um lado, ao objetivo da mais rápida acumulação possível de recursos necessários à reconstrução das ba­ses técnicas da indústria através da eletrificação e da redistribuição das instalações industriais de modo economicamente racional em todo o território e, de outro lado, ao objetivo da salvaguarda deste novo sistema econômico contra o sistema econômico capitalista, ainda forte no momento presente. Neste sentido, o período da acu­mulação socialista primitiva, com suas leis próprias, será inevitável não somente para os países agrícolas atrasados, como a União So­viética, mas também em parte, ao que tudo indica, para a economia socialista da Europa, na medida em que a economia européia atual (mesmo sem falar das destruiçoes que deverão resultar da guerra ci­vil) é econômica e tecnicamente inferior à da América do Norte ca­pitalista. É somente nos países industriais mais avançados que a acumulação socialista primitiva se baseará, numa escala bem mais ampla, nos sobreprodutos dos operários, cabendo um menor papel aos recursos extraídos das formas pré-soeialistas de produção, na , Europa e nas colônias.
Q-capitalismo não tinha esses dois objetivos a.serem atingidos na época da acumulação primitiva. Algumas medidas foram adota­das contra o artesanato mas elas foram antes o resultado de um fer­vor capitalista excessivo do que uma necessidade econômica na me­dida em que o capitalismo, mesmo nas condições de uma completa igualdade, esmagaria inteiramente a pequena produção. Por outro lado, nos países em que a industrialização avançou pouco, uma política alfandegária protetora, orientada para a defesa de uma dada indústria contra a concorrência de um país capitalista mais avançado, nada tem de comum, além de sua aparência superficial, com o protecionismo socialista. Trata-se aqui da proteção de uma indústria contra outra, pertencendo ambas a um único e mesmo siste­ma econômico. Diferentemente, discutimos aqui a proteção de um modo de produção que se encontra numa situação de fraqueza in­fantil contra outro sistema econômico que lhe é mortalmente hostil e que, mesmo no período de decrepitude senil, permanecerá inevita­velmente, durante algum tempo, econômica e tecnicamente mais forte que o novo sistema produtivo. Apenas por uma grande negli­gência teórica é que se pode ver no protecionismo socialista uma completa analogia com o protecionismo capitalista. A comparação só teria sentido no caso em que um país socialista, tendo uma in­dústria fracamente desenvolvida, estabelecesse taxas para proteger esta indústria contra a indústria socialista de um país mais avança­do, em lugar de entrar como parte que recebe auxílio de um orga­nismo econômico único do sistema socialista de todos os países em que o proletariado venceu. Teríamos então, tal como no capitalis­mo, direitos aduaneiros no interior de um mesmo sistema econômi-
co. Mas é pouco provável que tal situação tão absurda possa acon­tecer algum dia. Observemos a propósito que mesmo este exemplo, como outros extraídos da comparação dos sistemas econômicos ca­pitalista e socialista revela uma diferença de princípio entre um e outro uma vez que o capitalismo se desenvolve baseado na concor­rência e no antagonismo mútuo entre suas partes constituintes ao passo que a atração mútua, a assistência mútua e a tendência a um complexo econômico único constituem o método de expansão so­cialista no plano econômico (e também político), Este fato está liga­do não somente a necessidades militares mas também a necessida­des políticas.
Dissemos anteriormente que uma das características do capita­lismo, particularmente durante o período da acumulação primitiva, é sua atitude impie.dosa e bárbara, sua atitude de desperdício com relação à força de trabalho que busca utilizar como qualquer outra mercadoria comprada e contabilizada como elemento da produção. Os limites da exploração e da opressão são, a este respeito, os limi­tes puramente fisiológicos (o operário necessita comer e dormir) ou a resistência da ciasse operária. Conseqüentemente, a relação de forças entre operários e capitalistas na luta econômica aparece como fator primordial que limita o ritmo e as dimensões da acumu­lação capitalista com base na produção. Ao contrário, desde sua vi­tória, a classe operária, objeto de exploração, transforma-se em su­jeito da exploração. Ela não pode ter, a respeito de sua própria for­ça de trabalho, de sua saúde, de seu trabalho e das condições em que este se realiza, a mesma atitude que tem o capitalista. E isto constitui uma limitação definitiva ao ritmo de acumulação socialis­ta, limitação que a indústria capitalista nà.o conheceu no primeiro período de seu desenvolvimento. Vimos, é verdade, o entusiasmo da classe operária, as restrições heróicas às quais se submeteu nos primeiros anos da organização da indústria estatal, em particular durante a guerra civil. Mas essas circunstâncias não constituem ca­racterísticas de todo o período da acumulação socialista. A primei­ra diferenciação, perfeitamente visível, entre a economia estatal proletária e a economia capitalista típica reside no fato dé que em­bora a economia estatal trabalhe para o mercado e apareça, no domínio das trocas, como uma produção mercantil, ela começa  (mas começa somente agora) a desempenhar com relação ao operá­rio o papel de sistema de produção para o consumo dos produtores.
As leis que governam o movimento dos salários durante o período da acumulação socialista são inteiramente diferentes das leis dos salários durante o capitalismo na sua fase de acumulação primitiva. A prova mais concludente é dada pelo fato de que, em 1920, por exempio, quando o desemprego era menor e a falta de força de trabalho qualificada era particularmente grave num certo momento (o que exigiu certas medidas de parte do Narkomtrud50 *), %o salário era muito mais baixo do que.em 1924, com 1.300.000 de­sempregados em todo o país. No sistema capitalista, em que as dis­paridades entre o nível de salários e o valor da força de trabalho são determinados pela oferta e procura da força de trabalho, pelo grau de organização e capacidade de resistência da classe operária, rela­ções precisamente inversas deveriam ocorrer. Assim, durante este período, a lei dos salários esteve subordinada à lei da acumulação socialista, que encontra sua expressão nas restrições às quais se sub­mete conscientemente a classe operária. Estas restrições substituem a resultante da luta espontânea entre o Trabalho e o Capital que de­termina o nível de salários e o da mais-valia no sistema capitalista de produção, se todos os demais fatores permanecerem constantes, ou seja, antes de tudo, com um dado nível de valor da força de tra­balho. A acumulação socialista é uma necessidade para a classe operária mas ela se manifesta aqui como uma necessidade conscien­temente compreendida.
O fato de que, na economia estatal da União Soviética, apesar de toda sua pobreza, a jornada de trabalho de oito horas tenha sido solidarnente mantida e que anualmente sejam adotadas amplas me­didas de proteção ao trabalho, só é possível na medida em que a classe operária é dona da produção. Com o atual volume de produ­ção, algo de semelhante seria inteiramente impossível num sistema capitalista.
Entre as características do período de acumulação socialista primitiva, comparadas ã do período capitalista, é necessário notar o
enorme desemprego que exige importantes despesas que são desvia­das do fundo de acumulação - despesas que não tiveram que supor­tar os cavalheiros da acumulação capitalista primitiva que abriam suas primeiras fábricas e absorviam as reservas de força de trabalho da agricultura e do artesanato.
É necessário observar aqui que a horrível pobreza do período da guerra e da revolução, a enorme redução das necessidades habi­tuais da classe operária desempenharam e desempenham o papel de um dos fatores de acumulação socialista, no sentido em que a classe operária, com tal passado tão recente, facilmente restringe seu pró­prio consumo nos anos em que os objetivos da acumulação socialis­ta vêm em primeiro lugar.
A lei fundamental da acumulação socialista primitiva aparece como motor principal de toda a economia estatal soviética. Mas é provável que esta lei possua uma significação universal, com exce­ção talvez para os países que chegarão em último lugar à'forma econômica socialista, A partir do que foi dito acima, no que concer­ne à redistribuição dos recursos produtivos materiais, podemos for­mular esta lei da seguinte maneira: Quanto mais este ou aquele país. que passa à organização socialista da produção, é economicamente atrasado, pequeno-burguês e agrícola, menor será a herança que rece­be para seu fundo de acumulação socialista o proletariado do país con­siderado no momento da revolução social - e mais, relativamente, a acumulação socialista será obrigada a se apoiar sobre a apropriação de uma parte do sobreproduto das formas pré-socialistas da economia e menor será a parte específica da acumulação retirada de sua própria base de produção, quer dizer, menos ela se alimentará do sobreprodu­to dos trabalhadores da indústria socialista. Ao contrário, quanto mais este ou aquele país, em que a revolução social é vitoriosa, for eco­nômica e industrialmente desenvolvido, mais será importante a heran­ça material - sob a forma de indústria altamente desenvolvida e agri­cultura organizada de modo capitalista - que o proletariado deste país recebe da burguesia após a nacionalização; quanto menor for a parte específica no referido país das forças pré-capitalistas, maiz será ne­cessário para o proletariado reduzir as trocas não-equivalentes de seus produtos contra os das antigas colônias e mais o centro de gravidade da acumulação socialista se deslocar-se-á para a produção com base 140


nas formas socialistas, quer dizer, apoiar-se-á no sobreproduto de sua própria indústria e sua própria agricultura 51'.
O período de uma prévia acumulação socialista é não somente um período de reunião dos recursos materiais da nova economia com vistas à sua vitória definitiva sobre a forma capitalista mas é ao mesmo tempo um período de luta direta da economia estatal com a economia privada, luta que prossegue também ao longo da linha de distribuição das forças de trabalho. Uma das questões mais interes­santes da teoria da economia soviética é de saber como, sob que formas concretas, produzir-se-á a eliminação de todas as formas pré-socialistas pelo sistema econômico socialista, historicamente superior. Além disso, a questão se divide da seguinte maneira: em primeiro lugar, em que os métodos de luta da forma socialista com a economia privada, durante o período da acumulação socialista prévia, se distinguiriam dos métodos de luta na época da indústria autenticamente socialista e, em segundo lugar, que diferença existe nas relações mútuas da forma socialista com a forma capitalista, de um lado, com a pequena produção mercantil, de outro?
Que aconteceu quando da vitória do modo capitalista de pro­dução sobre as formas pré-capitalistas? Eis o que MaFx disse a respeito: "Com o progresso da produção capitalista desenvolvem-se também suas condições: ela submete ao seu caráter específico, às suas leis imanentes, todas as premissas sociais nas quais se realiza o processo de produção"52. "... A tendência do modo capitalista de produção consiste em transformar, na medida do possível, toda produção em produção mercantil: o principal instrumento desta ■transformação é precisamente o encadeamento de toda produção ao processo da circulação capitalista. A própria produção mercan­til desenvolvida já é produção mercantil capitalista. A penetração do capital industrial acelera em toda parte esta transformação e, concorrentemente, a de todos os produtores diretos em operários assalariados" 53'.
"... as mesmas condições que criam a condição fundamental da produção capitalista - existência de uma classe de operários assala­riados - facilitam a transição de toda a produção mercantil em pro­dução mercantil capitalista. Na medida em que se desenvolve, a produção capitalista age como instrumento de destruição e de de­sorganização em todas as formas de produção mais antigas que, mais especialmente orientadas para o consumo direto do produtor só transformam em mercadoria o excedente de seu produto. A produção mercantil capitalista faz da venda do produto o objetivo principal, no início, aparentemente sem afetar o.próprio modo de produção. Tal foi, por exemplo, o primeiro efeito do comércio capitalista mundial sobre povos como os chineses, os índios, os árabes, etc. Mas depois, tendo adquirido raízes, a produção capitalista destrói todas as formas da produção mercantil cuja base era constituída pelo próprio trabalho do produtor ou simplesmente pela venda, sob a forma de mercadoria, do excedente do produto. No começo, ela dá à produção mercantil um caráter geral; depois transforma progressivamente toda produção mercantil em produção capitalista" '54.
A produção capitalista só não é perigosa para a economia na­tural quando esta não tem nenhum ponto de contato com aquela, quando os dois sistemas constituem dois vasos absolutamente sem comunicação entre si. A economia natural simplesmente recusa o combate, na medida em que ela não é arrastada nas trocas monetárias de mercadorias. O capitalismo desempenha, então, o papel do atleta que, inutilmente desafia o outro para o combate e chama para a arena seu fraco adversário que permanece quieto, sem replicar. É somente quando este adversário mais fraco é arrastado para a arena capitalista através do desenvolvimento das trocas mercantis que ele é obrigado a dobrar a espinha na luta acarretada pela livre
concorrência.
É importante sublinhar aqui que as vantagens econômicas que cada empresa capitalista possuía sobre as formas econômicas mais primitivas eram amplamente suficientes, mesmo no período manufatureiro do capitalismo, para assegurar a vitória do modo capita­lista de produção sobre os modos de produção natural ou pequeno-burguês. A violência desempenhou aqui um papel auxiliar. Ela ace­lerava o processo de desenvolvimento capitalista, principalmente no sentido de forçar a economia natural a entrar na arena de luta. As teorias "manchesterianas" da burguesia não eram apenas o pro­duto de uma defesa contra o absolutismo e suas ingerências no pro­cesso econômico em detrimento do Terceiro Estado mas também o resultado de uma tomada de consciência do capitalismo relativa­mente à sua supremacia puramente econômica sobre as formas pré-capitalistas, supremacia que se apoiava sobre a velha experiência de uma luta de concorrência coroada de êxito. Cada empresa capitalista tomada isoladamente era ao mesmo tempo técnica e economicamente mais forte que qualquer empresa artesanal ou que um grupo delas. Uma peça de pano, fabricada em x unidades de tempo na empresa capitalista, foi a arma mortal do capitalismo em sua luta contra o tecelão manual, que produzia esta peça com uma despesa de duas ou três unidades de tempo de trabalho. Foi o consumidor que decidiu o resultado do combate, comprando o produto mais barato, ele votava pelo modo capitalista de produção e o apoiava contra o artesanato passando a ser comprador da produção capitalista.
A indústria estatal no período da acumulação socialista primi­tiva encontra-se numa situação completamente diferente da indús­tria capitalista no período correspondente. A mesma coisa ocorre com a empresa isolada da indústria estatal face à empresa tipica­mente capitalista do mesmo gênero. Isto não deve ser perdido de vista um só instante quando nos colocamos a questão cruciai de saber como, de modo geral, pode e deve desenvolver-se o processo de eliminação da forma capitalista em benefício da forma socialista. A noção vulgar, segundo a qual a forma socialista se imporá sobre a forma capitalista na luta concorrencial desde o primeiro período de sua existência, do mesmo modo como a fábrica capitalista impôs-se sobre o artesanato, constitui uma analogia grosseira com o passado, analogia superficial e desprovida de espírito crítico. Ela não esclarece a questão mas obscurece todo o problema. É evidentemente muito mais fácil fazer tais analogias superficiais e desprovidas de espírito crítico do que compreender a particularidade original do
período de acumulação socialista primitivo. Muitas dessas analo­gias podem ser encontradas em nossa literatura econômica depois do fim do Comunismo de Guerra com um êxito dos mais medío­cres. A política econômica do Estado proletário, na medida em que foi correta e não se perdeu no caminho de semelhante "machesteris: mo" socialista, realizou de modo tateante e espontâneo algo preci­samente oposto ao que decorria lógica e praticamente de analogias •desse gênero que, durante certo tempo, substituíram a análise mar­xista científica de nossa economia.
Na atualidade, nossa economia estatal é mais fraca, econômica e tecnicamente, do que a economia capitalista da Europa e da Amé­rica do Norte. A economia soviética da Europa será mais fraca, de­pois da vitória da ditadura do proletariado, do que a economia da América capitalista. No período inicial de seu desenvolvimento, a forma socialista - em conseqüência da ausência tanto das premissas materiais necessárias para a reedificaçâo de sua base técnica como das premissas necessárias à cultura e à educação socialista do prole­tariado trabalhador - não pode desenvolver todas as vantagens or* ganicamente inerentes ao socialismo que o tornam historicamente mais progressista do que o capitalismo. No curso do período da acumulação prévia, como dissemos mais acima, a forma socialista ainda não manifesta todas suas vantagens mas perde algumas delas em relação com as que oferece a economia capitalista. Ao contrá­rio, esta última permanece armada dos pés a cabeça de todas suas vantagens fundamentais, fato que, mesmo durante o período de declínio do capitalismo, geralmente torna impossível para a forma socialista a luta concorrencial èm pé de igualdade com o capitalis­mo. Para a economia estatal do proletariado seria um suicídio com­pleto (e dos mais estúpidos) tentar vencer o capitalismo na arena da livre concorrência a partir do estádio atual do desenvolvimento da economia socialista. Esta seria desintegrada e, finalmente, vencida nesta luta. É preciso não esquecer que toda nossa economia estatal é, sendo todas as coisas iguais, mais fraca do que a economia capitalista,, e uma empresa estatal é igualmente mais fraca do que uma empresa capitalista. (Para fins de comparação, diria que nossa indústria estatal, de 1918 a 1925 era ainda mais fraca do que nossa grande indústria de antes da guerra). Com relação à indústria capi­talista estrangeira, isto se revela no fato de que os produtos industriais soviéticos são, na sua maioria, mais caros e piores do que os produtos estrangeiros e não poderia ser de outro modo55 '. No inte­rior do país, a indústria privada só é mais fraca porque não permitimos condições de igualdade para a luta. As empresas mais importantes e tecnologicamente superiores se encontram, desde o início em mãos do Estado. E, em segundo lugar, e o que é mais importan­te, a indústria privada se encontra colocada, em todos os demais aspectos, em condições menos vantajosas que a indústria estatal. Graças a uma política socialista inteiramente correta, a economia esta-taj e conseqüentemente as empresas estatais isoladas - mas somente enquanto parte deste conjunto - são superiores às empresas privadas, quer dizer, são superiores nas condições de desigualdade. Porém, se isto acontece atualmente - e este é precisamente o caso - é porque a vitória da forma socialista sobre a forma capitalista no período de fraqueza econômica e técnica da economia estatal, quer dizer, no período de acumulação socialista primitiva, não pode de modo al­gum ocorrer como conseqüência da luta concorrencial de empresas estatais isoladas ou de grupos dessas empresas com empresas capitalistas análogas. Falta às empresas estatais, para serem vitoriosas neste tipo de luta, uma coisa importante que as empresas capitalis­tas possuíram na sua luta contra o artesanato: superioridade econômica e técnica individual sobre as empresas da forma historicamen­te inferior. Mas se a forma socialista deve vencer, e ela já começa a vencer progressivamente nesta etapa de acumulação socialista prévia (a própria acumulação, ou seja a reprodução socialista amplia­da já é um produto da luta, um de seus troféus), cumpre recorrer a outros elementos que escapam do quadro da luta concorrencial entre empresas individuais de dois sistemas econômicos diferentes. Em que consistem esses elementos? Onde reside esta particularida­de que distingue a expansão socialista da expansão capitalista e que torna a forma socialista mais sólida na luta contra a forma capitalista?
A primeira particularidade consiste no fato de que a economia es­tatal não se lança à luta e não pode se lançar a não ser como um todo único. Uma empresa estatal isolada, destacada do todo e abandona­da à luta concorrencial não se manterá e provavelmente será venci­da. Mas esta mesma empresa, fazendo parte do complexo único da economia estatal, tem atrás dela toda a força deste complexo e, com isso, não mais aparece como uma empresa ou truste isolada de tipo capitalista antigo, mesmo quando ela está "colocada em regime de contabilidade comerciar1 e é externamente semelhante a uma em­presa individual da economia mercantil ou a um truste capitalista. Do mesmo modo como o trabalho baseado na cooperação representa alguna coisa superior à soma da força de trabalho de indivíduos uni­dos por este trabalho cooperativo, o complexo integral da economia esta­tal é também alguma coisa a mais do que a soma aritmética de todas as empresas e de todos os trustes que a constituem. Uma força suple­mentar resulta, aqui, da imensa cooperação de novo tipo - conse­qüência do efeito de uma grande massa econômica organizada. Quando nossos trustes foram criados e submetidos ao regime de contabilidade comercial, a aparência externa desses trustes, seu aspecto capitalista e seus métodos capitalistas de cálculo deram a uma série de economistas vulgares o pretexto para criar algo no gênero de uma "teoria" da luta concorrencial entre as empresas estatais individuais e as empresas capitalistas - teoria que conseguiu de modo suspeito adeptos de formação marxista ou pelo menos, cultos, e espíritos superficiais e fílisteus da "ciência" burguesa.
Mas as necessidades práticas da imensa máquina da economia estatal e suas diferentes partes, a, política efetiva imposta a esta má­quina por sua necessidade econômica, são coisas muito mais sérias do que esses preconceitos pequeno-burgueses que constituem uma tentativa de fazer passar como o tipo normal das relações mútuas entre os trustes, e entre eles e o mercado privado, manifestações su­perficiais que aparecem temporariamente quando da passagem da economia estatal da época do Comunismo de Guerra ao período da acumulação socialista (ou como se convencionou dizer entre nós, à NEP56 '), quer dizer, manifestações de uma certa desorganização, de uma certa dispersão dos trustes, de uma certa ineficiência adminis­trativa, etc. Entretanto, desde que o período de reorganização, de ajustamento das forças econômicas da economia estatal às condi­ções de trocas mercantis foi alcançada, desde que foram dados os primeiros passos na nova conjuntura, começou um processo de "a-grupamento" da economia estatal como uma totalidade única, de procura tateante e de utilização prática das vantagens que a coope­ração de grandes massas econômicas oferece e, finalmente, de retro­cesso progressivo do campo da "livre" concorrência entre a econo­mia estatal e a economia privada '57.
Outro elemento que fortalece a forma socialista na sua luta contra a forma capitalista e que nada tem de comum com a luta da livre concorrência (muito pelo contrário) é a fusão do poder estatal com a economia estatal. No período da acumulação capitalista pri­mitiva, o Estado favoreceu este processo, utilizando inclusive a vio­lência; mas o apoio dado pelo Estado ao desenvolvimento capitalis­ta, tal como a oposição deste Estado, enquanto Estado feudal, a este desenvolvimento, nada tem de comparável ao papel que desem­penha o Estado proletário no processo econômico. No passado, so­mente o período do capitalismo de Estado militar da época da guer­ra imperialista pode oferecer alguma idéia do papel do Estado entre nós. A experiência do capitalismo de Estado militar na Alemanha durante os anos de 1914-18 mostrou como a fusão do Estado capi­talista com a economia capitalista pode aumentar a força e estabili­dade de um mecanismo político-econômico a um grau muito eleva­do. Na ditadura do proletariado, este processo de fusão vai muito
mais longe. O Estado proletário e a economia proletária constituem um todo único no pleno sentido da palavra. Esta combinação da força política e econômica aumenta a um grau muito importante tanto a força política do Estado como a força econômica da econo­mia estatal. Já mostramos acima o enorme papel que desempenham os métodos não-econômicos de acumulação socialista. O poder do Estado proletário sobre o sobreproduto da economia privada (nos limites, bem entendido, do que é economicamente possível, racional e tecnicamente acessível) não somente é em si mesmo um.instru­mento de acumulação primitiva mas também uma reserva perma­nente desta acumulação, um fundo potencial, por assim dizer, da economia estatal. De outro lado, o monopólio do comércio e nossa barreira defensiva de direitos aduaneiros, contra a qual se quebram as ondas da lei do valor da economia mundial, são uma realização da força política interna do Estado proletário e do apoio que lhe dá, externamente, o proletariado mundial. O alcance econômico da uti­lização destas forças, neste aspecto, tem uma importância direta e decisiva para toda a existência da forma socialista na infância de seu desenvolvimento.
Chegamos, assim, à conclusão de que, se existe entre a expan­são capitalista e'a expansão socialista uma semelhança formal, ou seja, se ambas possuem uma tendência imanente e específica de se desenvolver não somente utilizando seus próprios recursos, mas também através da eliminação dos modos de produção historica­mente ultrapassados e sua exploração constante, em compensação, os métodos de luta contra as formas antigas diferem completamen­te no capitalismo e no socialismo. O capitalismo obtém a vitória de modo disperso, nas condições 'de uma livre concorrência com as formas econômicas pré-capitalistas. O socialismo obtém a vitória graças ao caráter compacto da economia estatal que atua como um todo único e se encontra amalgamada ao poder político nas condi­ções de uma limitação sistemática e de uma quase surpresa da livre concorrência. A existência aparente de uma livre concorrência de­pois da supressão da política do Comunismo de Guerra não passa­va de uma medida pedagógica destinada aestimular e a racionalizar o trabalho das empresas estatais e não significava um retorno à for­ma de relações mútuas com o antigo modo de produção que, histo­ricamente, era próprio ao capitalismo no primeiro e segundo estágio de seu desenvolvimento. O socialismo tem como forma inerente sua própria forma de relações mútuas com as formas prê-socialistas que não pode, de modo algum, ser um renascimento da conjuntura de acumulação capitalista primitiva e nem tampouco um renasci­mento desta livre concorrência que o próprio capitalismo ultrapas­sou ao entrar na fase das uniões monopolísticas. Nada podemos di­zer das formas através das quais se realizará a eliminação pelo so­cialismo dos outros sistemas econômicos de produção durante o período em que a economia socialista terá começado a utilizar suas novas bases técnicas. Porém, para o período que atualmente exami­namos, referente à acumulação socialista primitiva, estes são os mé­todos para estimular a reprodução socialista ampliada: limitação ou mesmo supressão da livre concorrência; utilização total das van­tagens do monopólio estatal; luta da economia estatal como um complexo único; e combinação de meios econômicos e meios políti­cos.
Por outro lado, no que concerne as mútuas e diretas relações da economia estatal com o modo pequeno-burguês de produção, ocorre aqui, possivelmente, algo de tão novo na história econômica da sociedade humana como a própria economia socialista. Ao submeter o neo-capitalismo, a economia estatal submete também outras coisas que estão subordinadas ao neo-capitalismo, especialmen­te os elementos da produção mercantil simples de onde este capita­lismo de segunda moedura nasce. Mas, ao lado disso, todo um sis­tema de relações mútuas diretas entre a pequena produção e a economia estatal é inevitável. A natureza dessas relações mútuas deve ser definida da seguinte maneira. A pequena produção se desenvolve de três modos. Uma parte permanece na situação de pequena produção durante um longo período; a segunda se organiza em cooperativas58 ' através de uma via capitalista; a terceira, evitando este último caminho, se associa em torno de um novo modo de cooperação que constitui um tipo particular de transição da pequena produção para o socialismo, sem passar pelo capitalismo e sem ab­sorção da pequena produção pela economia estatal 59'.
Sob a ditadura do proletariado, esta nova forma de coopera­ção, das quais uma das fontes é manifestamente constituída por comunas e artels60 camponeses, deve ainda se desenvolver. Deste modo, não podemos oferecer uma análise teórica do que ainda não existe mas deve nascer. A este propósito, notemos que ainda não encontramos métodos de utilização do monopólio estatal em be­nefício da cooperação, que daria resultados máximos nas condições em que a liberdade de concorrência do capitalismo é limitada :61,
Para terminar com a questão em discussão, devemos acrescen­tar o seguinte: no período da acumulação socialista primitiva, embora a economia estatal não tenha ainda criado sua própria técnica ela está em condições de aproveitar as vantagens de um complexo unificado e organizado, inacessível ao capitalismo, o qual perde muito de suas forças em razão do caráter anárquico de sua estrutura. As tentativas de aproveitamento dessas vantagens durante o período do Comunismo de Guerra não deixaram de ter êxito mas seus frutos se perderam, engolidos neste abismo do déficit econômico global que caracterizou este sistema econômico. Atualmente essas vantagens seriam bem mais acentuadas se nós finalmente em­preendêssemos a tarefa primordial de organização e, ao mesmo tempo, de administração da economia estatal como um todo único, tarefa que é importante também do ponto de vista político.
Ê necessário ao mesmo tempo mencionar outra vantagem que. o capitalismo possui sobre a economia estatal ou seja de dispor com antecedência, num estágio inferior, do material humano que lhe é necessário: um tipo de agente da produção e distribuição educado no trabalho pelos estímulos capitalistas e adaptado à discipli­na capitalista. Ao contrário, o tipo de "trabalhador da economia estatal", enquanto tipo social particular, existe apenas em germe, fato que obriga o novo sistema econômico a se apoiar sobre os "ve­lhos tipos" sofrendo assim um enorme prejuízo em conseqüência da incompetência, dos abusos, etc. Como veremos num capítulo espe­cial do segundo volume, a acumulação de hábitos socialistas e a acumulação da cultura socialista têm um alcance muito importante na luta da produção socialista com a produção capitalista. Pelo menos, durante o primeiro decênio, o capitalismo possui neste aspecto uma manifesta superioridade sobre o socialismo porque detém os frutos de uma acumulação cultural secular.
Outra causa da firmeza da forma capitalista na sua luta com a forma socialista, que aparece de modo particularmente nítido no pequeno e médio comércio, consiste no fato de as empresas priva­das exploraremos trabalho de seus operários e empregados, e mes­mo dos patrões, transgredindo todos os limites autorizados pela legislação soviética relativa à proteção do trabalho. O sistema socialista não pode diminuir por estes meios seus custos de produção e de circulação. E durante o período em que o socialismo não pode vencer a economia privada no plano econômico, esta vantagem da economia privada tem enorme importância, especialmente no co­mércio. Com o sistema de auto-exploração dos comerciantes, na ausência entre eles de custos de contabilidade, com a confiança pes­soal do patrão em seus empregados (produto da adaptação do tra­balhador às exigências das relações capitalistas), é pouco provável que o comércio estatal chegue um dia a ter despesas menores por unidade de circulação. Uma vantagem do socialismo (a rigorosa proteção do trabalho) transforma-se aqui em benefício para o capi­talismo na medida em que se trata da competição em matéria de redução dos custos de circulação.
Depois de tudo o que foi dito, o problema dos empréstimos externos e concessões no período da acumulação socialista será mais claro para nós. Por um lado, o empréstimo exterior a longo prazo aparece como uma das formas de exploração da nova economia pelo capital estrangeiro. Porém, ele pode acelerar enormemente o processo de acumulação socialista. Ele implica um crescimento iso­lado, por saltos, do fundo de acumulação socialista; ele acelera o conse­qüentemente, o período em que a indústria estatal deve passar na escola preparatória para o socialismo. Os empréstimos externos dão a possibilidade de ocupar dezenas e dezenas de milhares de de­sempregados •atualmente afastados da produção em razão da falta de elementos materiais de produção entre as mãos do Estado. Com isso, esses desempregados podem transformar-se em participantes da acumulação socialista.
Teoricamente falando, os empréstimos estrangeiros consti­tuem uma síntese da acumulação capitalista e da acumulação socia­lista. Porém, podem tornar-se muito mais um fator de acumulação socialista do que de acumulação capitalista durante o período de declínio do capitalismo. Os juros que a economia estatal pagará por eles serão indubitavelmente menores do que os novos valores que entrarão no fundo de acumulação socialista. Ademais, está eviden­temente subentendido que o Estado tem plena liberdade para em­pregar tais créditos e que a obrigação de pagar os juros é o único laço entre o credor e o devedor. É interessante lembrar que os inves­timentos de capitais por parte de países economicamente decaden­tes nos organismos capitalistas mais jovens e em desenvolvimento desempenhou grande papel durante o período de acumulação pri­mitiva. Assim, quando Veneza perdeu sua hegemonia sobre o co­mércio mediterrâneo, os recursos acumulados pelo capital veneziano começaram a ser investidos nos Países-Baixos. Depois de certo tempo, entretanto, os capitais começaram a emigrar dos Países-Baixos para a Inglaterra, e depois da Inglaterra para a América. "No começo do século XVIII, as manufaturas holandesas eram amplamente superadas pelas manufaturas inglesas. A Holanda dei­xava de ser a nação comercial e industrial dominante. De 1700 a 1776, o empréstimo de enormes capitais, em particular para seu po­deroso concorrente, a Inglaterra, tornou-se uma das principais em­presas dos holandeses. A mesma coisa está acontecendo atualmente entre a Inglaterra e os Estados Unidos. Muitos capitais, que apare­cem atualmente nos Estados Unidos, sem certidão de nascimento, eram ontem ainda, na Inglaterra, o sangue capitalizado de crian­ças"62.
Em todo caso, se por exemplo, os recursos do decadente capi­talismo europeu pudessem emigrar em grande escala para a jovem economia soviética isto seria uma vantagem, não para o capitalis­mo mas para o socialismo, durante o período entre os dias atuais e a revolução proletária na Europa. Se, neste processo, a malignidade do espírito hegeliano mundial deve manifestar-se no fato de os capi­tais serem atraídos pelo lucro, nem por isso vale a pena se lamentar por um juro mais elevado do que o habitual63.
As coisas são diferentes no que diz respeito às concessões. As relações entre a acumulação socialista e a acumulação capitalista aqui são inversas. Quem organiza a acumulação é o capital privado, recebendo o Estado soviético, em troca, juros sob a forma de im­postos sobre a produção, aluguel, privilégios de compra, etc. Mas este aspecto negativo das concessões não reside no fato de o Estado soviético receber menos mais-valia do que o capitalista. Por uma concessão outorgada vantajosamente, nosso Estado recebe mais al­guma coisa para seu fundo de acumulação onde ele não teria geral­mente recebido nada sem o concessionário, sempre aumentando com uma soma mais elevada a renda nacional do país que se com­põe de v + m. O aspecto negativo essencial da concessão reside no fato de que a economia estatal do período da acumulação socialista primitiva, quer dizer, durante seu período mais fraco, deve aí entrar em contacto direto com o capital estrangeiro, armado dos pés à ca­beça de sua técnica e de seus excedentes de capital fixo e circulante, e que possui em sua retaguarda burguesa grandes reservas de capi­tal não utilizadas. Quando amplas concessões forem oferecidas nos ramos essenciais da indústria estatal, que sofre da falta de capital, ficará claro, desde o início, que essas empresas concessionárias não se encontram numa situação de igualdade com as empresas estatais, confirmando-se imediatamente as vantagens que a indústria capita­lista estrangeira desenvolvida possui sobre a indústria soviética. Aqui a barreira alfandegária será eliminada e haverá competição entre dois sistemas econômicos numa relação de forças desfavorável à economia estatal. O resultado final pode revelar que um exces­so de concessões infiltrado no organismo da economia estatal pode levar à sua decomposição, tal como o capitalismo, anteriormente, decompôs a economia natural que lhe era inferior. Esta decomposi­ção se expressará também, entre outras maneiras, pelo fato de que os operários das empresas capitalistas encontrarão melhores condi­ções materiais do que os da indústria estatal, o que não deixa de ter conseqüências políticas. Tudo isto, bem entendido, relaciona-se apenas ao primeiro período de existência da economia estatal ao período de acumulação primitiva. Em compensação, quando a for­ma socialista se reforçar econômica e tecnicamente, as concessões não mais serão perigosas. Mas, então, elas serão menos necessárias pois é somente a extrema pobreza em capitais que nos obriga a en­trar pelo caminho das concessões. O que acaba de ser dito não se aplica evidentemente às concessões adotadas numa escala modesta, fora dos centros econômicos da URSS e dos ramos de produção de­cisivos. As concessões florestais constituem um exemplo das conces­sões mais vantajosas e menos perigosas.
Em todo caso, a prudência no que diz respeito à política das concessões aparece como o reflexo da mesma necessidade econômi­ca que obriga a economia da URSS a manter por todos os meios o monopólio do comércio exterior e um protecionismo extremado. Novamente trata-se aqui de assegurar as premissas necessárias para a acumulação socialista pois, aqui também, estamos em presença da luta que se trava entre a acumulação socialista e a lei do valor da economia capitalista mundial.
A Luta Entre as Duas Leis
Passamos agora ao último problema, o mais interessante do ponto de vista teórico que é questão da luta entre as duas leis - a lei do valor e a lei da acumulação socialista no interior da economia soviética.
Vimos, na exposição precedente, que toda a política econômi­ca do Estado soviético e todo o sistema da economia estatal estão submetidos à lei da acumulação socialista. Não se pode falar de ne­nhuma lei de movimento dos salários na economia estatal soviética,
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nem de nenhuma teoria do salário sem a análise da lei da acumula­ção socialista e de sua manifestação neste setor econômico. A esta mesma lei estão submetidos - e se não o estão atualmente, estarão inevitavelmente no futuro - a política de preços referente à produ­ção da indústria estatal, o sistema das tarifas das estradas de ferro e as tarifas fluviais. À lei da acumulação socialista está submetida a estrutura da parte do orçamento constituída pelas rendas assim como o sistema de taxação da economia privada em benefício da economia socialista (evidentemente com as correções que devem ter em conta o que é economicamente possível e politicamente racio­nal). Ã lei desta acumulação está submetida a estrutura da parte do orçamento consagrada às despesas. O monopólio do comércio ex­terno e o sistema de protecionismo socialista constituem a defesa da economia socialista num dado estágio, quer dizer, a proteção de certo domínio reservado para a acumulação socialista contra a inter­ferência dos representantes da acumulação capitalista no interior desses limites. À lei da acumulação socialista está submetido todo nosso sistema de crédito, tanto por seus métodos de organização como pelos princípios de sua política e, antes de tudo, pelos princí­pios de repartição dos recursos creditícios do país. A esta mesma lei está submetida nossa política comercial no interior do país, com suas incessantes tentativas de expulsar a economia privada da circu­lação e de aplicar uma série de medidas orientadas para regulamen­tação do mercado interno. Esta regulamentação ' 64constitui uma luta em prol de outra forma de organização do trabalho e, do ponto de vista da repartição dos recursos materiais, constitui também uma limitação do ritmo e das dimensões da acumulação capitalista no processo de circulação, um aumento da acumulação socialista neste domínio e, ainda, a realização das duas coisas ao mesmo tem­po. Nossa política de proteção do trabalho é, de um lado, uma polí-
tica de salvaguarda e melhora qualitativa da força produtiva mais importante, do elemento mais importante da acumulação socialis­ta, ou seja, a força de trabalho do proletariado. Por outro lado, em sua extensão à economia privada, esta política implica uma redução do ritmo e das dimensões da acumulação capitalista.
Numa palavra: todos os processos essenciais no interior da economia estatal, todos os princípios universais da política econô­mica do Estado proletário estão antes de tudo e mais do que tudo submetidos, no seu atual estágio de desenvolvimento, à necessidade econômica da maior acumulação possível, da maior poupança possível. Esta política não é realizada em toda parte de modo sufi­cientemente completo e com um sentido de continuidade satisfató­rio; por exemplo, ela não é aplicada na luta contra o consumo im­produtivo, etc, mas isto é apenas uma questão de tempo.
Entretanto, a economia estatal soviética é apenas uma parte do conjunto econômico do país. Uma grande parte dos valores são criados na economia privada, mais exatamente na esfera da pFodu-ção mercantil simples, como veremos no volume seguinte a partir da análise numérica de nosso orçamento. No seu conjunto, nosso sistema econômico é um sistema mercantil-socialista. A lei da acu­mulação socialista tem suas raízes antes de tudo nos setores socia­listas mais importantes da economia, quer dizer, na economia esta­tal e apenas numa certa medida estende sua ação à economia priva­da enquanto um meio estranho. Num sentido contrário, a lei ima-nente da economia simples e capitalista, a lei do valor, estende tam­bém sua ação sobre a economia estatal. Dado que a economia da URSS constitui um exemplo absoíutamente sem precedentes na his­tórica econômica de coexistência de dois sistemas econômicos dife­rentes e antagônicos por sua natureza, com dois tipos diferentes de regulação, esta economia deve ser também a arena, não somente de uma luta mas também de certo equilíbrio e, conseqüentemente, na prática, de coexistência de duas leis econômicas distintas.
A lei da acumulação socialista está limitada pela "democracia" da economia mercantil, com suas tendências de desenvolvimento e seus próprios métodos de regulação. A economia mercantil* é limi­tada, englobada e, se quisermos, comprimida pela lei da acumula­ção socialista, pelas leis do desenvolvimento do corpo socialista que
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lhe é estranho. Deste modo, nossa economia, sem ser ainda socialis­ta, já não é puramente mercantil.
A questão da classificação econômica e científica de nosso sis­tema econômico suscitou e suscitará ainda numerosas discussões durante certo tempo (de curta duração, esperemos). Entre nós, du­rante uma época, foi considerado como o máximo do realismo em negócios e da coragem comunista tratar nossa economia como uma variedade da economia mercantil, apenas alterada pela existência da propriedade estatal no tocante à grande indústria. Este ponto de «vista supunha tacitamente a existência, na economia soviética, de uma única lei fundamental atuando na economia mercantil: a lei do valor. Se assim fosse, sob a influência desta lei que exerce sua pres­são do interior e do exterior, a indústria estatal deveria ser absorvi­da na NEP ou a dissolver-se imediata e completamente; o monopó­lio estatal deveria tornar-se cada vez mais fictício; as empresas defi­citárias deveriam fechar suas portas e somente as empresas rentá­veis deveriam subsistir, etc. O sistema de transporte e a metalurgia, em particular, deveriam deixar de funcionar ou passar às mãos do capital estrangeiro, etc. Nós nada observamos de tudo isso mas pelo contrário vimos como se desenvolve e se reforça progressiva­mente um processo precisamente inverso, que marcha paralelamen­te com o desenvülvimento do caráter mercantil da economia cam­ponesa. Por que as coisas se passam desta maneira? Se este processo se desenrola, não de acordo com a linha do regulador da economia mercantil mas contra ela, se a indústria estatal se desenvolve e se re­força de modo inverso e contra a ação da lei do valor, isto só é possível porque outra lei se opõe à lei do valor, modificando-a, des­viando-a ou eliminando-a parcialmente. Já discutimos um pouco qual é esta lei.
Esta conclusão tem enorme importância para a correta com­preensão de nosso sistema econômico e das tendências fundamen­tais de seu desenvolvimento. Porém, constatando a presença na economia soviética de duas leis fundamentais, não chegamos ainda a responder à questão de saber qual é a importância econômica própria de cada uma delas e sua dinâmica. Isto deve ser objeto de uma análise particular. Ê suficiente observar que somente a partir do reconhecimento de ambas as leis enquanto premissa de todo es­tudo concreto das tendências gerais da economia soviética seremos
capazes de compreender corretamente um conjunto de característi­cas novas e originais desta economia. Essas características e esses novos fenômenos não podem ser deduzidos do desenvolvimento da economia mercantil enquanto tal. Esta é a razão pela qual os que classificam a economia soviética como uma economia mercantil de­vem deixar esses fenômenos sem explicação ou acumular uma mon­tanha de "exceções" que reclamam gritantemente uma lei geral ou ainda (coisa que é mais freqüente) incluí-los judiciosamente na con­ta das particularidades de uma "economia sob a ditatura do prole­tariado". Considero que já ultrapassamos o estádio de uma "análi­se teórica" desta natureza e que a repetição, depois de muitos anos, destas mesmas frases sobre a NEP já nos fatiga há muito em razão de sua esterilidade e falta de originalidade.
Examinemos, portanto, até onde vai na economia soviética, a ação das leis da produção mercantil, particularmente sua influência em nossa economia estatal e, por outro lado, até que ponto as leis da produção mercantil são modificadas, ou parcialmente suprimi­das, pela lei da acumulação socialista- Comecemos pelas leis da produção mercantil.
A produção mercantil (tanto a produção mercantil simples como a produção mercantif capitalista) é uma produção para o mercado. Entre nós, após o fim do Comunismo de Guerra, as tro­cas de mercadorias por via monetária é que são dominantes na esfe­ra da circulação. Elas dominam não somente no interior de nossa economia privada (com exceção da economia natural, bem entendi­do), nas trocas entre a economia estatal e a economia privada mas também, em grande parte, nas troca,s no interior do setor da econo­mia estatal. E esta forma, quase universal, das trocas monetárias e dos cálculos em dinheiro é considerada por muitos como um índice da importância do domínio da aplicação e da força de dominação da lei de valor enquanto regulador de todo processo econômico. Esta circunstância está, sem dúvida, na base de toda esta supervalo-rização do papel e do alcance das leis da economia mercantil; ela impediu e impede ainda muitas pessoas de compreenderem a natu­reza real de nosso sistema econômico. Entretanto, é errado dizer: & rea em que prevalece a troca de mercadorias = grau de importântia da lei do valor. Isto é impossível de acontecer mesmo no que concerne ao capitalismo puro, na medida em que, desde o período monopo-lista do capitalismo, a lei do valor é parcialmente suprimida, acon­tecendo o mesmo com todas as outras leis da produção mercantil que lhe estão relacionadas. Modificações essenciais ocorrem nos próprios fundamentos da produção mercantil. Citando o economis­ta burguês, Kestner, que descreve as modificações que o capitalis­mo monopolista acarreta no sistema comercial, o Camarada Lênin escreveu em seu livro O imperialismo, Etapa Superior do Capitalis­mo: ''Traduzindo em linguagem humana, tudo isto quer dizer: o de­senvolvimento do capitalismo chegou aAim ponto tal que, embora a produção mercantil continue 'reinando' como antes e seja conside­rada como base de toda a economia, na verdade, ela já está minada ...65 \ E, neste mesmo livro, o Camarada Lênin escreveu em outra passagem: "t> velho capitalismo, de livre concorrência, com o regu­lador que lhe é absolutamente necessário, a.Boisa, é coisa do passa­do. Em seu lugar, apareceu um novo capitalismo que tem as carac­terísticas evidentes de alguma coisa transitória, que representa uma espécie de mistura de iivre concorrência e de monopólio. A questão-se coloca naturalmente: qual será a "etapa imediata' deste novo ca­pitalismo? Mas os sábios burgueses temem colocar esta questão" 66.
Sabemos agora, pela experiência, depois da Revolução de Ou­tubro, qual será a "etapa imediata" deste capitalismo monopolista. Ele não conduz, em todo caso, à liberdade de concorrência mas an­tes a um monopólio, consideravelmente mais vasto e universal do que o monopólio dos trustes americanos. Ele conduz ao monopólio do Estado sobre toda grande e média indústria, sobre os transpor­tes, o sistema de crédito, o comércio por atacado e, parcialmente, a verejo, e se cerca de uma poderosa rede de cooperativas. Neste sen­tido, nossa economia estatal aparece historicamente como a conti­nuação e aprofundamento das tendências monopolistas do capita­lismo e, conseqüentemente, também como continuação das tendên­cias ao declínio da economia mercantil e à liquidação ulterior da lei de valor. Seja no período do capitalismo monopolista, a economia
mercantil estava "minada", para repetir a expressão do Camarada Lênin, a que ponto esta economia, suas leis e, conseqüentemente também, sua lei fundamental do valor não ficariam minadas no sis­tema econômico soviético?
Entre o oceano de nossa produção mercantil simples e nossa economia estatal, se interpõem fraquíssimos elos intermediários de produção capitalista. Apenas no terreno das trocas, existe um elo importante sob a forma de capital mercantil privado. Nesta situa­ção, quer dizer, enquanto o capital mercantil privado ainda é fraco, o monopólio da indústria estatal aparece esmagador e só é limita­do, especialmente no interior do país, pela concorrência do artesa­nato e da indústria artesanal. Mas esta concorrência é limitada, em relação ao conjunto da economia estatal, pela superioridade técnica desta última e, no que concerne à indústria pesada, a concorrência é absolutamente impossível.
Mas, se não podemos julgar da força e do alcance das leis es­pecíficas da produção mercantil segundo o volume das trocas mo­netárias de mercadorias porque este modo de tratar do problema seria puramente formal e superficial, igualmente seria formal e su­perficial tirar conclusões relativas a influências das leis da produção mercantil sobre a economia estatal tomando como padrão desta in­fluência aimportância da massa de mercadorias da economia pri­vada que passa para a economia estatal e vice-versa. O fazendeiro americano participa das trocas de mercadorias com a indústria de seu país num grau bem mais elevado do que nosso camponês; seus cereais e matérias-primas são também extremamente necessários a esta indústria; ele próprio é necessário como comprador; entretan­to, isso não impede que, ao se submeter às relações das forças eco­nômicas, o fazendeiro se encontre sob o jugo do capital comercial, dos trustes e dos bancos e que não tenha nenhuma troca equivalen­te entre ele e a cidade. Não é possível dizer: quanto mais se desen­volve a circulação de mercadorias entre as cidades e o campo na URSS, mais a indústria estatal cai sob a dependência da economia mercantil e se submete à ação de suas leis. De certo modo, ê exata­mente o contrário. Nossa indústria se encontraria numa situação tanto mais grave quanto a economia camponesa tende a se transfor­mar em economia mercantil. A época do Comunismo de Guerra constitui uma prova disso. Quanto mais se desenvolvem as trocas de mercadorias entre as cidades e o campo tanto mais a relação de forças é determinada pelo grau de organização das partes em con­fronto. E, conseqüentemente, no caso considerado, é a economia camponesa que ficará mais dependente da economia estatal, se a in­dustrialização continuar numa taxa normal.
Para apreciar a influência das leis da produção mercantil sobre a economia estatal é necessário uma análise mais pormenorizada e aprofundada. Faremos esta análise no capítulo seguinte ao tratar­mos da economia agrária e do sistema de trocas da URSS.
• Aqui, só indicaremos de modo sumário, e de passagem, o as­pecto mais importante. Sem nenhuma dúvida, o caráter espontâneo das relações de mercado e, conseqüentemente, da lei do valor, exer­cem sua influência quando da compra pelo setor estatal da pequena produção mercantil que tem, simultaneamente, outros comprado­res no interior do país. A lei do valor exerce sua ação mesmo quan­do o privilégio das compras está entre as mãos do Estado mas, ao mesmo tempo, o campesinato está em condições de se dedicar a ou­tras culturas se o comprador monopolista oferecer ao produtor pre­ços inaceitáveis. Neste caso, a pressão da lei do valor não se expres­sará somente nos preços, quer dizer, numa expressão monetária, na periferia das trocas com a economia privada, mas também penetra­rá profundamente no interior do setor estatal e sua influência reper­cutirá sobre os cálculos não somente do ramo de produção afetado mas também dos ramos limítrofes, porque ela afeta, entre outras coisas, o nível geral de salários.
Porém, pode-se dizer que há muitos valores deste gênero nas trocas da economia privada com a economia estatal? Qual é sua im­portância específica? A influência da Isi do valor é muito forte no que diz respeito às trocas de produtos alimentícios de origem ani­mal (carne, manteiga, ovos) e de matérias-primas tais como couros, peles de carneiro, lã, onde há muitos compradores concorrentes e onde o próprio produtor, ante uma conjuntura desfavorável de mer­cado, intensifica a elaboração artesanal de sua própria matéria-prima, boicotando a cidade. A influência é menor nas relações de mercado quando do intercâmbio de outras matérias-primas, tais como o cânhamo, o linho e, particularmente, o algodão. Aqui, é verdade, os preços máximos são determinados pelo mercado exter­no, quer dizer, pela lei do valor da economia mundial. Porém, a
enorme margem de diferença que separa a média dos preços inter­nos dos preços do mercado externo, faz com que o controle dos pre­ços se encontre, numa grande proporção, entre as mãos do exporta­dor monopolista, ou quase monopolista, do processamento indus­trial, quer dizer, o Estado, Enfim, no comércio de cereais, o Estado em grande medida é senhor da situação no que toca a fixação dos preços. Poderia parecer que, neste setor, o jogo das forças de mer-do seria mais livre do que em qualquer outra parte. Entretanto, na realidade, pode acontecer o inverso. Quando de uma má colheita, o caráter espontâneo da oferta e da procura aparece em primeiro pla­no no setor do comércio de cereais mas, quando de uma colheita média, ou quando há excedentes que devem ser vendidos no exte­rior, é o Estado que é senhor da situação. Durante os difíceis anos de 1920 e 1921, - onde, ademais, houve uma semeadura insuficiente - o Estado restringiu fortemente a ação do elemento espontâneo do mercado interno através da repartição, através do imposto in natura e através da importação de cereais do Exterior.
Atualmente, em compensação, face a excedentes, o Estado atinge seus objetivos de modo mais feliz graças ao monopólio da exportação de cereais. Tendo o controle sobre centenas de milhões de puds67 excedentes, ele é o senhor igualmente dos preços inter­nos. A experiência do outono de 1923 mostrou suficientemente que
na presença de excedentes, o retardamento das operações relativas aos cereais, eqüivalendo ao boicote temporário que o Estado impôs sobre os cereais mercantilizáveis dos camponeses, juntamente com a cobrança dos impostos, fez cair, em certos lugares, o preço até 20 ou 30 copeques por pud de centeio,quer dizer.seis a sete vezes abai­xo dos preços do ano de 1920-1921. Acontece o mesmo em tempos normais, quer dizer, quando de uma colheita média. No futuro, ou seja, com o desenvolvimento do comércio de grãos e, o que significa dizer a mesma coisa, com o desenvolvimento do caráter mercantil da economia camponesa, o papei regulador do Estado neste domínio (nos limites traçados pela lei mundial do valor) não diminuirá mas aumentará [bastando apenas que a indústria se desenvolva e
que a satisfação da demanda efetiva do campesinato prossiga nor­malmente e não retroceda, como aconteceu em 1924-6]. *68
Mas as leis da produção mercantil exercem também sua ação sobre a economia estatal num outro sentido. Quero me referir à venda da produção da industria estatal no mercado privado. Nossa indústria trabalha para a demanda do mercado. Isto acontece tanto no caso em que a demanda vem do interior do setor estatal como no caso em que ela vem de fora. Mas as relações de mercado no inte­rior do setor estatal de jeito algum decorrem organicamentedas leis irpanentes do desenvolvimento da economia estatal nem de sua pró­pria estrutura. Neste caso, as relações de mercado são formais, es­tão ligadas a economia estatal pelo lado externo, pela forma de suas relações com a economia privada. A regulação da demanda da in­dústria estatal em produtos desta mesma indústria pode ir muito longe. Sempre conservando a forma mercantil e as regras monetá­rias, pode-se chegar, aqui, a uma planificação muito avançada na repartição das encomendas, apesar de todas as oscilações que pro­vêm dos ramos diretamente ligados à economia privada. Quanto às trocas com este setor privado, temos aqui uma outra questão. Neste ponto, a proporcionalidade do desenvolvimento da indústria esta­tal depende da proporcionalidade do desenvolvimento da economia privada - sendo que esta última proporcionalidade se estabelece de modo espontâneo.
A indústria estatal está aqui estreitamente ligada à economia privada. E é justamente sua ação sobre a demanda do mercado que constitui a premissa necessária da própria acumulação socialista. Se a acumulação às custas da economia privada implica um balanço positivo de valores trocados em benefício da economia estatal, esta balança será tanto mais favorável - se todos os demais fatores per­manecerem constantes - quanto mais importante for o volume des­sas trocas. Mas, por esta porta que materializa a dependência da economia estatal face à demanda efetiva da economia privada, as oscilações do elemento espontâneo da economia privada abrem uma porta para o interior da economia estatal. Estas oscilações não
podem ser inteiramente suprimidas mas podem ser limitadas por uma política de preços planificada e pelo desenvolvimento planificado da economia estatal, que necessita ter em conta, previamente, a economia privada.
Além disso, a força da influência da economia privada sobre a economia estatal expressa o fato de que esta última - na fase da acumulação socialista primitiva e diante de uma extrema pobreza de capitais - está submetida, durante seu desenvolvimento, ao volu­me da demanda efetiva e não pode escapar das leis da produção mercantil e intensificar progressivamente o ritmo da passagem para a produção socialista a fim de poder satisfazer a demanda de bens1 de consumo dos próprios trabalhadores do setor socialista. Cumpre ver que o aumento progressivo do fundo de reprodução às expensas das trocas com a economia privada só é possível através da deman­da do mercado, com todas as conseqüências daí decorrentes. Na ausência de outras formas fundamentais de ligação entre a econo­mia privada e a economia estatal que possam ocorrer fora das tro­cas de mercadorias no mercado, são estas últimas que se tornam, elas mesmas, uma premissa necessária da acumulação socialista.
A ação da lei do valor numa situação de livre concorrência - quer dizer, no seu elemento social natural - distingue-se essencialmente, portanto, de sua ação na economia soviética e, afortiori, na economia estatal. Aqui, a diferença é mais ou menos a mesma que existe na força de colisão de uma pedra que cai de grande altura na água ou no fundo de uma bacia. Quanto mais a economia estatal estiver organizada, quanto mais seus diferentes setores estiverem es­treitamente ligados através de um plano econômico operacional tanto mais ela constituirá um todo econômico compacto, tanto mais sua oposição à lei do valor será forte, tanto mais sua influência ativa sobre as leis da produção mercantil será grande e tanto mais ela própria se transformará, com sua lei de ferro da acumulação so­cialista, no mais importante fator de regulação do conjunto da eco­nomia, inclusive do setor privado.
Esboçando este balanço preliminar da ação da lei do valor e da lei da acumulação socialista na economia soviética, chegamos à conclusão de que nenhuma análise científica de nossa economia é 164
possível se nào reconhecermos a presença dessas duas leis e se não estudarmos o produto de sua ação mútua.
Agora estamos em condições de oferecer uma formulação mui-lo mais completa da lei da acumulação socialista primitiva, na me­dida em que esta lei não somente nos dita, com inelutável objetivi­dade, um volume determinado de acumulação de recursos materiais da economia estatal e da economia privada com vistas à reprodu­ção ampliada mas também se opõe à lei do valor em todos os fron­tes de luta, enquanto regulador de um tipo de economia diferente, antagônico à produção mercantil. Esta definição, cujos diferentes aspectos serão mais nitidamente sublinhados quando analisarmos a lei do valor na economia soviética, pode ser resumida da seguinte maneira:
Entendemos por lei da acumulação socialista primitiva a soma de todas as tendências conscientes e semi-espontâneas da economia es­tatal que estão orientadas para a ampliação e reforçamenfo da organi­zação coletiva do trabalho na economia soviética e que impõem neces­sariamente ao Estado soviético: I} proporções ieterminaàas na distri­buição das forças produtivas, proporções que se estabelecem a partir da luta contra a lei do valor dentro e fora de nossas fronteiras e que têm por tarefa objetiva atingir o ponto ótimo da reprodução socialista ampliada em dadas condições e o máximo de capacidade defensiva de todo o sistema na luta contra a produção mercantil-capitalista; 2) proporções determinadas de acumulação de recursos materiais com vistas à reprodução ampliada, notadamente às custas da economia pri­vada, na medida em que volume determinado desta acumulação edita­do compulsoriamente ao Estado soviético, sob a ameaça da despropor­ção econômica, do aumento do capital privado, do enfraquecimento dos laços que unem a economia estatal à produção camponesa, da rup­tura, nos próximos anos, das proporções necessárias da reprodução socialista ampliada e do enfraquecimento de todo o sistema na sua luta contra a produção mercantil-capitalista no interior e fora do país.
À lei da acumulação socialista primitiva estão inevitavelmente submetidos: o volume do sobreproduto subtraído da economia pri­vada, o nível de salários da economia estatal, a política de preços, a regulação do comércio externo e interno, o sistema alfandegário, a política de crédito, a elaboração do orçamento, os planos de impor­tação, etc.
Examinemos agora qual é o lugar específico da lei do valor na economia soviética e em que medida são aplicáveis ao nosso sistema econômico mercantil-socialista as categorias da economia política de Marx.

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Capítulo Terceiro

A LEI DO VALOR NA ECONOMIA SOVIÉTICA

Observações Gerais
Quando da análise das premissas da acumulação socialista primitiva, já tínhamos mostrado que a lei da acumulação socialista não é a única lei fundamental da economia soviética. Uma particularidade do sistema econômico mercantil-socialista que existe entre nós consiste no fato de duas leis com suas tendências diametralmente opostas atuarem simultaneamente no interior de um mesmo sistema econômico. A segunda dessas leis é a lei do valor. Se as tendências de nossa estrutura econômica futura encontram sua expressão na primeira lei, em compensação, através da segunda, nosso passado nos pressiona, esforçando-se obstinadamente de se manter no presente e de fazer voltar atrás a roda da História. Na lei do valor concentram-se a soma de todas as tendências dos elementos mercantis e mercantis-capitalistas de nossa economia, assim como a soma de todas as influências do mercado capitalista mundial sobre nossa estrutura econômica. Cumpre examinar agora mais detalhadamente como a lei do valor manifesta-se em nossa economia, qual é seu lugar específico, como evolui a luta entre as duas leis e quais são as conseqüências sociais que resultam do conflito que surge da
ação recíproca e da coexistência forçada das duas tendências funda­mentais nos organismos econômicos do país.
No capítulo referente à lei da acumulação socialista, tratamos rapidamente desta questão. É necessário agora analisar de modo conseqüente e sistemático a ação da lei do valor na economia sovié­tica. Isto poderá ser feito mais adequadamente se, depois de algu­mas observações gerais, analisarmos as categorias fundamentais de nossa economia política e estabelecermos qual grau de sua influên­cia na economia soviética.
A lei do valor é a lei do equilíbrio espontâneo da sociedade mer-cantil-capitalista. Numa sociedade que não possui centros direto­res de uma regulação planificada, chega-se, graças à ação direta ou indireta desta lei, a tudo que é necessário para um funcionamento relativamente normal de todo o sistema de produção do tipo consi-deradoAa divisão das forças produtivas entre os diferentes ramos da economia, que compreende a distribuição dos homens e dos meios de produçãopa divisão do resultado da produção anual da socieda­de entre operários e capitalistas,^ repartição da mais-valia entre os dik-rentes ramos ou regiões para fins da reprodução ampliadafla distribuição desta mais:yalia entre as diferentes classes explorado­ras, o progresso técnicd/a vitória das formas econômicas evoluídas sobre as formas ultrapassadas e a subordinação das últimas às pri-meiras. O que denominamos de categorias da economia polííi são descrições logicamente puras, ideais, das relações reais de pro­dução, troca e repartição que se estabelecem com base na produção mercantil e mercantil-capitalistar'
Neste sistema econômico temos - se é possível assim se expres­sar - agrupamento de homens cristalizados no processo de produ­ção e repartição, tais como eles se estabelecem no terreno da auto-regulação espontânea da economia, graças à lei do valor. Com toda a fluidez do pessoal humano, estes agrupamentos reproduzem-se incessantemente a cada novo estágio do desenvolvimento capitalis­ta, formando tipos determinados de relações de produção e reparti­ção. É a descrição científica desses tipos de relações de homens en­tre si (e não de coisas entre si ou de homens entre coisas), a partir da produção mercantil e mercantil-capitalista que Marx designa por categorias da economia política; estas categorias conseqüentemen­te, descrevem adequadamente as relações reais quotidianas do capi-
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talismo mas, na ciência, essas rekiçÕ#s^ão reproduzidas de modo abstrato, sob sua forma pura. A renda, enquanto categoria do sis­tema econômico capitalista, naí>-«-ctínstituída pelos valores reais que o granjeiro capitalista paga ao proprietário da terra mas pela relação de repartição entre o granjeiro e o proprietário, que garante a transferência^sistemática de uma parte da mais-valia de um para outro.(Ò saláfíojLa mais-vanfc constituem a essência das relações de projd-uçãã-ç. de repartição entre operários e capitalistas. A categoria /do lucro, enquanto forma da mais-valia, constitui uma relação de TPpartição entre capitalistas que se transforma, graças ao mecanis­mo da igualização da taxa de lucro e a todo mecanismo da socieda­de capitalista, num mecanismo de repartição de trabalho e dos meios de produção. Neste caso, é uma relação de produção de capita­listas com capitalistas, considerados não na qualidade de consumi­dores (conwrTTrais acima) mas na de organizadores da produção. A categoria preço^possui três formassem primeiro lugar, a forma de uma relação de produção que resume tanto o nível de produtivida­de do trabalho nos diferentes ramos como a distribuição da forra de trabalho entre os diferentes rarros da produçãoUem segundo lu­gar, a forma de uma relação de repartição na medida em que o nível dos preços determina o dos afluxos dos valores que passam das mãos de certos grupos de homens para outros} em terceiro lugar, a forma de uma relação de produção porque, graças ao mecanismo de afastamento entre preço e valor, opera-se uma redistribuição das forçasjj£odutivas entre os diferentes ramos da economia.^Enfim, a rcadoria^a categoria mais geral da economia política, categoria quecapiefeViza no seu conjunto as relações de produção dos ho­mens do tipo determinado enquanto relações de produtores de mercadorias independentes s isolados, ligados num só sistema eco­nômico através do sistema de relações de mercado. Estas categorias podem ser deduzidas logicamente da lei do valor. ^
Fazemos estas observações preliminares pela seguinte razão. Noventa por cento de todos os erros, de incompreensão e de tortu-
1 Naturalmente, não cabe explicar aqui que a relação entre as categorias da reali­dade e as do pensamento, na economia política, deve ser entendida de acordo com toda a concepção filosófica geral do malerialismo dialético.
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ras cerebrais que a leitura de Marx acarreta entre os jovens então li­gados a um modo naturalista de compreender a lei do valor. Tendo formalmente assimilado o fato de que as categorias são relações dos homens entre si, muitos insistem obstinadamente em compreendê-las como coisas, sobretudo quando se expressam não através das cita­ções de Marx mas da sua própria linguagem. Atrás da torrente de coisas que escapam dos operários exploradores para os capitalistas, dos capitalistas para os banqueiros, ou proprietários latifundiários, de um ramo de produção para outro, que são compradas ou vendi­das no mercado e depois consumidas, etc, freqüentemente eles não vêem a presença de agrupamentos de homens a partir dos quais ou para os quais se realiza este movimento, a presença de relações de produção entre os homens no sistema de economia mercantil, rela­ções que, precisamente, constituem o objeto da economia política. Esta materialização mental das relações entre os homens, que são também materializados externamente na vida real, leva igualmente a uma compreensão incorreta de numerosas relações de nossa eco­nomia. Aqui também, atrás do movimento de valores materiais que são, in natura, os mesmos que existem no capitalismo e que estão em constante movimento seguindo linhas que, na aparência, são as mesmas (salário, "acumulação", "renda"), atrás da identidade das relações dos homens com a Natureza (mesma técnica, "mesmos" operários) as modificações ocorridas nas relações de produção não são vistas.
Eis por que é particularmente importante tratar da análise que propomos com uma representação perfeitamente justa da necessi­dade de compreender de modo marxista as categorias da sociedade capitalista, a fim de manter esta compreensão igualmente quando da análise das relações de produção na economia soviética. De pas­sagem, no desenrolar de nossa análise, deverá se resolver por si mesma a questão de saber se é justo designar toda nossa economia, ou pelo menos o tipo de relação que nela é dominante, de "capita­lismo estatal".
A Lei do Valor e o Capitalismo Monopolista
O que condiciona a possibilidade de ação da lei do valor? Não basta responder a questão com esta frase geral: é a existência da so-
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ciedade em cuja base atua esta lei, quer dizer, a existência da produ­ção mercantil. A economia de uma sociedade de produtores inde­pendentes e livres de toda subordinação, trabalhando para o merca­do, é também produção mercantil. O capitalismo clássico, do perío­do concorrencial, é também uma produção mercantil. O capita­lismo monopolista, organizado em trustes em escala nacional, e por vezes internacional, é também uma produção mercantil. Enfim, o capitalismo estatal alemão dos anos 1914-18 e as tendências muito acentuadas nesta mesma direção na economia da Entente durante a guerra, tudo isto é, formalmente, uma produção mercantil. Mas al­guém será capaz de afirmar que, em cada um dos qualro tipos de produção mercantil, a lei do valor poderia, numa mesma medida, desenvolver sua ação e manifestar todos seus traços mais caracterís­ticos? Não, mesmo em se tratando do capitalismo em suas origens, que sofria ainda as seqüelas da regulamentação artesanal da produ- ' ção e da ingerência do Estado feudal no processo de produção.. Na medida em que a lei do valor é o regulador expontâneo do processo de produção na sociedade mercantil, a ação mais comple­ta, mais característica, deste mecanismo de regulação exige um tipo mais espontâneo das relações de produção, com uni mínimo de al­teração desta espontaneidade pela intervenção dos princípios orga­nizadores na produção e nas trocas. É preferível fotografar a tem­pestade em mar alto. Do mesmo modo, é melhor fotografar teorica­mente a lei do valor sob sua forma pura. no seu clemenio natural, quer dizer, no período da livre concorrência do capitajismo, como justamente Marx fez no O Capital.
Para que a lei do valor se manifeste de modo mais total é neces­sário que exista plena liberdade de circulação das mercadorias, tan­to no interior do país como entre os países no mercado mundial. É necessário, depois, que o operário seja livre vendedor de sua força de trabalho e o capitalista livre comprador da força de trabalho en­quanto mercadoria. Cumpre que a ingerência do Estado no proces­so de produção e o número de empresas de propriedade estatal" se reduza ao mínimo e também que não haja regulamentação dos pre­ços de parte das organizações monopolistas dos próprios empresá­rios, etc. Estas condições ideais de liberdade de concorrência nunca existiram na escala da economia mundial porque as barreiras alfan-
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degárias entre as economias nacionais, a ingerência do Estado no processo de produção e a impossibilidade de uma livre entrada de capitais na agricultura sem sacrificar a propriedade privada da terra significava certa limitação da liberdade de concorrência. Entretan­to, o período relativamente mais perfeito, para a. liberdade de con­corrência ern escala da economia mundial e, conseqüentemente, mais favorável para a ação da lei do valor, foi a época do capitalis­mo clássico, que precedeu a passagem para a etapa imperialista. "... a formação de monopólio pela concentração da produção é uma !ei geral e fundamental da etapa atual do desenvolvimento do capita­lismo" '.
Com o desenvolvimento das tendências monopolistas do capi­talismo termina o período ideal da livre concorrência burguesa. Os' principais ramos da produção dos maiores países capitalistas são invadidos por poderosos trustes, ou de todo jeito, aparecem asso­ciações que não são puramente produtivas mas associações de reali­zação da produção, quer dizer, sindicatos e cartéis. Ocorre umafu-sào dos trustes mais importantes com o capital bancário, ou então os centros bancários tornam-se o ponto de partida de um controle sobre a produção que vai muito longe. A liberdade de concorrência é totalmente suprimida, no interior de um dado país, nos setores in­teiramente organizados em trustes ou sindicatos, ou seriamente di­minuída graças ao controle do capital bancário que não está inte­ressado numa luta encarniçada entre as empresas às quais ele outor­ga créditos e controla. As tendências monopolistas estendem-se alâffijÊiíis fronteiras nacionais; tentativas de criação de trustes capi­talistas internacionais únicos aparecem em certos ramos e são em parje coroados de êxito, ou ainda, toda a liberdade.de concorrência reduz-se à rivalidade no mercado mundial de dois ou três trustes gi­gantes de um dado ramo da produção. A limitação da liberdade de concorrência- conduz igualmente à limitação da ação da lei do va­lor, ao fato de esta lei encontrar umasérie de obstáculos para sua manifestação, sendo em parte, substituída por aquela forma de or­ganização da produção e distribuição que o capitalismo pode che-
1  V. I. Lênin. O Imperialismo.. . Obras Completas, Turno XIII, PP- 249-250.
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gar sem deixar úc ser capitalismo. No que tange à regulação dos preços pela lei do valor, ocorre a seguinte modificação: quando da organização em trustes ou sindicatos dos ramos mais importante-no interior de um país qualquer, os preços afastam-se sistematic.: mente do valor, no sentido de um aumento (ainda que isto nem sempre seja necessário). Quando há dirniping, os preços afastam-se sistematicamente do valor havendo sua diminuição no mercado ex­terno e, como compensação, ocorre seu aumento no interior do país. A possibilidade de uma igualização da taxa de lucro torna-se axtraordinariamente difícil entre os ramos da produção organiza­dos em trustes, que se transformam em mundos fechados, num rei­no feudal das diferentes associações capitalistas. Conseqüentemen­te, é importante observar que a necessidade econômica se impõe en­tão, em grande parte, de um modo diferente da que ocorreria sob a leí do valor; conseqüentemente, a economia política inicia um novo capítulo quando analisa essas formas, na medida em que começa .a transformação da própria noção de "lei" com que se lida no regime de livre concorrência.
Durante a guerra mundial, sob a influência das transformações que ela impôs na economia dos Estados em luta, particularmente na da Alemanha que se encontrava quase isolada do mercado mun­dial, as tendências monopolistas do capitalismo receberam grande impulso em direção a um desenvolvimento ulterior que conduziu a economia de um país como a Alemanha até ao capitalismo estatal. As necessidades da defesa obrigaram o Estado a fazer o inventário de todas as possibilidades de produção do país e, segundo um plano determinado, repartir entre os trustes as encomendas militares, le­vando a uma cartelização forçada das empresas até então desuni­das. Este foi o começo de um desenvolvimento forçado de certos ra­mos, da compressão de outros ramos e da redistribuição das forças produtivas do país seguindo um plano determinado. Os preços eram fixados pelo Estado e, com isso, o Estado regulamentava o nível da maís-valia, quer dizer, repartia de fato a mais-valia entre os capitalistas. A falta de matéria-prima acarretou a centralização das provisões e fez nascer o famoso comitê de fornecimento de matéria-prima à indústria, dirigido por Rathenau. A regulação de toda a produção  capitalista  pelo   Estado  burguês atingiu  uma profundidade
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sem precedentes na história do capitalismo. Formalmente, a produ­ção mercantil transformava-se, de fato, nos seus principais ramos, numa produção planificada. A livre concorrência foi suprimida e a ação da lei do valor quase inteiramente substituída, em muitos as­pectos, pelo princípio da planificação do capitalismo estatal.
Nos países da Entente, o sistema econômico do período da guerra foi um capitalismo estatal num grau bem menor mas aqui também as tendências nessa direção foram poderosas. Particular­mente na Inglaterra, o Ministério do Abastecimento, dirigido por Lloyd George, chegou a uma regulação bastante avançada de quase toda grande indústria e não somente da indústria bélica.
No conjunto, o período de guerra pôs a nu a direção na qual evolui o sistema capitalista monopolista. Ela mostrou, com grande evidência, que a economia contemporânea está objetivamente ma­dura para a produção píanificada socialista e que tudo depende da chegada do senhor, quer dizer, da classe operária.
Quando a guerra terminou, quando acabou para a burguesia "o pesadelo da economia de coerção" e seus economistas saudaram o renascimento da era da livre concorrência, vimos que não somen­te as tendências monopolistas do capitalismo mundial não cessa­ram mas entraram numa fase nova ainda mais avançada.
Quando, durante a guerra, houve parcialmente o enfraqueci­mento da economia mundial enquanto conjunto econômico relati­vamente ligado, quando ocorreu um grande passo atrás em relação à distribuição mundial do trabalho atingida em 1914, a autarcia das diferentes unidades econômicas se manifestou claramente. Esta au­tarcia foi ainda reforçada pela supressão da circulação do ouro e pela passagem de todos os países, com exceção da América, ao siste­ma do papel-moeda. As relações de valor da produção da economia mundial com muita dificuldade penetraram nas economias dos di­ferentes países, não somente em conseqüência da redução da im­portância absoluta do comércio mundial e do reforçámento das barreiras alfandegárias numa série de Estados mas também em ra­zão da diminuição do contacto da massa de mercadorias dos dife­rentes países com o dinheiro mundial, com o ouro enquanto padrão de valor no mercado mundial. O restabelecimento progressivo das relações mundiais, o impulso produtivo a partir do nível de após-guerra, o aumento da circulação do comércio mundial, o restabele
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cimento parcial das antigas proporções na distribuição mundial do trabalho, enfim, a necessidade de créditos americanos para a econo­mia de uma Europa esgotada pela guerra, acarretaram uma redu­ção da autarcia. O retorno às divisas-ouro começou na Suécia e na Inglaterra.
Entretanto, a recuperação (que quase atingiu o nível do perío­do anterior à guerra no que concerne à importância da produção e das trocas mundiais) de modo algum significou concomitantemente o restabelecimento de todas as leis da economia do período anterior e das antigas proporções na repartição das forças produtivas entre bs diferentes países.^AJjmkação da lei do valor, começada com o caEií^sjDQ^mojiopAlista^não somente não par.ous4uxante.a guerra, xamo adquiriu, depois dela, uma força ainda maior, se bem que de forma inteiramente original.
Antes da guerra, os Estados Unidos eram o país cuja indústria estava melhor organizada em trustes, e a Alemanha era o país em que a interpenetração entre o capital bancário e industrial era a mais profunda. A transformação dos quadros nacionais pelas tendências monopolistas, quer dizer, pelas tendências de formação de trustes mundiais, implantou-se principalmente a partir desses países. A guerra terminou com a liquidação da Alemanha e a economia deste país não desempenha mais, na economia mundial, o antigo papel. Ao contrário, a chegada dos Estados Unidos ao primeiro lugar na economia mundial, que havia começado já antes da guerra, conti­nuou com grande rapidez durante e depois dela. O fato de os Esta­dos Unidos atingirem o papel dominante na economia mundial, significa que as tendências monopolistas do capitalismo americano são do­minantes nesta economia e que estão, nesta etapa, rompendo impetuosamente as barreiras da economia nacional. A possibilidade desta situação já fora prevista por Lênin no seu livro O imperialismo..., e de modo particularmente nítido numa passagem de seu artigo: b'De Uma Caricatura do Marxismo e do Economismo Imperialista". Neste artigo, Lênin escrevia: "O Imperialismo é o capitalismo do monopólio econômico. Para que o monopólio seja completo, é ne­cessário que ele afaste seus concorrentes não somente do mercado interno (do mercado do Estado considerado) mas também do mercado externo, do mundo inteiro. vNa era do capital financeiro' existe a possibilidade econômica de afastar a concorrência mesmo num
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Estado estrangeiro? Sim, bem entendido: este meio é a dependência financeira e o açambarcamento das fontes de matéria-prima e, de­pois, de todas as empresas concorrentes" l. Se, faiando de depen­dência financeira, entende-se igualmente o controle, através do sis­tema de crédito, temos aqui, no essencial, e nos seus traços mais ge­rais, um quadro do que vemos atualmente nas relações mútuas do capitalismo monopolista americano com a Europa e o mundo intei­ro.
Em primeiro lugar, a subordinação de toda a economia mun­dial às relações de valor da América expressa-se no fato de que so­mente a América permaneceu um país com o padrão-ouro e, conse­qüentemente, no fato de que é somente em seu território em que o ouro entrava, como no passado em contacto direto com o mundo das mercadorias. O dólar americano desempenhou, e desempenha, bem entendido, seu papel dominante como medida de valor porque está ligado à sua base-ouro, pois, se ele não rompeu com esta base, é em razão do poderio econômico absolutamente excepcional dos Estados.Unidos que não sofreu com a guerra mas se aproveitou de­la. A ditadura das divisas é um reflexo da supremacia econômica mundial dos EUA sobre os demais países \
Em segundo lugar, a subordinação marcha paralelamente com o crédito. Ele sempre é, em toda parte, o mais forte instrumento de subordinação. A recusa à concessão de crédito constitui o meio de pressão mais poderoso que o capital americano possui, tanto emte-
    1 Lênin, Tomo XIII, p. 354.
    2 É interessante lembrar que, no desenvolvimento da história, a ditadura das divi­
sas pertencia habitualmente ao país que desempenhava o papel dominante no co­
mércio e na economia mundial numa época determinada. Durante o período da
süpremacia.do comércio fenicio e grego no Mediterrâneo, o talento, moeda des­
ses dois povos, desempenhou um enorme papel. O florim dominou durante o
período da hegemonia do capital comercial italiano no Mediterrâneo. O papel
comercial da Espanha levou a piastra ao primeiro plano das relações monetárias
internacionais; a Holanda dominou não somente através de sua frota, de seus te­
cidos e de seu comércio em geral mas também de sua moeda. E, com o desloca­
mento do centro de gravidade da economia e do comércio mundial em direção da
"rainha dos mares", o papel da libra inglesa passou ao primeiro plano. Enfim, a
surj£fimacía, econômica dos EUA na economia mundial conduziu, no que tange
às divisas, à ditadura do dólar,
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lação aos governos como em relação aos círculos capitalistas dos outros países. Se um país entra na órbita de influência americana, uma pressão se faz simultaneamente sobre certos ramos da indús­tria do país em questão por parte dos trustes correspondentes. Este ou aquele truste americano, que monopolizou a produção e a venda no interior de seu próprio país, arrasta para sua órbita de influência a indústria de outros países, quer ela esteja organizada em trustes ou não. Ã pressão geral do capitalismo americano no seu conjunto, se soma a dos trustes isolados no domínio da política geral e das fi­nanças.
Terceiro método: a eliminação direta dos concorrentes do mercado mundial pela superioridade de qualidade, pelos baixos preços dos produtos e, sobretudo, pelas vantagens creditícias concedidas aos compradores. Esta pressão se exerce ao mesmo tempo pela via mais direta e sem nenhuma luta, na medida em que uma parte cres­cente da produção mundial in natura e, conseqüentemente, da mas­sa de mercadorias, concentra-se no território dos.EUA.
A crescente tendência da hegemonia norte-americana na economia mundial - dada a supremacia já adquirida pelos monopólios capitalistas nas zonas da indústria americana organizada em trustes - acarreta automaticamente a expansão, em todo o mundo, das ten­dências monopolistas irradiadas pelo centro norte-americano. Mas o desenvolvimento dessas tendências implica inevitavelmente, ape­sar da existência formal da livre concorrência, a limitação e a trans­formação ulteriores da ação da lei do valor não mais no interior de economias nacionais isoladas, onde os monopólios já atingiram um a|lo_jTvvel_de_.desenvoWimento, mas na arena da economia mundial no seu conjunto, É nisso que reside a particularidade da economia do após-guerrã. Não me deterei aqui sobre o conjunto deste problema; voltarei a ele possivelmente numa obra consagrada à economia mundial. Aqui, vou me ater somente às conclusões que interessam ao meu assunto.
Não é por acaso que, no período da expansão da livre concor­rência, o país que dominava a economia mundial, a saber, a Ingla­terra, era, ela mesma, o país da liberdade de comércio, inversamen­te, não é por acaso que, no período do capitalismo monopolista, é o país clássico do capitalismo monopolista que se torna preponderan-
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te na economia mundial. Mas se, durante o período da predomi­nância da liberdade de concorrência, os países retardatários luta­vam contra a expansão inglesa elevando as barreiras alfandegárias e desenvolvendo suas indústrias, a luta contra os Estados Unidos e suas tendências monopolistas não ocorre sob a forma de uma luta pela liberdade de concorrência contra os monopólios. O capitalis­mo norte-americano ultrapassa os outros capitalismos não somente por seu poderio econômico universal e por seus imensos recursos creditícios sob a forma mercantil e monetária mas também por sua técnica, por sua produtividade do trabalho mais elevada. Lutar contra a concorrência norte-americana apelando para a liberdade de concorrência é algo inteiramente acima das forças dos outros países capitalistas. Pelo contrário, Não é a Europa que luta contra os monopólios norte-americanos através da livre concorrência: é o monopólio norte-americano que reclama a liberdade de concorrên­cia para assegurar a vitória de seus monopólios. Os países europeus lutam contra a ofensiva americana de modo lamentável: seja pela proteção alfandegária de indústrias que não estão em expansão (co­mo no século XIX) mas em decadência, paralisando o desenvolvi­mento de outras indústrias através de distorções monopolistas da li­berdade de concorrência, destinadas a assegurar uma situação de monopólio garantido pelo Estado, resultado do seu atraso, seja im­plorando créditos para a renovação de sua economia. Assim, a Eu­ropa luta contra a exploração e a pressão monopolista da América como o pobre luta contra a exploração usurária, pedindo empresta­do uma soma ainda mais elevada. Na realidade, os Estados Unidos submetem o mundo inteiro principalmente através da lei do valor. Mas o conjunto deste contexto histórico é extremamente interes­sante. A lei do valor está atingindo a etapa de sua própria transfor­mação e de seu desaparecimento gradual através desta mesma lei do valor.
A expansão americana não pode encontrar resistência intrans­ponível em nenhum país do mundo capitalista enquanto os países submetidos a seus ataques e à sua pressão continuarem países capi­talistas. Trata-se de uma observação muito importante. A estrutura econômica dos países capitalistas contemporâneos exclui a possibi­lidade de uma resistência séria ao controle americano porque o
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nível já atingido da repartição mundial do trabalho e das trocas in­ternacionais, face a uma superioridade econômica, técnica e finan­ceira dos EUA sobre todo o resto do mundo, imensa e sempre cres­cente, submete os demais países às relações de valor dos Estados Unidos. Nenhum país capitalista pode, sem deixar de ser capitalis­ta, escapar da ação da lei do valor., mesmo transformada. É por aí que entra a avalancha do monopólio norte-americano.A resis­tência só ê possível no plano político, notadamente militar mas, jus­tamente em razão da supremacia econômica dos Estados Unidos, é di/ícil que ela seja vitoriosa.
Em época de guerra, da guerra contemporânea particularmen­te, a economia de um país, mesmo capitalista, é forçada a uma certa união interna e obrigada a seguir uma via comum não somente na esfera das relações políticas com outros países mas também no que diz respeito aos contactos econômicos com as economias nacionais de outros países. Por outro lado, em tempo de paz, obter uma polí­tica comum dos vários trustes ou bancos capitalistas e de todas as outras organizações capitalistas representa, para o sistema burguês* uma tarefa bastante difícil pois a realização desta tarefa exige o acordo de todos os interesses essenciais das organizações capitalis­tas mais importantes e das empresas isoladas, cujos interesses nun­ca coincidem. A alternativa seria a preponderância, no interior de um país, de um agrupamento único de trustes e de bancos, que do­minam toda a economia e submetem integralmente toda a política econômica do Estado, notadamente a política alfandegária. Mas esta última variante se revela irrealizável para a Europa contempo­rânea. O desenvolvimento das tendências monopolistas da Alema­nha do período anterior à guerra, o desenvolvimento dessas tendên­cias a um grau ainda mais elevado nos Estados Unidos, apoiavam-se sobre a enorme concentração natural da produção, que por sua vez se apoiava sobre o rápido desenvolvimento das forças produti­vas, Mas na Europa atual, com sua pobreza de capitais e a estagna­ção üa produção, em que somente a França e a Bélgica constituem exceção - e provavelmente por pouco tempo - uma concentração da produção de tipo e de ritmo americano está excluída. Conse­qüentemente, o organismo econômico dos capitaiismos europeus é incapaz de opor uma forte resistência à pressão do monopolismo
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americano e vai cedendo neste ou naquele setor. Na realidade, o ca­pital norte-americano poderia desde já obter muito mais vitóri­as na Europa do que até agora obteve diante dos insistentes apelos europeus por mais crédito. Não devemos esquecer também que a América do Norte ainda não explorou inteiramente todas suas pos­sibilidades de pressão noutro plano, ou seja, suas possibilidades de pressão sobre a política alfandegária dos países europeus. Os Esta­dos Unidos são favoráveis à política de portas abertas nos lugares onde eles podem vencer seus concorrentes através da livre concor­rência econômica. Mas os próprios Estados Unidos podem passar a uma política de arrombar pela força as portas que protegem da concorrência a indústria empobrecida dos países atrasados. Nos lu­gares em que o sistema da oferta de crédito na economia européia, com todas suas conseqüências para a expansão do monopohsmo norte-americano em todo o mundo, revelar-se insuficiente, o mo-nopolismo pode também impor-se por esse meio. A luta contra os monopólios norte-americanos só é possível mediante uma mudança de toda a estrutura do país, quer dizer, pela passagem a uma econo­mia socializa que faz do país um organismo monolítico e impede ao capitalismo americano de engolir, pedaço por pedaço, um ramo depois do outro, subordinando-os aos trustes ou aos bancos ameri­canos, como acontece através do contacto "natural" do capitalismo americario atual com a economia de outros países capitalistas. So­mente a monopolismo socialista pode enfrentar a pressão dos monopó­lios capitalistas. O país que passar ao socialismo, aptsm oc ser eco­nômica e tecnicamente mais fraco do que o capitalismo norte-americano, lutará contra ele, durante o período em que a reedifica-ção de sua economia sobre novas bases ainda não estiver termina­da, não mediante a superioridade econômica de sua própria econo­mia organizada em trustes mas através de uma estrutura de organi­zação de toda sua economia a um nível mais elevado. Isto significa que a supressão ulterior da lei do valor, quer dizer, sua supressão além dos limites históricos do monopolismo americano, seguirá a via da organização socialista planificada da economia nos países em que o capitalismo for abolido. Para a Europa atual, a antiga li­berdade de concorrência não é mais possível de nenhum ponto de vis­ta. É necessário escolher entre o monopólio capitalista, que está ii-
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gado externamente ao monopólio dos EUA e o monopólio socialis­ta interno.
Fiaalmente, como indicação da degenerecència da lei do valor enquanto regulador da via econômica, cumpre chamar a atenção sobre as conseqüências, do ponto de vista econômico, da degenere-cência do tipo de Estado capitalista burguês-parlamentar nos Esta­dos de ditadura fascista. Esta degenerecência toca um dos pontos mais importantes - talvez o mais importante - das relações de mer­cado, das relações entre vendedores da força de trabalho-mercadoria e seus compradores. No período em que a livre concorrência era dominante no plano das relações econômicas, em que o capitalismo estava numa curva ascendente, ele se dava ao luxo de comprar a força de trabalho com base na lei do valor. No período do declínio do capitalismo, com uma reprodução reduzida e o aumento da demanda improdutiva, é necessário introduzir ou­tro tipo de disciplina ao trabalho, organizada obrigatoriamente e submetida ao Estado fascista através dos sindicatos fascistas. Isto eqüivale a restringir o funcionamento da lei do valor no mercado de trabalho em benefício d I classe exploradora. Esta orientação acar­reta uma grande modificação e uma distorção na lei do valor em comparação com a época do capitalismo clássico. Infelizmente, não posso entrar aqui numa discussão mais pormenorizada deste problema, cuja análise a ditadura fascista na Itália já forneceu mui­tos dados factuais.
Tudo o que foi dite mostra ao leitor que devemos tratar com a lei do valor, em nossa própria economia soviética, numa época histórica em que esta lei está bastante minada na própria sociedade burguesa graças ao poderoso desenvolvimento das tendências mo­nopolistas do capitalismo contemporâneo, que se transformam num tipo original de monopólio em razão da vitória dos monopó­lios americanos. Para nós, tudo isto é importante também porque nossa economia é obrigada a reforçar seus laços econômicos - co­merciais, principalmente - com o capitalismo e o mercado mundial. Devemos saber que o mercado mundial não é mais aquele que Marx observava ao escrever O Capital. Sua espontaneidade, antiga­mente, revestia-se de um caráter inteiramente diferente, sendo a li­berdade de concorrência hoje em dia bastante mais limitada. E,
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quanto mais as coisas marcharem nesta direção, mais nitidamente se destacará no horizonte deste mercado a gigantesca silhueta do capitalismo norte-americano que já lançou seus tentáculos em qua­se todos os grandes países capitalistas e torna-se o árbitro dos pre­ços no mercado mundial.
A Lei do Valor e a Socialização da Indústria num País Agrícola.
Se a economia mercantil acha-se "minada", para usar a ex­pressão de Lênín, desde o período do capitalismo monopolista, este processo deve ainda acentuar-se onde toda grande indústria encon­tra-se em mãos do Estado proletário, Mas, na medida em que trata da nacionalização da indústria, não num país tipicamente industriai mas num país em que a maior parte dos valores são criados pela pe­quena produção, e principalmente pela pequena agricultura campo­nesa, as tendências de caráter pré-monopolistas são aqui mais for­tes do que, por exemplo, nos EUA contemporâneos. Esta é uma particularidade da economia soviética. Assim, na análise desta eco­nomia, devemos não somente observar a transformação histórica do monopolismo capitalista em monopolismo socialista mas tam­bém considerar todas as conseqüências da existência de um enorme setor de produção simples de mercadorias. A particularidade da economia soviética consiste precisamente no fato de que as formas pós-capitalistas de produção se opõem a 22 milhões de proprieda­des camponesas, além do artesanato e da indústria artesanal. E tudo isso em presença de uma fraqueza relativa das formas pura­mente capitalistas ou capitalistas de Estado. Nestas condições, a lei do valor e o princípio da planifícação entram em competição numa conjuntura extremamente original, numa conjuntura de desnível muito acentuado no que diz respeito à produção e às trocas, entre o punho fechado da economia estatal e o oceano desorganizado da produção simples de mercadorias. A originalidade da situação é ainda maior em razão de a grande produção socialista se opõe à pe­quena produção, na forma de um confronto entre a indústria e a agricultura, quer dizer, o confronto entre as formas socialistas e a
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produção simples de mercadorias é também um confronto entre duas áreas distintas de aplicação do trabalho.
O monopólio americano de antes da guerra e o de nossos dias, assim como o monopólio alemão anterior à guerra, cresceram apoiados numa poderosa concentração da produção e de uma enor­me predominância da indústria sobre a agricultura. O capitalismo norte-americano e o capitalismo alemão acarretaram, tanto na in­dústria como na agricultura, um alto grau de subordinação da pe­quena e média produção do país a um pequeno número de podero­sas organizações do capital comercial, dos trustes e dos bancos mais poderosos. A propriedade agrícola particularmente nos EUA, ape­sar de se encontrar mais dividida em comparação, por exemplo, com a grande produção agrícola da Inglaterra e da Alemanha, foi inteiramente dominada, através do crédito, abastecimento e venda às grandes firmas comerciais, aos bancos, às companhias de nave­gação, às companhias de silos para cereais e de frigoríficos, etc. Se bem o fazendeiro americano, produtor de cereais, concorra no mer^ cado mundial com.o agricultor canadense ou argentino, com o camponês da Rumênia, da Ucrânia, etc, se bem que a produção agrícola da América não seja a de um único truste agrícola» ela está organizacionalmente muito ligada ao capital comercial, industrial e bancário dos EUA que a empurra para além da barreira que separa a agricultura da indústria e que estabelece certa coesão entre os di­ferentes ramos (nos limites capitalistas), especialmente no que diz respeito às trocas e ao crédito.
Ao contrário, na economia soviética, os laços entre a indústria estatal organizada em trustes e a economia camponesa independen-le são infinitamente mais fracos, tanto pelas trocas como pelo crédi­to, enquanto a estrutura da organização industrial é historicamente de um tipo mais evoluído do que em qualquer outro país capitalis­ta. Dada esta situação original, devemos inicialmente observar uma atrofia profunda da ação da lei éo valor no interior do setor da eco­nomia estatal,unida a um importante desenvolvimento da ação des­ta lei além dos limites da economia estatal e a ataques incessantes do elemento espontâneo do mercado contra toda economia estatal em seu conjunto. É esta circunstância, como veremos mais adiante, que explica o tipo dominante de todos os abalos e depressão que ti-
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vemos, temos e teremos que enfrentar ainda em nosso sistema eco­nômico com todas as complicações que, ademais, devem surgir em razão dos vínculos existentes entre a economia soviética e o merca­do mundial.
Por outro lado, em conseqüência de toda a fraqueza econômi­ca e técnica da economia estatal, o caráter socialista das relações de produção não pode aí se manifestar mais nitidamente senão a partir de certo nível de desenvolvimento das forças produtivas. Ao mesmo tempo, a direção planificada da economia falha freqüentemente, em razão da falta de reservas destinadas a permitir as manobras econômicas l e apesar da estrutura suficientemente evoluída da eco­nomia estatal enquanto economia coletiva. Daí o grande perigo, quando da análise teórica da economia soviética, de deslizar da. análise das relações de produção para a mensuraçao do nível de nos­sas riquezas, quer dizer, de cair no ponto de vista naturalista vulgar. Existem muitos exemplos disso.
Após essas observações preliminares, passo agora à análise concreta do que se segue: quais são as cau-gorias da economia capi­talista que são aplicáveis - e em que medida - a nossa economia?
A Mercadoria, o Mercado, o Preço.
Começo a análise considerando de uma só vez estas três cate­gorias mais gerais porque é impossível de dissociá-las durante o es­tudo. Nós opomos a produção mercantil à produção socialista pla­nificada, o mercado à contabilidade da sociedade socialista, o valor e os preços aos custos de trabalho da produção, a mercadoria ao produto. Quanto mais é teoricamente possível opor claramente es-
1 Em seu livro As Dificuldades de Outono e os Problemas do Desenvolvimento Eco­nômico (Edições do Comissariado do Povo para as Finanças), o Camarada So-kolnikov, com quem estou em desacordo numa série de questões fundamentais da política econômica e de avaliação teórica de nossa economia, observou este fato de modo inteiramente justo e oportuno. Em si, este fato não passa de um novo argumento de peso em favor de minhas opiniões referentes ao fato que a lei de acumulação socialista primitiva constitui, ao lado da lei do valor, a lei funda-. mental de economia soviética.
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formas de transição do capitalismo ao socialismo. A partir de que momento efetua-se aqui a transformação da quantidade em quali­dade, em que etapa do desenvolvimento socialista opera-se a absor­ção das relações de produção às quais correspondem, na ciência, as categorias da economia política?
Convém recorrer à observação dos diferentes setores de nossa economia. Temos sob os olhos os transportes por estrada de ferro. Estes se encontram inteiramente nas mãos do Estado proletário. O ^Comissariado do Povo para as Vias de Comunicação encomenda as locomotivas, os vagões, os trilhos, etc, ao Glavmetall. * O preço.das encomendas será determinado por relações de mercado? Não o é no interior do país pelo fato de que não existe fabricação priva­da capitalista de locomotivas e vagões, nem metalurgia privada '. Estes preços não são determinados também pelas relações de mer­cado da economia mundial pelo fato de que as.encomendas são fei­tas para serem atendidas internamente, de modo inteiramente inde­pendente dos preços correspondentes no mercado mundial. Não é a lei do valor da economia mundial que está na base da repartição das encomendas no interior de nosso país. Os preços são feitos a partir de um cálculo determinado do plano, são ajustados ao nível de preços de fabricação nas fábricas do Glavmetall, com certo lucro, sem nenhum lucro ou mesmo com prejuízos na medida em que o Estado aceita voluntariamente preços inferiores aos custos de fabri­cação e reserva, em seu orçamento, subsídios para as fábricas. Tudo isto é decidido não pelos métodos espontâneos da concorrência mas pela integração do plano financeiro dos diferentes ramos, em pri­meiro lugar, ao orçamento conjunto da indústria, e depois, ao orça­mento do Estado. Nessas condições, a influência do mercado mun­dial só se faz sentir na medida em que comparamos constantemente nossos preços internos com os preços estrangeiros e na medida em
Administração Central da Indústria Metalúrgica (L. M. R.>. Mas isto não significa que as relações de mercado não tenham nenhuma influên­cia sobre os preços. Se o custo da depreciação se tornasse excessivo e impossível tanto para os consignatários de mercadorias como para os passageiros, em mui­tos casos as pessoas voltariam a utilizar carroças.

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que recebemos um estímulo que nos incentiva a reduzir o custo de fabricação quando ele está muito elevado em comparação com o es­trangeiro. Aqui existe de fato uma influência da lei do valor do mer­cado mundial mas ela se manifesta de modo original, com o merca­do mundial fazendo pressão sobre toda a organização de nossa eco­nomia estatal enquanto organização única. O mercado mundial também nos pressionaria no caso em que fôssemos obrigados, neste ou naquele momento, a importar uma parte do equipamento ferro­viário, dada a insuficiência de nossa própria produção.
Se formos mais longe, relacionando o caso das encomendas de transporte ao Glavmetall à massa de todos os casos em que o pró-.prio EstadQ^&simultaneamente produtor monopolista e único compra-, dor monopolista da produção de seus trustes, estaríamos diante de um setor da economia estatal em que a ação da lei do valor sobre os preços seria mínima. Neste caso, em que o Estado age ao mesmo tempo como produtor monopolista e como único comprador de sua própria produção monopolizada, as relações entre os trustes. es­tatais se aproximam das relações internas de um único truste com­binado, 4 categoria do preço reveste-se aqui de um caráter puramen­te formal, não passando de um rótulo que permite obter, do fundo econômico comum da economia estatal uma soma determinada de meios para assegurar a produção ulterior a um nível determinado da reprodução ampliada. Até onde esta esfera da economia estatal é quantitativamente importante, e como ela varia de ano em ano, é assunto que veremos na parte desta obra consagrada à nossa indús­tria. Apenas num único aspecto é que podemos falar aqui da in­fluência importante da lei do valor:'o da força de trabalho e de sua remuneração. Voltaremos logo a esta questão no que concerne à nossa economia estatal no seu conjunto. No exemplo referido, o pa­pel do mercado é reduzido ao mínimo em todos os limites da econo­mia estatal e a noção de mercadoria referente à locomotiva da fábrica de Sormovo recua para um plano inferior diante da noção de produto estatal, realizado pelo Estado.'
Acompanhemos as etapas de influência crescente da lei do va­lor. Tomemos a construção de máquinas têxteis. Fabricamos nós mesmos uma parte das máquinas e do equipamento restante e outra parte importamos do Exterior. A influência do mercado mundial se
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faz sentir no fato de que podemos obter essas máquinas a preços mais elevados ou menos elevados, segundo a conjuntura da cons­trução capitalista de máquinas. Se as obtemos mais barato, pode­mos comprar mais ou liberar meios para atender a outras necessi­dades da economia estatal. A lei do valor encontra aqui a lei da acu­mulação socialista primitiva mas ela não influencia o nível dos pre­ços das máquinas que produzimos porque os preços da produção interna não são determinados pelos do mercado mundial. Defendi­dos pelo protecionsimo socialista, conservamos, desenvolvemos ou criamos diferentes ramos de produção dos meios de produção, a partir do que consideramos economicamente útil para o conjunto da economia estatal. Aqui também a ação da lei do valor é extrema­mente limitada mas, além do que dissemos antes, ela pode ter algu­ma influência sobre os preços dos artigos têxteis no mercado inter­no, principalmente em função da necessidade de amortização.
É exatamente da mesma maneira que o mercado mundial in­fluencia nossas relações econômicas internas quando importamos equipamento que não é absolutamente produzido no interior do país. Aqui o mercado mundial pode influenciar tanto o volume de nossa acumulação como a elevação dos preços, para fins de amorti­zação, dos objetos de consumo produzidos com a utilização de equipamento importado. A lei do valor da economia mundial pode exercer sua ação não somente como fator de distribuição de recur­sos materiais mas também como fator de divisão do trabalho no in­terior da economia soviética no caso em que fosse necessário siste­maticamente, a longo prazo e não de modo esporádico, frear, redu­zir ou suprimir completamente a produção de certos meios de pro­dução nos diferentes setores onde - para um dado nível de preços no mercado mundial e para um do nível de desenvolvimento de nossa fabricação de máquinas - não seria racional manter ou desen­volver nossa própria produção. Mas, mesmo neste caso, a questão se resolveria antes de tudo com base num cálculo de toda a produ­ção dos meios de produção, dos recursos necessários para aí chegar e das perspectivas de melhoria e de barateamento de nossa própria produção.
De modo geral, os setores de importação dos meios de produ­ção podem mudar, não somente em função do movimento dos pre-
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ços dos produtos concernentes, no ExteríoT e entre nós, mas tam­bém sob efeito dos fatores que decorrem da otimização, de realiza­rão extremamente complexa, do plano econômico geral. Tomarei o seguinte exemplo. Segundo as possibilidades de importação, pode­mos importar, por exemplo, equipamentos no valor de 300 milhões por ano. A partir de certas considerações sobre a otimização do conjunto do processo de reequipamento, pode parecer vantajoso para nós, durante um ano determinado, importar somente 100 mi­lhões das referidas máquinas, em lugar dos 150 milhões que pode­riam ser destinados à importação dos meios de produção que apre­sentam a maior diferença de preços externos e internos, e depois usar os 50 milhões para ampliar a produção interna pagando por ela notavelmente mais em chervontsi possibilitando-se, assim, o au­mento das importações de máquinas mais caras de outro tipo. Nes­te caso, a influência da lei do valor sofre uma completa distorção em razão dos interesses do conjunto do plano econômico, quer di­zer, em razão dos interesses da reprodução ampliada numa econo­mia de tipo socialista - caso perfeitamente impossível, nas condi­ções habituais da reprodução capitalista. De modo geral, quanto mais avançarmos, mais seremos obrigados a racionalizar ao máxi­mo a importação, procurando a melhor utilização das vantagens da divisão mundial do trabalho, quer dizer, importando numa maior quantidade as máquinas cuja construção nacional é menos vantajo­sa em determinadas condições econômicas '.
No que concerne à importação dos meios de produção que não são absolutamente fabricados na União Soviética, para a econo­mia estatal a lei do valor do mercado mundial, em razão das flutua­ções dos preços, só tem influência, conseqüentemente, sobre a acu-
Em sua obra, Para o Capitalismo ou para o Socialismo?', o Camarada Trotsky muito oportunamente chamou a atenção para o problema de nossas relações com a economia mundial. Temos absoluta necessidade, para cada ano considera­do em todas suas particularidades, de um plano de importação cientificamente elaborado. Não se trata de uma somação e de uma redução mecânica das "de­mandas" dos diferentes trustes, Uma tal somação não constitui um plano de im­portação da indústria socialista mas uma grosseira adaptação das importações às possibilidades em divisas, sem fixação de um ótimo de importações corretamente pré-estabelecido.
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mulação e a amortização, sem acarretar modificações na repartição da força de trabalho.
Passemos agora à produção dos meios de produção nos casos em que o Estado tem o monopólio da produção mas não das com-pras. Trata-se tanto dos meios de produção que, por sua natureza, podem figurar somente como meios de produção como dos que, se­gundo sua utilização, podem figurar simultaneamente como meios de produção e como meios de consumo. Exemplos do primeiro ti­po: equipamentos e metais para a economia privada. Exemplos do segundo tipo: querosene, álcool, combustíveis que são concomitan-'temente destinados ao consumo técnico e ao consumo individual. Encontramos» na parcela da produção deste tipo que se dirige à economia estatal, um caso já examinado. O Estado produz para ele mesmo; os preços fixados pelo Estado, como por exemplo o preço do metal para o Gomza *, os preços do petróleo para as estradas de ferro, etc, têm apenas uma aparência externa, formal, com os pre­ços do mercado capitalista. Na realidade, ocorre aqui, sob a forma de preços, uma distribuição planiíícada de recursos no interior do organismo único da economia estatal. Sabemos que, freqüentemen­te, o Estado fixa um preço para a venda do petróleo para as estra­das de ferro e do querosene para as fábricas e transporte rodoviá­rio; outro preço para o mercado privado interno e um terceiro para a exportação. Entretanto, é impossível de identificar esta fração da produção ao caso examinado mais acima, no qual o Estado agia ao mesmo tempo como produtor monopolista e como comprador mo­nopolista. Nos casos em que a grande massa da produção não é des­tinada ao setor estatal, os organismos produtores encontram-se já sob a poderosa influência dos principais consumidores. Tomemos, por exemplo, a produção de máquinas agrícolas das quais apenas uma pequena parcela é destinada aos solvkozes ** e são vendidas, "na sua esmagadora maioria, aos camponeses. É verdade que; na medida em que o Estado tem o monopólio da produção, em que ne­nhuma concorrência interna a ameaça, o Estado pode, aqui tam­bém, fixar os preços guiando-se pelo plano econômico que pode ser
* Gomza - Associação das Fábricas Metalúrgicas (L. M. R.). ** Sotvkoses - Fazendas estatais (L. M, R.),
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estabelecido a partir de considerações não somente sobre a repro­dução ampliada mas também sobre a melhoria do equipamento da economia camponesa (coisa que ocorre, na prática, através de nos­sas entregas de máquinas agrícolas, com seus preços extraordinaria­mente vantajosos para o campesinato e por vezes deficitários para o Estado). Entretanto, a planifícação tem limites determinados, a sa­ber: o volume da demanda efetiva, para uma produção dada, entre os compradores do setor da economia privadg e, também, quando se trata da exportação, a capacidade e os preços do mercado exter­no. Um boicote de compradores, eis a barreira colocada diante da planifícação do Estado no caso em que seus preços ultrapassem um nível aceitável para o mercado privado. Neste caso, não somente o processo de reprodução ampliada mas também o de reprodução simples nos ramos correspondentes do setor estatal podem marcar passo. Num caso e noutro, a lei do valor age não somente sobre o volume da acumulação no setor estatal mas também sobre a divisão das forças de trabalho, Diante da total impossibilidade de se chegar a uma redução dos preços pela organização de empresas concorren­tes com um preço de fabricação inferior ao do Estado, ou com rit-. mos de acumulação mais lentos, a pressão sobre produção estatal marcha paralelamente com a redução da demanda e com a recusa pura e simples da compra dos produtos estatais em geral. Tivemos, como se sabe, um exemplo semelhante em nossa, economia, no ou­tono de 1923. Quando, pelo contrário, a demanda efetiva do merca­do privado excede o volume da produção estatal, as margens de manobra econômica do Estado ampliam-se assim como as possibi­lidades de acumulação às custas da. economia privada, sendo o Es­tado senhor da fixação dos preços dentro dos limites fixados, de um lado, pelos custos de fabricação e, de outro, pelo esgotamento de toda demanda efetiva (tendo-se em conta, bem entendido, a in­fluência dos preços sobre o volume da demanda).
A partir dos exemplos citados, o leitor pode ver que, quando o Estado possui o monopólio da produção mas não o monopólio das compras dos meios de produção, a categoria preço adquire duplo caráter, ele é, de um lado e como antes, um método de cálculo, um outro nome para designar a distribuição planificada dos recursos no interior do setor estatal e, de outro lado, é uma função da acu­mulação socialista primitiva, limitada pela ação da lei do valor,
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quando há trocas entre a economia estatal e a economia privada. Ê nisso que reside a segunda dualidade do papel do preço no caso que examinamos. Se a economia privada recebe uma quantidade menor de meios de produção, isto influi ao mesmo tempo sobre o volume de seu capital fixo e sobre a divisão e aplicação da força de traba­lho. Ocorre o mesmo com a economia estatal. Em outras palavras, este ou aquele resultado do conflito entre a lei da acumulação socia­lista primitiva e a lei do valor acarreta uma repartição diferente das forças produtivas, em particular da força de trabalho. Se, em regi­me de liberdade de concorrência, o preço no mercado capitalista é uma função do valor, o preço do Estado monopolista no mercado privado é uma função da acumulação socialista primitiva limitada pela lei do valor. Mais-adiante, voltaremos a este assunto. Exami­naremos também como a lei do valor se manifesta igualmente através do aumento dos preços no comércio a varejo, agindo, em época de escassez de mercadorias, como fator de acumulação capitalista. Prossigamos. Tomemos o caso em que o Estado não tem o monopólio nem da produção dos meios de produção nem das com­pras. Exemplo: as tararas, os produtos de forjaria, tais como ma­chados, pregos, etc,e de*reparação de equipamento, são produzidos tanto na economia estatal como na economia privada e comprados por ambos. Refiro-me propositadamente aos meios de produção que, pOT sua forma natural, são ferramentas de trabalho e não ma­térias-primas destinadas a uma produção ulterior, da qual falare­mos mais adiante. De modo geral, do ângulo quantitativo, esta par­te da produção é reduzida, pois o artesanato e a indústria arrendada não podem desempenhar aqui - com exceção talvez do material de reparação - um papel importante. Se aqui o papel mais importante é desempenhado pela produção estatal, os preços de mercado serão naturalmente, em geral e no seu conjunto, os preços que o Estado fixar para sua produção e os que ele determinar a partir de seus cus­tos de produção e de seu próprio nível de acumulação. Em tais con­dições, as empresas concorrentes poderão, se seus preços de fabricação forem inferiores, acumular mais comerciando ao nível dos preços estatais ou escoar sua produção mais rapidamente vendendo mais barato do que o Estado. Se seus custos de fabricação aumen­tam relativamente, em comparação com os do Estado, os concor­rentes ficarão arruinados. Não são eles, então, que têm o comando
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do mercado. Os preços estatais desempenharão neste caso, rigoro­samente, o mesmo papel que no caso que acabamos de examinar, sendo somente nos produtos, pouco numerosos e de pouca signifi­cação que os concorrentes podem produzir mais barato que o Esta­do (ferramentas de diferentes tipos, por exemplo) que será possível ocorrer uma retração das empresas estatais, com a transferência da força de trabalho para outros produtos. A lei do valor age aqui, por acaso, na mesma direção que a lei da acumulação socialista. Mas os ramos considerados são tão pouco numerosos e seu papel na pro­dução dos meios de produção é tão reduzido que só nos detemos neste aspecto para completar nossa classificação.
Passemos agora para os ramos incomparavelmente mais im­portantes, principalmente a produção e a venda dos meios de pro­dução que fornecem matéria-prima para a indústria estatal e que são fabricados na sua esmagadora maioria, pela economia privada, mais precisamente pela economia camponesa. Trata-se aqui de toda a agricultura de produtos industrializáveis, tais como o algodão, o linho, o cânhamo, os cereais oleaginosos de todo tipo, a beterraba, as matérias-primas extraídas da pecuária: couros, lãs, pêlos de car­neiro, etc. Que acontece nestes casos com a ação da lei do valor? É perfeitamente evidente que sua influência deve ser aqui in­comparavelmente mais forte do que no caso em que, por exemplo, o Estado produz máquinas a partir de metais fundidos em seus pró­prios altos-fornos, com a utilização de minerais e de carvão extraí­dos igualmente de suas minas. A agricultura de produtos industria­lizáveis e as matérias-primas de origem animal são produzidas ape­nas em quantidades mínimas nos solvkoses, sendo a maior parte produzida pela economia camponesa, quer dizer, pela economia mercantil simples. De outro lado, o Estado nem sempre tem o mo­nopólio das compras. Se o algodão e o linho, em esmagadora pro­porção, são comprados pelo Estado, em compensação, os couros, por exemplo, em ampla proporção, são tratados e transformados em calçados, arreios, etc, por meios artesanais e semi-artesanais. Isto significa que os compradores do Estado sofrem aqui uma forte concorrência de parte da economia privada. Entretanto, seria com­pletamente errado pensar que o ramo dos meios de produção consi­derado constitui uma arena de total supremacia do mercado livre e
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do elemento espontâneo da lei do valor. Temos, a este respeito, a experiência suficientemente rica dos últimos anos, que indica exata­mente o contrário. Examinemos mais de perto como as coisas ocor­rem neste caso.
Comecemos pela agricultura e matérias-primas industrializá­veis que têm o Estado como comprador monopolista ou pelo me­nos como o principal comprador. Este é o caso do algodão, do li­nho, do cânhamo, dos cereais oleaginosos, a beterraba, etc. A ativi­dade do Comitê do Algodão, de um lado, das organizações de com­pra do linho, de outro lado, constituem uma prova experimental in­teressante da força de influência que pode ter a indústria estatal sobre o mercado privado e depois sobre a pequena produção, nos lugares onde esta indústria é o principal comprador e onde ela se manifesta de modo organizado, como um único organismo econô­mico. Aqui, não é tanto o mercado que dita seus preços ao Estado mas o Estado que dita seus preços ao mercado. Sabe-se que o preço do algodão até agora tem sido fixado não no mercado livre de Tachkent mas em Moscou pelos organismos estatais de planifica-ção econômica. E, até aqui não tem havido transgressão dos preços fixados pelo Estado, embora estes sempre tenham sido inferiores, e de longe, aos do mercado mundial. Os preços de compra do Estado para as matérias-primas relacionadas constituem um caso extrema­mente interessante de uma certa resultante entre a lei do valor e a lei da acumulação socialista primitiva.
Neste caso, principalmente, em que se manifesta a lei do valor? No fato de que a planificação estatal no que tange-aos preços de compra se choca com dois limites fixados pela lei do valor: um limi­te máximo e outro mínimo. O limite máximo é o preço médio do mercado mundial na medida em que se trata da lavoura de exporta­ção, como o linho e o cânhamo, e de importação, como o algodão, a lã fina, etc.
N ão teria nenhum sentido, por exemplo, o Estado comprar al­godão no interior do país a preços superiores aos do mercado mun­dial se ele não estiver limitado em suas possibilidades de importa­ção em razão da falta de divisas estrangeiras. Exatamente da mes­ma maneira, o Estado evitará comprar linho para sua própria in­dústria de linho, e para a exportação, a preços que, tendo em conta
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os custos de transporte e outros gastos gerais, excedam o preço de venda no mercado europeu. A lei do valor fixa aqui um limite máxi­mo.
Mas de que maneira pode-se definir o limite mínimo? O míni­mo, evidentemente, é determinado pelas despesas com mãos-de-obra, pelo grau de interesse que oferece a agricultura considerada em comparação com outros cultivos dos camponeses. Se o Estado fixa preços tão baixos para o linho de modo que os camponeses das províncias produtoras tenham interesse em substituir o linho pelo cultivo de cereais, se o baixo preço das plantações da beterraba e do algodão, prejudicando seus produtores, acarreta um aumento da semeadura do trigo, etc, estaremos em presença do limite mínimo fixado pela lei do valor na produção mercantil simples. Todos os que conhecem a atividade de nossa Comissão Geral do Algodão sa­bem quantos esforços tiveram que ser empregados, graças a uma política adequada de preços de compra, de um lado, e graças ao en­vio de trigo para o Turquestão, por outro lado, para obrigar os camponeses da Ásia Central que tinham passado, durante a guerra, da cultura do algodão para a do trigo, a voltar a cultivar algodão e fazer com que a superfície cultivada quase atingisse aquela do pré-guerra. Por outro lado, cessou a queda catastrófica da semeadura do linho nas províncias do Nordeste durante os anos de escassez e de substituição do linho pelos cereais; os camponeses voltaram pro­gressivamente ao cultivo do linho apenas porque a política de preço de compra do Estadq, por diferentes modos, estimulava esta mu­dança. Se isso não tivesse ocorrido, o cultivo do centeio estaria sen­do feito nos lugares em que o linho fez seu reaparecimento.
Estes exemplos mostram como atua a lei do valor num dado setor da economia soviética. Vejamos, agora, como se manifesta aqui, simultaneamente, a ação da lei da acumulação socialista que limita a lei do valor, ou se quisermos, que é limitada por ela.
Como já dissemos, os limites da supremacia do princípio de planificaçào estatal na política dos preços estão compreendidos en­tre os preços do mercado mundial, de um lado, e os preços que es­tão na margem do abandono do cultivo de um dado produto, por outro lado. O campo de manobra é aqui bastante amplo, provavel-
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mente não menos do que 30 a 40% abaixo do preço mundial, Q Es­tado mantém os preços de compra a nível adequado para a expan­são das culturas consideradas, mas inferior aos preços que se estabe­leceriam se existisse liberdade de concorrência entre os comprado­res estrangeiros, e pelos compradores internos, se a indústria, entre nós, não fosse uma indústria estatal mas uma indústria privada e, se, conseqüentemente, ela não interviesse de modo organizado no mercado das matérias-primas.
Tudo o que separa os preços de compra daqueles que se estabe-leperiam no caso da liberdade de concorrência dos compradores burgueses deve ser integralmente atribuído à lei da acumulação so­cialista primitiva. Quando, a partir de um sistema de compras orga­nizado, o Estado mantém os preços a um nível determinado, e mes­mo os reduz apesar do aumento da demanda superar a oferta -como aconteceu com o linho e o algodão em 1925 quando seus pre­ços baixaram em relação a 1924 - temos um claro exemplo de limi­tação da lei do valor pelo princípio da ptanificação, que toma, neste caso particular, a forma da lei da acumulação socialista primitiva. Ao mesmo tempo,este exemplo mostra em que sentido aqui se pode falar exatamente de uma lei. Se a lei do valor, na sociedade burgue­sa, só se impõe como resultante média de processos que se encon­tram e se chocam de modo espontâneo, como resultante de pressões e resistências, em troca, no caso considerado, o Estado parte da previsão da ação de resistência; ele não capitula diante dele mas re­duz deliberadamente seu ritmo de acumulação, limitando a um nível determinado tanto o aumento dos preços como seu rebaixa­mento compulsório. Se podemos opor a lei espontânea da produ­ção mercantil, a lei do valor, à contabilidade de uma economia pla-nificada plenamente constituída, em que a ação desta lei é substituí­da pela determinação deliberadamente calculada da estatística so­cialista da produção e da distribuição dos produtos (e não de merca­dorias), a situação é diferente no período de luta em favor da pro­dução planificada, no período em que a lei do valor se encontra li-, mitada e entravada. A luta em favor da planificaçào é antes de tudo uma luta pela acumulação dos recursos materiais da economia esta­tal que asseguram o desenvolvimento de certas relações de produ­ção em prejuízo de outras relações de produção. Esta acumulação é limitada pela ação da lei do valor que ainda existe e se encontra,
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conseqüentemente, submetida à influência dos fatores espontâneos. /T)este ponto de vista, a lei da acumulação socialista primitiva cons-\jitui a forma sob a qual se opera a reencarnação dialética das leis es­pontâneas da economia desorganizada em um novo modo de reali­zação do equilíbrio no sistema econômico, equilíbrio que se realiza graças ao papel essencial da previsão consciente e do cálculo práti­co da necessidade econômica.Trata-se de uma lei no sentido usual. do termo? A resposta deve ser antes positiva do que negativa, se consideramos a economia do país no seu conjunto e não somente sua parte mais organizada. Aliás, trata-se da mesma dualidade, das mesmas contradições do desenvolvimento que existem também em quase todas as categorias da economia capitalista que analisamos na base de nosso sistema econômico.
Para terminar a questão das matérias-primas industriaiizáveis produzidas na economia camponesa, mencionemos ainda o seguin­te fato: um importante papel, no que tange à dominação do merca­do das matérias-primas industriaiizáveis começa já a ser desempe­nhado pelo sistema de crédito estatal, pelo sistema de financiamen­to aos compradores. Este sistema, habitual nas relações capitalistas, limitará fortemente, em nosso país, a ação da lei do valor, pois os fi­nanciamentos são concedidos somente pela economia estatal organi­zada e não pelos compradores de matérias-primas concorrentes. De outro lado, é perfeitamente evidente que a política de preços do Es­tado, enquanto principal comprador, pode exercer uma profunda influência na distribuição das forças produtivas na economia cam­ponesa, encorajando certas culturas em detrimento de outras, intro­duzindo elementos de planificação na distribuição territorial das culturas no interior da economia camponesa ..O sistema planifica-
I Ver. a este respeito, de modo mais pormenorizado, meu trabalho Da NEP ao So­cialismo, p. 99-103. Sobre o assunto, observo a título de curiosidade, o seguinte fato: S.V.Tchlenov, que escreveu um comentário sobre esse trabalho, um comen­tário extremamente desabonador no terceiro fascículo da A Imprensa e a Revolu­ção, de 1923, notou, entre os defeitos, a previsão, segundo ele inteiramente sem fundamento, de que cinco anos após o término da guerra civil (portanto, em 1926) o Donbass* atingiria seu nível de produção de carvão igua^ ao do pré-guerra. Para a infelicidade da crítica, é justamente em 1926 que o Donbass deve atingir a produção do pré-guerra.
• Donbass - Bacia do Don. (L. M. R.)
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do de preços transforma-se aqui num poderoso instrumento de ação da indústria sobre a economia camponesa. Quanto mais rápi­do for o desenvolvimento de nossa indústria mais fortemente ela atrairá economicamente a produção camponesa de matérias-primas submetendo-a ao plano socialista. O próprio preço transforma-se aqui, de uma categoria da economia mercantil, de uma função da lei do valor, em alguma coisa de transitório, que tende para o cálcu­lo socialista quando das trocas entre a cidade e o campo, embora a mercadoria da economia camponesa, comprada a um preço estabe­lecido pelo Estado, não esteja ainda, em relação à produção, em vias de se transformar em produto. Finalmente, aqui também o di-hheiro, tal como ocorre no interior do setor estatal, tem suas fun­ções um pouco modificadas. Ê particularmente interessante obser­var esse aspecto nos cálculos da Comissão Central do Algodão, no que toca os preços do algodão em relação aos do trigo.
No que concerne às compras de matérias-primas adquiridas em grande quantidade pelos produtores privados, ou processados na própria economia camponesa, o papel regulador do Estado é muito menor e a ação da lei de valor consideravelmente mais forte. Freqüentemente, os preços máximos fixados pelo Estado são aqui ultrapassados pela ação dos compradores privados, fato que obriga o Estado a modificar seus preços máximos ou a paralisar as com­pras, com o risco de deixar suas empresas sem matérias-primas. Por sua vez, as flutuações dos preços de compra se refletem inevitavel­mente nos cálculos dos produtos acabados, limitando as possibili­dades de planificação do Estado. Se, além disso, o preço da lã bru­ta, por exemplo, parece pouco vantajoso aos camponeses, estes in­tensificam sua própria fabricação de botas de feltro, de tecidos do­mésticos, etc. Deste modo, a lei do valor pressiona os ramos corres­pondentes da economia estatal. O enfraquecimento da ação da lei do valor só pode ocorrer aqui pela redução dos preços dos produtos estatais acompanhados de sua expansão, o que reforçará a influên­cia do Estado como principal comprador e tornará pouco vantajo­so para os camponeses o trabalho doméstico com sua própria maté-r.ia-prima. Mas esta evolução depende integralmente, é claro, dos ê-xitos alcançados no fronte da acumulação socialista primitiva.
Passemos agora da produção e das compras de meios de pro­dução para a produção de bens de consumo. É perfeitamente evi-
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dente que a influência da lei de valor é aqui, no conjunto, muito maior do que no que diz respeito à produção de meios de produção. Fazendo abstração, como procedemos anteriormente, dos métodos de remuneração da força de trabalho, quer dizer, do mercado de trabalho (se é permitido utilizar este termo) observamos de outro ângulo a influência da lei do valor. Do ponto de vista que estamos considerando, as particularidades próprias da produção de bens de consumo comparadas à dos meios de produção são as seguintes: 1) o papel mais importante desempenhado pela concorrência da eco­nomia privada na produção e na venda; 2) a maior influência da lei do valor em razão das flutuações dos preços das matérias-primas; 3) uma dependência mais considerável e mais direta em relação à demanda efetiva da economia privada em comparação com a pro­dução estatal; 4) a maior influência da oferta e da procura sobre os preços a varejo.
A concorrência da economia privada na produção e venda é perfeitamente evidente a partir da mera enumeração dos diferentes ramos. Na indústria alimentícia, - com o enorme papel da fabrica­ção privada do pão, da salsicharia, da pesca e da transformação dos produtos do mar, da confeitaria, da cervejaria particular até a aguardente camponesa - temos um conjunto de ramos que não exi­gem nem equipaYnento, nem grande massa de meio circulante, com, uma rotação rápida de capital, ramos que são mais acessíveis à pe­quena produção e ao pequeno capital. Existem aqui gigantes do monopolitismo estatal, tais como a indústria açucareira e, ao seu lado os moinhos de cereais onde, ao contrário, predomina a produ­ção privada. A pequena produção desempenha papel de igual im­portância no setor do couro, da lã, do cânhamo. e da confecção de roupas. O ramo mais importante da economia estatal - a indústria têxtil - enfrenta igualmente a concorrência considerável da pequena produção, concorrência que só se torna inofensiva numa dada eta­pa da produtividade do trabalho, decorrente da técnica sofisticada da grande produção.
A produção estatal de bens de consumo está submetida, ade­mais, à influência da lei do valor na medida em que o Estaco obtém suas matérias-primas do setor privado no interior do país ou então a importa do Exterior em grande quantidade. Já dissemos como se passam as coisas no interior do país. A ação da lei do valor aí está
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fortemente limitada graças ao caráter organizado da economia es­tatal. No que concerne às matérias-primas importadas, em compen­sação, a indústria estatal é sacudida pelas ondas da lei mundial do valor, que penetram pela brecha das importações e modificam, den­tro de determinados limites, os cálculos da produção segundo os preços mundiais do algodão, da lã fina, da borracha, etc. A dimi­nuição da influência do mercado' mundial, neste aspecto, só pode ser obtida pelo desenvolvimento da produção interna de matérias-primas, para o qual nosso país tem ricas perspectivas no setor do al­godão e da lã fina.
*     O terceiro tipo de dependência com relação à economia priva­da concerne à demanda efetiva que vem de fora do setor estatal. Aqui, pensamos quase exclusivamente na demanda efetiva da eco­nomia privada, na medida em que a regulação do volume da de­manda dos operários e empregados estatais (se não levamos em conta a concorrência no mercado feita pelos artesãos e pela peque­na indústria) depende do próprio Estado operário, de sua política salarial. Se os preços dos produtos estatais são muito elevados, isto pode levar os compradores a diminuir suas compras, reforçando a fabricação doméstica de uma série de artigos - aspecto ao qual já ■ nos referimos - ou então ao boicote das compras. O primeiro méto­do é mais provável justamente nos. ramos de produtos de bens de consumo Se os camponeses não estão em condições de fabricar eles mesmos suas charruas e se, diante de seu alto preço, intensificam sua utilização até o ponto em que elas devem ser jogadas fora ou repa-" radas, em troca, na produção de bens de consumo, como vestimen­tas, calçados e alimentos, há muito mais possibilidades de envolver pela retaguarda a indústria estatal. Entretanto, como já dissemos, tal envolvimento só pode ocorrer numa situação em que os preços dos produtos industriais estejam muito elevados '. E isso é tanto mais difícil de acontecer quanto mais a produtividade do trabalho da grande indústria for se distanciando da produtividade da produ­ção doméstica. Isto significa que, com o desenvolvimento da produ-
O enorme desemprego disfarçado que existe no campo, resultado da grande po­pulação rural, exerce grande influência sobre este processo mas o remédio, aqui também, reside numa industrialização mais rápida de nosso país.
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tividade do trabalho na indústria urbana, desenvolve-se também, automaticamente, as possibilidades de manobra planificada do Es­tado assim como as possibilidades da acumulação socialista primi­tiva em detrimento da produção privada.
A ação da lei do valor manifesta-se de outro modo no período de penúria de mercadorias. Falando de modo geral, a escassez de produtos aos quais nos referimos, quer dizer, de bens industriais, é uma conseqüência da desproporção entre a produção industrial e a demanda efetiva do país, Esta desproporção, em regime de liberda­de de concorrência, seria superada de modo normal, quer dizer, no começo, pelo aumento dos preços nos ramos em que a produção é insuficiente e, conseqüentemente, pelo aumento dos lucros do capi­tal investido nesses ramos, o que acarreta logo um afíuxo de novos capitais e indústrias e, no final, uma expansão da produção até um volume correspondente à demanda e, talvez, além dela. A escassez de mercadorias seda assim corrigida e o aumento dos preços, tendo desempenhado seu papel no que toca à redistribuição das forças produtivas, deveria cessar. O problema poderia também ser resolvi­do por outro meio que caminha paralelamente ao que acabamos de descrever, quer dizer, pelo aumento das importações de produtos estrangeiros, se as tarifas alfandegárias o permitem. Assim, poderia ser eliminada, através da lei do vaíor, a. desproporção na distribui­ção das forças produtivas e a escassez de mercadorias.
Peio contrário, quando cerca de 80% da indústria pertencem ao Estado, a liquidação da desproporção só é possível (se excluímos o aumento das importações) através da extensão planificada da in­dústria estatal até o nível do aumento da demanda. É apenas par­cialmente, e cm modestas proporções, que o aumento dos preços pode conduzir ao aumento da pequena produção da indúslría arte-sanal e dos artesãos nos setores afetados pela escassez de mercado­rias. A escassez constitui uma advertência para o Estado que dirige a indústria, significando uma exigência em favor do estabelecimen­to da proporcionalidade que reclama claramente todo o organismo econômico do país. Mas imaginemos que, em razão de uma política errada do Estado durante o ano considerado ou do ano passado, todas as conseqüências se fazem sentir um ano depois; imaginemos ainda que em conseqüência de uma falta de novos capitais e de es­cassas possibilidades de importação, o Estado não consegue au-
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mentar a produção de um modo que corresponda à expansão da de­manda efetiva. Que acontece então? De um lado, nos ramos em que a escassez de mercadorias se manifesta mais fortemente, teremos um brusco aumento dos preços a varejo em toda a linha do comér­cio privado, quer dizer, um aumento de 40% de toda a circulação a varejo, se tomamos o exemplo do ano de 1925. De outro lado, sob a pressão do elemento espontâneo do mercado, a cooperação cede, inevitavelmente, seguindo a linha de menor resistência, quer dizer, no que toca aos preços a varejo, ela ultrapassará os aumentos per­mitidos sobre os preços por atacado fixados pelo Estado. Assim, a lei do valor irá modificar, também neste setor, a política estatal de preços fixos e planificados. Quanto à redução dos preços de venda dos trustes nos ramos em que a escassez é aguda, ela não ocasiona-. ria nenhum rebaixamento dos preços a varejo, e seria perfeitamente absurda na prática e incorreta do ponto de vista da teoria econômi­ca '.
De modo geral, teríamos - como tivemos de fato em 1925 -uma ação da lei do valor que não foi levada até o fim e que, com is­so, foi completamente deformada e descaracterizada, pois esta lei pode suscitar um aumento dos preços a varejo mas é impotente para ocasionar, através da alta dos preços, uma redistribuição das forças produtivas no interior do país no sentido de uma industriali­zação mais rápida. Para empregar uma comparação fisiológica, es­tamos em presença de um reflexo inibido da lei do valor que não se transmite da esfera da distribuição para a da produção. O capital comercial privado ganha centenas de milhões mas isso quase não influi sobre a produção. Pode-se dizer que a ampliação da acumula­ção do capital privado é diretamente proporcional à força de ação da lei do valor enfraquecida.
1 Lembro ao leitor aquela saraivada de objeções, íncompreensões e falsificações que o autor dessas linhas teve que enfrentar por çsta idéia expressa no capítulo deste livro consagrado à acumulação socialista. Evidentemente, atualmente não há mais objeções, depois que o Estado pagou, por realizar uma experiência polí­tica inversa, dezenas de milhões, ou mais. Mas também não haverá, de parte de meus críticos, reconhecimento público de seus erros. Ainda não chegamos a este momento.
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O fato que acabamos de mencionar constitui também um exemplo clássico - que deveria ser estudado em todos os cursos de teoria econômica soviética - das conseqüências econômicas a que pode conduzir uma situação na qual a ação de uma lèi fundamen­tal, no caso, a lei do valor, é paralisada ou, mais precisamente, par­cialmente abolida e onde a ação de outra lei, que a substitui histori­camente, não pode, por tal ou qual razão, desenvolver-se propor­cionalmente à etapa e ao ritmo de abolição da lei do valor. É perfei­tamente evidente que, se a acumulação socialista primitiva da in­dústria (e inclusive e antes de tudo, a acumulação às custas da eco­nomia privada através dos impostos e da política de preços) corres­pondia ao nível das novas relações de produção já atingido, quer di­zer, ao nível já atingido de coletivização da indústria e das exigên­cias que lhe colocam o conjunto da economia - exigências que, pela própria estrutura da economia estatal, não podiam ser satisfeitas espontaneamente - não haveria escassez de mercadorias e o reflexo inibido da lei do valor não colocaria dezenas, para não dizer cente­nas de milhões, no pé de meia da acumulação capitalista.
Deixando de lado, pelo momento, a questão mais geral de sa­ber em que medida o próprio fato da socialização da indústria exige cada ano, com uma necessidade de ferro, uma proporção determi­nada de acumulação socialista, farei um balanço do que foi dito em todo este parágrafo.
Vimos que a lei do valor* fazendo abstração do problema da força do trabalho, exerce um mínimo de influência na esfera da pro­dução quando o Estado é ao mesmo tempo produtor e comprador monopolista dos meios de produção. Isto significa que a indústria pesada constitui o elo mais socialista de nossa economia estatal, o setor em que maís rapidamente avançou o processo de substituição das relações de mercado por encomendas planificadas e preços con­trolados no interior do organismo unificado da economia estatal. Foi aí que o processo de transformação do preço numa repartição planificada de recursos no interior do setor estatal progrediu mais e que começou a realizar-se o processo de transformação da merca­doria em produto. No domínio da produção estatal de bens.de con­sumo, a influência da lei do valor é muito maior. Ela é tanto maior quanto a indústria estatal é menos monopolista e as matérias-
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primas elaboradas nos ramos da pequena produção, que estão sub­metidas à ação do elemento espontâneo das relações de mercado, desempenham um papel mais importante no cálculo dos custos de produção. Na medida, enfim, em que passamos para a economia privada, quer dizer, antes de maís nada para a economia campone­sa, a lei do valor é limitada ao máximo pela lei da acumulação so­cialista nos ramos da produção camponesa dos meios de produção destinados à grande indústria, quer dizer, na esfera da produção de matérias-primas industriais, na sua grande maioria, compradas
pelo Estado.
Prosseguindo agora segundo o grau de aumento da influência da lei do valor, tratemos inicialmente da produção dos bens de con­sumo na economia camponesa que são comprados pelo Estado e consideremos, em seguida, as trocas entre o próprio campesinato. Vejamos em primeiro lugar qual é a importância própria desta facção da produção camponesa na produção global do país e na fracçâo mercantil da produção camponesa no seu conjunto. Segun­do as estatísticas do Gosplan para o ano econômico de 1924-1925, sobre a massa global de produtos colocados no mercado pelo cam­pesinato, quer dizer, em 2.857 milhões de rublos (preços anteriores, à guerra) a parte da agricultura industrial era de 631,4 milhões de rublos, ou seja, 22,6% '. Vê-se, por essas cifras, que esta parte, com ação limitada da lei do valor, é muito importante. Entretanto, a parte dos bens de consumo é muito maior. É necessário lembrar que o Estado compra apenas uma parte e não a totalidade dos be_ns de consumo colocados no mercado e vendidos pela economia cam­ponesa. Em 1924-1925, por exemplo, em 833,7 milhões de puds de cereais mercantilizáveis, o mercado urbano e a exportação absorve­ram apenas 305,7 milhões de puds, isto é, 36,8%. A questão que se coloca agora è saber o que acontece com a lei do valor neste setor de nossa economia.
Segundo as cifras de controle para 1925-26, a produção das colheitas industriais como parte da produção agrícola total deveria elevar-se a 715,3 milhões de rublos, inclusive peles no valor de 260,3 milhões de rublos (produção bruta). Neste total, bens no valor de 538,3 milhões foram colocados no mercado.
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É perfeitamente evidente que, dada a importância mínima da produção estatal no que tange à cultura de cereais e do pastoreio, quer dizer, o papel insignificante da produção dos sofakhoses, o Es­tado não está em condições de exercer, sobre o mercado de bens de consumo, uma influência efetuada através da produção, isto é, des­te fundamento de toda regulação que desempenha um papel tão grande no que tange à indústria soviética. Nestas condições, de modo geral, a regulação só é possível no domínio das trocas e do crédito. A influência do Estado sobre a economia camponesa atra­vés do sistema do crédito é ainda tão fraca que praticamente não cabe falar deste instrumento de regulação. Resta apenas a esfera das trocas. O Estado aparece aqui como o comprador organizado para a massa do consumo urbano interno e como monopolista na esfera do comércio externo de cereais, de gorduras e outros produ­tos alimentícios. Nisto reside sua superioridade. Mas, ao mesmo tempo, sua liberdade de manobra no que toca à política de preços é mais limitada aqui do que no que diz respeito às trocas em larga es­cala. Um primeiro limite é imposto pelo mercado mundial de ce­reais. Os preços mundiais dos cereais dependem apenas numa medi­da insignificante de nosso Vnechtorg uma vez que, do enorme volu­me de cereais vendidos no mercado mundial, nós só participamos numa porcentagem muito pequena. As flutuações dos preços mun­diais dos cereais pesam muito sobre nossa política, como uma força externa, objetiva e quase independente de nós. Por outro lado, o mercado interno encontra-se apenas numa escala muito pequena sob nossa influência pelo fato de que a maior parte dos cereais mer-cantilizáveis destina-se a atender a própria demanda camponesa e abastecer a fração desorganizada do mercado urbano, escapando das compras do Estado. Enfim, é necessário ter em conta o fato muito importante de que nosso campesinato - em conseqüência de uma nítida redução dos impostos, em relação ao pré-guerra, e tam­bém em conseqüência da supressão do pagamento de renda aos* grandes proprietários - tem menos necessidade, em comparação com a situação anterior à guerra, de realizar vendas forçadas '.
I  Ver a este respeito meu artigo no Pravda de 15 de dezembro de 1925 sobre a pe­núria de mercadorias.
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Este fato dá ao campesinato maiores possibilidades para ma­nobrar utilizando seus excedentes de cereais, para formar grandes estoques, aumentar seu consumo e, essencialmente, utilizar uma par­te maior da sua produção na alimentação de seus animais. A possibili­dade de aumentar a criação, em particular aquela destinada ao mer­cado, torna os camponeses menos dependentes dos preços'de com­pra fixados pelo Estado. Não se deve, porém, exagerar aqui fenô­menos sazonais que caracterizam certos anos isolados do penodo da reconstrução. É necessário ter em conta também as tendências do desenvolvimento a longo prazo. Não se pode obter grandes esto­ques de reserva além de certos limites. A utilização dos excedentes de cereais para a ampliação da criação de animais encontra também limites, na medida em que o mercado interno, o da carne, por exem­plo, amplia-se de modo relativamente lento e o mercado externo ainda deve ser conquistado com grande dificuldade e despesas de capital (frigoríficos, fábricas de toucinho, etc). Mas a tendência fundamental no aspecto considerado vai do lado não de uma redu­ção mas de um aumento do papel regulador do Estado, se 9 econo­mia camponesa continuar ?~ se desenvolver, Com efeito, quanto mais os excedentes comercializáveis dos produtos de consumo au­mentam com rapidez na economia camponesa, mais sua exportação desempenhará um papel importante e, conseqüentemente, mais o intermediário monopolista da produção camponesa no mercado externo - o Estado - desempenhará um papel importante no que diz respeito às compras.
Contido pelos preços do mercado mundial do lado do Jimite máximo, o Estado tem mais possibilidades de manobra do lado do limite mínimo e, com isso mesmo, de aumentar a dependência glo­bal da economia mercantil camponesa frente ao Estado. A influên­cia do Estado não poderá se estender aqui apenas ao papel regula­dor que ele detém no que respeita a compra de agricultura dos pro­dutos industrializáveis; esta influência aumentará, sem nenhuma dúvida, na medida do desenvolvimento do caráter mercantil e das possibilidades de exportação de nossa agricultura. Se nos anos de má colheita o elemento espontâneo do mercado atua mais forte­mente e pode encontrar uma limitação reguladora nas importações de cereais estrangeiros pelo Estado, ao contrário, o movimento de
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queda dos preços de cereais nos períodos de abundância pode ser contido com muito mais sucesso graças ao escoamento oportuno dos estoques estatais e aumento das exportações de cereais. O papel regulador do Estado em matéria de trocas aumentará na proporção do desenvolvimento dos recursos que o Estado for capaz de colocar de lado para a constituição dos estoques de reserva de planificação, em espécie e in natura. De outro lado, às cooperativas está designado um importante papel de regulação através das trocas, em particular na medida em que o crédito abranger trocas agrícolas, sem falar da influência das cooperativas na esfera da produção.
Enfim, o setor-em que a regulação planificada é menos impor­tante é o das trocas entre camponeses e o das trocas da produção camponesa com esta fracção do artesanato e da indústria artesanal que não é, ou é apenas numa escala muito pequena, absorvida pela grande produção coletiva. A capacidade-do mercado camponês é, como sabemos, muito grande para a produção camponesa de bens de consumo e, antes de tudo, de cereais. O número de propriedades camponesas que compra cereais é enorme. Em 1924-25, as compras de cereais de camponês para camponês atingiram 528 milhões de puds, ou seja, 63,6°O de todos os cereais comercializados '. Pareceria que a influência do Estado sobre os preços dos cereais deveria exer­cer-se também automaticamente sobre os preços do mercado de ce­reais entre camponeses. Esta influência existe indiscutivelmente mas é limitada pela seguinte circunstância. São principalmente os camponeses mais pobres que compram o cereal, como gêneros ali­mentícios ou como sementes. Nem sempre eles pagam em dinheiro e tampouco segundo os preços do mercado em conseqüência da de­pendência leonina em que se encontram com relação aos campone­ses abastados e os kulaks.
O acerto de contas efetua-se muito freqüentemente através da prestação de trabalho, quer dizer, sob a forma da troca de cereais contra o trabalho dos camponeses pobres, fato que implica, em ra­zão da enorme quantidade de mão-de-obra excedente no campo so-
I Em 1924-25,o total de trocas no interior do campesinato elevou-se a 1.497 mi­lhões de rublos de antes da guerra, e em 1925, a 1.781 milhões de rublos (Dados de controle da Comissão de Planificaçào do Estado para 1926-27).
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viético, em preços muito elevados nos cereais vendidos aos pobres. A regulação dos preços dos cereais pelo Estado não consegue afetar essas relações de exploração. O mercado da força de trabalho e as relações de exploração disfarçadas derrotam a influência regulado­ra do Estado sobre os preços dos cereais num aspecto importante das trocas no interior do campesinato.
No que concerne às trocas entre os camponeses, como, por exemplo, ò comércio de animais de tração e os artigos dos artesãos e da indústria artesanal que não são produzidos nas fábricas esta­tais, as relações da produção simples de mercadorias dominam so­zinhas e amplamente, trata-se do setor em que a lei do valor predo­mina amplamente '. Aqui estamos diante da presença desta parte de nosso sistema econômico que é o antípoda da produção dos meios de produção na economia estatal. O período do século XVI ao sé­culo XVIII coexiste com a mais alta conquista do século XX, com a indústria planificada do Estado socialista.
A Mais-valia, o Sobreproduto, o Salário
A questão de saber se a mais-valia, ou o sobreproduto, existe na indústria estatal suscitou e suscita numerosas discussões entre nossos economistas e entre a juventude universitária. O que disse­mos acima já deixa perceber, em parte, que esta questão, do ponto de vista da teoria econômica, forma um nó difícil de deslindar. É impossível resolver esta questão de modo isolado, fora da aprecia­ção geral de todo o nosso sistema econômico, fora da arválise siste­mática de todas as categorias da economia política aplicadas na economia soviética.
Se, num sistema de produção socialista planificada desenvolvi­do, o produto substitui a mercadoria, o cálculo do tempo de traba­lho substitui o valor, e a ração de consumo do trabalhador coletivo substitui o salário, então o sobreproduto substitui a mais-vaiia. As-

Falamos aqui da predominância indiscutível no setor da produção simples de mercadorias porque, como disse Marx mais de uma vez, a lei do valor "atinge seu livre desenvolvimento precisamente na produção capitalista", isto é, quando a força de trabalho aparece como uma mercadoria entre outras.
sim, devemos examinar, segundo o método adotado, até que pontos progredimos em nossa economia estatal no caminho histórico que conduz da mais-valía ao sobreproduto e quaí dessas denominações é a mais correta. Quero observar ainda que encontro nesta questão dois tipos de divergências; divergências term.inoiógicas e, portanto, de natureza secundária e, por outro lado, divergências de princípio, ligadas a apreciações históricas e teóricas divergentes de nossa eco­nomia estatal em geral. As divergências do segundo tipo não po­dem, por isto, limitar-se apenas à questão do problema considera­do; inevitavelmente elas afetam todos os problemas da análise teó­rica de nossa economia.
Comecemos pela definição precisa da noção de mais-valia, tal como a encontramos em Marx. A categoria da mais-valia é indisso­ciável das seguintes premissas fundamentais. Para que exista mais-valia é necessário, de modo geral, que exista valor, quer dizer, que o produto do trabalho humano seja uma mercadoria. E isto quer di­zer que se trata de uma categoria histórica, específica apenas da produção mercantil. Porém, isso não é tudo. O produto do trabalho humano adquire a forma de mercadoria não somente na produção capitalista mas também na produção simples de mercadorias. É ne­cessário, conseqüentemente, uma segunda condição essencial, ou seja, de que a força de trabalho tenha adquirido a forma de merca­doria, isto é, que exista um mercado livre de uma mercadoria parti­cular, a força de trabalho. Mas a existência da força de trabalho en­quanto mercadoria supõe a existência, num dos pólos, do proleta­riado, separado dos instrumentos de produção e, noutro pólo, de uma classe de compradores da força de trabalho, dispondo do mo­nopólio do direito de propriedade sobre os instrumentos de produ­ção. Conseqüentemente, a noção de mais-valía supõe não simples­mente uma relação de exploração mas uma relação de exploração entre empregadores e operários assalariados. Finalmente, uma últi­ma premissa está ligada ao primeiro termo da palavra "mais-valia", ou seja, é necessário certo grau de desenvolvimento da produtivida­de do trabalho em geral, de tal modo que os trabalhadores ocupa­dos na produção produzam mais do que o mínimo necessário para a reconstituição de sua força de trabalho. Isto quer dizer que a no­ção de mais-valia supõe a existência na sociedade de um sobrepro-
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duto que só adquire a forma de mais-valia numa etapa determinada do desenvolvimento da economia mercantil.
Antes de passar à análise das categorias da mais-valia em nossa economia, julgamos útil fazer um resumo da história do desenvolvi­mento dessa categoria. Na medida em que se realiza em nossa socie­dade, a transformação das relações de produção capitalistas numa forma, historicamente superior, de relações de produção socialistas, na medida em que devemos estudar a transformação dialética de certas relações em outras, o contrário também é interessante, quer dizer, no caso particular, a mesma transição dialética do sobrepro­duto à mais-valia no período inicial do desenvolvimento do capita--
lismo,
Mais de uma vez Marx alertou contra a confusão entre a noção
 mais-valia. O sobreproduto é uma noção in­
 "" ili    O     b
sobrepro­duto existia bem antes do desenvolvimento da produção capitalista e continuará a existir depois do desaparecimento da sociedade bur­guesa embora não mais como relação.de exploração. Foi apenas durante Certo período histórico que o sobreproduto adquiriu a for­ma de mais-valia. Na economia natural escravista não existe mais-valia no sentido de Marx, se bem que a exploração e o sobreprodu-i to aí existam na medida em que, nesta economia natural, os escra­vos criam somente objetos de consumo para seus senhores e na me­dida em que a finalidade da exploração é obter objetos de consumo. Também não há mais-valia na economia natural da servidão na qual, por exemplo, a corvéia predomina como instrumento de cria­ção de bens de consumo para os grandes proprietários feudais. A si­tuação só muda quando o produto criado pelo trabalho das classes exploradas adquire a forma de mercadoria, transforma-se em valor e, conseqüentemente, o sobreproduto transforma-se em mais-valia. A extorsão sistemática da mais-valia torna-se, então, o próprio ob­jetivo da exploração. Marx passa, neste caso, de um termo para ou­tro. Assim, por exemplo, no Livro Terceiro de O Capital, Marx fala da transformação "do sistema patriarcal escravista, voltado para a produção de meios imediatos de subsistência em outro sistema cujo fim é a produção da mais-valia". No Primeiro Livr,o de O Capital Marx fala não somente da exploração dos negros mas também da conversão do sobreproduto do servo camponês em mais-valia. Es-
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creve ele: "O trabalho dos negros nos Estados do Sul da União Americana revestia-se de caráter relativamente patriarcal na medi­da em que a produção destinava-se principalmente ao consumo lo­cal. Porém, na medida em que a exploração do algodão foi adqui­rindo o caráter de interesse vital para esses Estados, o trabalho des-mesurado do negro, e algumas vezes, o consumo de sua vida num período de sete anos de trabalho, tornou-se um fator num sistema calculado e que calcula. Não se tratava mais de obter uma quanti­dade dada de produtos de uso. Tratava-se, agora, da produção da mais-valia. Ocorreu o mesmo também nos principados danubianos" (Sublinhado por mim. E. P.).
Entretanto, temos aqui formas pouco desenvolvidas e transitó­rias da mais-valia que não são plenamente características do modo de produção capitalista evoluído. O fato é que estamos em presença de todas as premissas da mais-valia, excluída a última, que caracte­riza justamente o desenvolvimento do capitalismo, quer dizer, a transformação da força de trabalho numa mercadoria "livremente" vendida por seu proprietário no mercado de trabalho. O escravo es­tá acorrentado ao senhor de escravos com base no direito de pro­priedade do senhor sobre sua pessoa; o consumo de sua força de trabalho na produção opera-se não somente segundo leis específi­cas da produção mercantil-capitalista desenvolvida mas escapa fun­damentalmente ao domínio das leis da economia mercantil de com­pra, venda e reprodução de sua força de trabalho. A mesma coisa vale também para o servo camponês, para o qual a possibilidade de exploração não surge "livre" e espontaneamente do monopólio de uma classe sobre os meios de produção mas sim da dependência jurídica dos camponeses ante os senhores de terras.
(Pode-se citar, enfim, como última etapa no caminho da mais-valia autenticamente capitalista, o trabalho a domicílio dos arte­sãos para o revendedor, quando estes trabalham com seus instru­mentos a matéria-prima de seu cliente e são já, na realidade, operá­rios assalariados apesar de seus atributos externos de produtores in­dependentes. Mais um passo e teremos diante de nós o proletariado separado dos meios de produção e, no pólo oposto, o possuidor dos meios de produção, o capitalista que extorque a mais-valia precisa­mente da ação desenvolvida da lei do valor em geral e, no caso em
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questão, através da troca de capital contra a força de trabalho en­quanto mercadoria. ')
Passemos agoi-a à analise das categorias da mais-valia na sua aplicação à nossa economia e, antes de tudo, à economia estatal do proletariado. Se, durante o período pré-capitalista da história eco­nômica, existia de algum modo crescimento desta categoria na me­dida em que a economia mercantil expandia-se e transformava-se em produção mercantil-capitalista, observa-se entre nós um proces­so exatamente inverso, um processo de atrofia dos elementos da ca­tegoria da mais-valia à medida do desenvolvimento das forças pro­dutivas nas suas formas socialistas. No primeiro caso, temos uma dialética de crescimento; no segundo, um processo de desapareci­mento. Examinemos mais concretamente este processo analisando as diferentes premissas da categoria da mais-valia.
Como dissemos, a primeira condição de transformação do sobreproduto em mais-valia é a transformação do produto em mercadoria. Em nossa economia estatal, em compensação, como vimos antes, desenvolve-se uma tendência oposta - a transforma­ção da mercadoria em produto - que avança mais rapidamente e mais profundamente no setor da produção estatal dos meios de produção. O leitor pode medir a importância deste fato através das seguintes circunstâncias. Como sabemos - e Marx ocupou-se bas­tante com isso -/o desenvolvimento das forças produtivas da socie­dade capitalista)o desenvolvimento da técnica conduzem, em regra geral, à elevação da composição orgânica do capital, o que implica, do ponto de vista da repartição do trabalho em toda a sociedade, uma importância crescente da produção de meios de produção. A possibilidade de expansão da produção de bens de consumo e a re­dução de seus preços são obtidas por uma expansão relativamente ainda mais importante da produção de meios de produção. Esta lei não depende das características específicas das relações capitalistas de produção; ela deve operar também na sociedade socialista, na medida em que as forças produtivas da sociedade se desenvolverem. Mas, dado este fato, o desenvolvimento das forças produtivas deve ine­vitavelmente implicar um aumento da importância específica da pro­dução de meios de produção e este aumento de modo completamente automático acentua a tendência ao desaparecimento da produção
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mercantil na economia estatal e, deste modo, mina a categoria da mais-valia. )
Se consideramos toda a produção de nossa indústria estatal duranteum dado ano, colocando a questão de saber se isto consti­tui uma massa de mercadorias no sentido em que o termo é utiliza­do habitualmente por Marx, cumpre responder a esta questão tanto por um sim como por um não. Sim, na medida em que temos o mo­nopólio da produção, apoiado no mercado. Não, na medida em que temos o monopólio da produção pelo próprio setor estatal, conservando somente a forma das relações de mercado no interior deste setor; parcialmente não, na medida em que as tendências do monopólio socialista afetam a economia mercantil, acarretando, em muitos casos a liquidação da concorrência e a transformação da própria essência do mercado de mercadorias. Se, na economia cam­ponesa, o caráter mercantil da produção aumenta à medida do de­senvolvimento das forças produtivas do campo, sempre encontran­do as limitações das relações de mercado descritas anteriormente, em troca, na economia estatal, o caráter mercantil da produção de­clina justamente na proporção do aumento da soma absoluta da produção, e na proporção que aumenta a planificação e a organiza­ção de seu organismo econômico. Conseqüentemente, o balanço fi­nal é o seguinte: a categoria da mais-valia na economia estatal, do ponto de vista de suas premissas que examinamos, está em colapso e, em grande parte, já foi eliminada pelo desenvolvimento das rela­ções socialistas de produção '.
Consideremos agora a segunda condição da noção de mais-valia: a relação de exploração entre duas classes, o sistema de apro­priação do sobreproduto dos trabalhadores pelos possuidores dos
meios de produção. Aqui, sem dúvida, progredimos incomparavel­mente mais do que na relação que acabamos de examinar e progre­dimos não pela via evolutiva mas por saltos, graças à revolução so­cialista, à supressão da propriedade capitalista dos meios de produ­ção e sua passagem para as mãos do proletariado organizado em Estado.
Neste aspecto, mais do que em qualquer outro, podemos falar da transformação da mais-valia em sobreproduto. De modo geral, este ponto é essencial. A classe operária não pode explorar-se a si mesma '. A divisão do proletariado em trabalhadores que ocupam funções de organizadores - e que, como tais, recebem remuneração mais elevada - e a massa de trabalhadores, é uma divisão no interior de uma única classe, que em nada se diferencia, quanto ao princípio, da divisão desta mesma classe em trabalhadores qualificados.e não-qualificados. Uma tal situação está ligada à heterogeneidade da classe operária, no que se relaciona com a administração da indús­tria, com a heterogeneidade de sua formação técnica, de sua capaci­dade de organização, etc. Esta heterogeneidade constitui uma he­rança do capitalismo que o novo sistema econômico recebe, poden­do fazê-la desaparecer progressivamente na medida do aumento da produtividade do trabalho, da melhoria da formação cultural e téc­nica de toda a rnassa a partir de um novo sistema educacional, do desenvolvimento da democracia operária em todas as questões de liderança e administração, com base, enfim, numa luta perfeita­mente consciente com as tendências do conservantismo e da estag­nação. A desigualdade material existente e a lentidão relativa da as­censão de toda massa da classe operária até o nível dos dirigentes organizadores não decorrem da atual estrutura das relações de pro­dução mas se mantêm apesar desta estrutura e desaparecerão na


1 Fomos acusados muitas vezes de superestimar o princípio da planificação em nossa economia e de subestimar a ação da lei do valor. E necessário dizer de uma vez por todas, a propósito dessas críticas, que não me dedico, em parte alguma, a um cálculo aritmético da força de ação de um ou de outro princípro. Estudo so­mente suas tendências de desenvolvimento. Pode-se estimar diferentemente a re­lação de forças entre a lei do valor e as tendências socialistas num momento es­pecífico mas isto não afeta a correção de minha análise, se nosso sistema econô­mico continua a desenvolver-se.
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Será útil lembrar aqui a seguinte observação de Marx que se relaciona diretamen­te com o assunto considerado. No Primeiro Livro de O Capital Marx afirma: "Sabemos que os meios de produção e de subsistência, enquanto propriedade do produtor direto, não constituem um capital. Só se tornam capital nas condições de sua utilização como meio de exploração e de submissão do operário. Mas sua alma capitalista está tão intimamente unida, na cabeça do economista político, com sua substância material que ele os denomina de capital em todas as circuns­tâncias, mesmo naquelas em que eles aparecem como exatamente o contrário do capital".
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medida da atrofia da divisão esclerosada por profissões e na medida da supressão da separação entre ciência e trabalho e na me­dida do desaparecimento desta "subordinação servil dos indivíduos à divisão do trabalho" herdada da sociedade burguesa à qual Marx se refere na Crítica do Programa de Gotha. O desenvolvimento das forças produtivas da economia estatal, a elevação sistemática dos salários, o controle, pelo sistema socialista, da instrução geral e téc­nica da juventude proletária e semiproletária, correlatamente a uma reaprendizagem dos adultos, conduzirão a um rápido aumento dos operários qualificados em relação aos operários não-qualificados e prepararão uma massa de trabalhadores para as funções de organi­zação que excederá de longe o número de funções de organização e direção. E isto significará a dissolução das diferenças profissionais esclerosadas e a transição gradual a uma verdadeira solução socia­lista do problema dos organizadores e da massa através de uma aproximação entre ambos» com a transformação das profissões, dos agrupamentos esclerosados das mesmas e únicas pessoas, em fun­ções preenchidas em rodízio, por toda a massa. As funções necessá­rias subsistem, os homens que as realizam mudam. No caso consi­derado, como em muitos outros, o desenvolvimento socialista futu­ro só depende, desde agora, em razão da socialização dos instru­mentos de produção, do crescimento puramente quantitativo das forças produtivas no interior da economia estatal e do ritmo deste crescimento. Contrariamente, a esclerose da divisão dos técnicos e da divisão profissional pode ser a conseqüência de uma paralisação ou lentidão do desenvolvimento das forças produtivas.
Assim, a desigualdade que indicamos na distribuição dos re­cursos materiais, assim como a permanência das diferenças profis­sionais e a desigualdade de fato no que tange ao conhecimento, as informações técnicas e a experiência da organização, não decorrem de modo algum do monopólio de uma pequena fracção do proleta­riado sobre os instrumentos de produção. Os diretores vermelhos, por exemplo, os engenheiros proletários e administradores não têm nenhum monopólio sobre os meios de produção. São todos empre­gados do Estado operário e, tal como outros trabalhadores, admi­nistram a produção utilizando os meios coletivos da produção esta­tal. Existe uma diferença de princípio na própria estrutura das rela­ções de produção na indústria estatal, comparadas com o capitalis-
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mo e é nesta diferença que se encontram os pré-requisitos de supe­ração das características burguesas do sistema de distribuição de re­compensas e responsabilidades,que ainda subsistem durante os pri­meiros passos da construção do socialismo.
Não podemos, no entanto, quando do exame do problema da exploração na economia estatal, limitarmo-nos apenas às relações mútuas no interior do proletariado. Este pode estar submetido, numa certa medida, à exploração por parte de outras classes, em­bora o próprio proletariado seja o senhor no que tange à grande produção. Segundo as relações de forças entre as classes, segundo a fraqueza e a falta de maturidade da nova forma de produção e dá força da economia mercantil e mercantil-capitalista, pode-se obter uma relação de exploração que não entre no quadro habitual das relações de produção e distribuição entre o capitalista e o operário da sociedade burguesa. Neste caso, e na medida em que este novo tipo de exploração existir, a mais-valia existirá também.
Examinemos os aspectos de uma tal exploração que existem realmente e que são teoricamente possíveis. Em primeiro lugar, uma fração do sobretrabalho - relativamente reduzida, é verdade -é destinada à remuneração dos técnicos numa proporção que ultra­passa o pagamento do trabalho altamente qualificado. Esta forma de exploração dos operários da indústria estatal resulta de um de­senvolvimento insuficiente das relações socialistas no novo sistema educacional, que deveria ser inerente e inseparável da produção co­letiva.
Em segundo lugar, existe a fracção do sobreproduto capturada pelo capital privado sob a forma de lucro comercial. A exploração resulta aqui de um desenvolvimento inadequado do sistema de dis­tribuição que decorre, ele próprio, da socialização dos meios de produção. Sem dúvida, trata-se da parte quantitativamente mais importante do sobreproduto da indústria estatal que é apropriada pela classe inimiga.
Em terceiro lugar, existem os interesses dos empréstimos inter­nos cobertos pelo campesinato, pelos nepmen ', pela pequena bur-
1 Nepman - Termo utilizado para designar uma camada de empresários e comer­ciantes que se desenvolveu durante a época da Nova Política Econômica (NEP), aproveitando-se do restabelecimento de certos mecanismos de mercado depois do término do "Comunismo de Guerra" em 1921. (L. M. R.).
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guesia das cidades, etc, assim como o pagamento eventual de juros e de amortização dos antigos e novos empréstimos estrangeiros.
É necessário incluir aqui o caso, teoricamente possível em que, em razão de uma política errada em relação a acumulação socialista primitiva, o sobreproduto que o Estado extrai da economia privada em função das suas necessidades seja superada pela parte do sobre­produto da economia estatal que vai, de uma forma ou de outra, para a economia privada.
Passemos agora para o último ponto, quer dizer, para a ques­tão de saber em que medida a força de trabalho dos trabalhadores da economia estatal aparece como mercadoria vendida no mercado de trabalho. Entre nós, no conjunto da economia, existe a venda da força de trabalho enquanto mercadoria? No conjunto, convém res­ponder afirmativamente a esta questão. Em troca, no que concerne à economia estatal, existe, como em toda uma série de outras rela­ções de produção, uma relação de tipo transitório. Convém, pois, responder ao mesmo tempo com um sim e um não à pergunta colo­cada.
Responderemos afirmativamente na medida em que se trata da economia no seu conjunto. Em primeiro lugar, o número de operá­rios empregado pelo Estado, pelos sovietes locais e pelas cooperati­vas é inferior ao empregado pela indústria privada, pelo comércio privado e pela agricultura, sobretudo se se tem em conta não ape­nas os jornaleiros agrícolas mas também todas as formas abertas ou disfarçadas de exploração da força de trabalho no campo.
Em segundo lugar, a reprodução da força de trabalho em geral se realiza de tal modo que a metade, ou grande maioria do orça­mento operário médio, é destinado à compra de bens de consumo da produção privada e, antes de tudo, da produção camponesa, de maneira que o próprio processo de reprodução da força de trabalho está ligado de modo muito estreito à economia mercantil. No que concerne, em compensação, aos operários e empregados da econo­mia estatal, a particularidade da situação que aqui se instaura resi­de no processo de liquidação da força de trabalho enquanto merca­doria, processo que começou e progride na medida do desenvolvi­mento das forças produtivas. Isto está ligado antes de tudo ao pró­prio método de cálculo do fundo de salário. Numa sociedade capi­talista, o preço da força de trabalho oscila em torno de seu valor
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que se_estabelece em condições dadas e historicamente determina­das. As discrepâncias entre preço e valor dependem da conjuntura do mercado de trabalho, quer dizer, estão ligadas à relação da ofer­ta e da procura de força de trabalho. Na economia estatal do prole­tariado, o nível do fundo dos salários no seu conjunto é regulamen­tado pela lei da acumulação socialista primitiva e somente os níveis da hierarquia das taxas de salários são ainda determinados numa larga medida, se não principalmente, pela oferta e procura de traba­lho qualificado e não-qualificado. Se, no conjunto, com uma pro­dução global que se aproxima do nível do pré-guerra, o fundo de salários está igualmente próximo de seu nível de pré-guer-ra, esta coincidência quantitativa aparece antes como casual e se define pe­las exigências da acumulação e não pela ação da lei de salários que existia antes da guerra.
É bem característico de nossa situação que, em primeiro lugar, o aumento dos salários dos operários não-qualificados, mima medi­da importante, tenha perdido contacto com a situação do mercado de trabalho. O aumento dos salários dos operários não-qualificados, começando com a transição para a NEP, realizou-se num contexto de aumento do desemprego, muito mais em conse­qüência da elevação da produtividade do trabalho e dos ritmos de acumulação na economia estatal no seu conjunto e, conseqüente­mente, de modo independente da ação da oferta e demanda da for­ça de trabalho não-qualificado. Além disso, é importante notar aqui e avaliar corretamente o fato de que as diferenças salariais nos diferentes ramos afastaram-se fortemente das que existiam antes da guerra (trabalhadores da alimentação, do couro, e da lecelagem, de um lado; metalúrgicos, mineiros, trabalhadores dos transportes de outro) e modificaram-se principalmente em função dos ritmos de reconstrução e de acumulação nos diferentes ramos e no conjunto da economia estatal. Aqui também, o funcionamento do mercado do trabalho está sujeito a modificações profundas em função de mudanças nas relações de produção. Assim, na indústria leve, os sa­lários aumentaram mais depressa não porque, ou mais exatamente, não tanto porque o desemprego era menor, e os salários dos não-qualificados aumentaram não porque o desemprego diminuiu entre eles mas em razão de todo o conjunto de condições nas quais a lei da acumulação socialista primitiva desenvolvia sua ação. E também
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no futuro, o aumento dos salários dos operários em geral e dos ope­rários nào-qualificados em particular, progredirá cada vez menos sob a influência do mercado de trabalho e cada vez mais em função. do desenvolvimento das forças produtivas da economia estatal, Ainda não se trata absolutamente do sistema de distribuição intrin-secamente inerente às relações socialistas de produção. Trata-se apenas do começo da preparação das condições prévias a uma tal distribuição, das quais uma das premissas é a separação entre o fun­do salarial no seu conjunto e a ação da lei do valor, Esta separação já começou e deverá continuar, Temos novamente aqui um interes­sante exemplo do fato de que, com a socialização dos meios de pro­dução, certas modificações puramente quantitativas - o desenvolvi­mento das forças produtivas e Ja riqueza material na economia es­tatal, intensificam automaticamente o processo de dissolução das categorias da sociedade capitalista.
Quanto à distribuição no interior do fundo geral dos salários, ela continua ainda quase inteiramente burguesa, do mesmo modo como a própria forma do salário continua capitalista. Nossa escala hierárquica de salários nada tem e nada pode ter em comum com o socialismo '. Enquanto a formação de trabalhadores qualificados não se adaptar às relações de produção socialistas da economia es­tatal, a escala de salários será uma adaptação à herança burguesa que o Poder Soviético recebeu tanto no que se refere à divisão pro­fissional dos operários por profissão como no que se refere à manu­tenção de muitos, se não da maioria, dos incentivos burgueses, não socialistas, ao trabalho. Os incentivos socialistas não caem do céu. Cumpre desenvolvê-los através de uma reeducação prolongada do elemento humano criado na economia mercantil, de uma reeduca­ção no espírito das relações coletivas de produção. Com isso, não quero dizer que nossa atual escala salarial esteja adaptada às condi­ções de trabalho na economia estatal nem que seja impossível co­meçar, desde agora, a reformá-la na medida em que se amplia a construção do socialismo. Sem dúvida, copiamos freqüentemente

1 K preciso também não perder de vista que o trabalho por peça e as escalas sala­riais estão ligados ;'i ação da lei da acumulação socialista primitiva, acumulação com uma mxa de crescimento obrigatória.
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as relações capitalistas, não somente onde isto não é necessário para o aumento da produtividade do trabalho mas também onde a imitação é diretamente prejudicial do ponto de vista econômico e cultural.
Quanto à forma do salário, não é inútil lembrar, em ligação com o crescimento desmesurado do trabalho parcelado, as seguin­tes palavras de Marx: "O salário por peça é a forma que melhor corresponde ao modo de produção capitalista'4 '. Se assim é, colo­ca-se naturalmente a questão de saber qual é a forma do salário que melhor corresponde às condições de trabalho na economia estatal do proletariado durante seu desenvolvimento, Como se sabe, come­çamos pelo sistema de rações, durante o período do Com unismo de Guerra; muito rapidamente nos convencemos que este método de repartição, que havia rompido bruscamente e de uma só vez com os estímulos individuais e pequeno-burgueses no trabalho, tinha che­gado a um malogro completo, embora este sistema fosse absoluta­mente necessário nas condições de fome e de guerra civil. O que foi denominado de abastecimento coletivo e de remuneração coletiva, adotado* depois, obteve um pouco mais de êxito pois constituía uma medida transitória para o atual sistema de salários. O salário por peça atualmente predomina amplamente na economia soviética e, onde ele não existe em razão das condições técnicas, existe o salá­rio diário ou-mensal. O sistema de pagamento por peças permite ti­rar tudo o que ê possível dos estímulos, burgueses, individuais, ao trabalho, revelando, de modo geral, numa situação de socialização dos meios de produção, o atraso de toda uma época sobre a* nova forma de propriedade. O_piáprip_desenvolvimento da técnica, a ex-tensão_do papel dos transportes, a eíetríficaçãoJ etc, diminuem os setoresjte trabalho, em que o salário por peças éjxjssível. Por outro laSo, a partir de certo momento, o salário por peça pode começar a frear o novo sistema de organização do trabalho e a educação do povo segundo novos estímulos para p trabalho, mesmo nos setores em que eles forem tecnicamente aplicável. Na medida do reforça-mento dos elementos socialistas da economia soviética, teremos que
I  Karl Marx, O Capital, Livro I.
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enfrentar, sem dúvida, a necessidade de chegar a um método com­binado de remuneração individual e coletiva e, no futuro, podemos considerar como assegurada a passagem para a remuneração do "operário coletivo" em lugar da remuneração do operário indivi­dual. Entretanto, atualmente, o movimento neste sentido, apenas es­tá começando. Assim, nesta questão progredimos pouco, muito menos do que em outros, se não contarmos o desenvolvimento de uma série de instituições sociais, tais como os clubes operários, as creches, os jardins de infância, os restaurantes de fábricas, etc, cujo desenvolvimento constitui, na realidade, uma transformação par­cial do antigo sistema de salários numa das formas de abastecimen­to coletivo.
Quanto à última premissa de possibilidade de existência da mais-valia, ou seja, que possa existir o próprio sobreproduto, in na-iura, que adquire no capitalismo a forma da mais-valia, não se pode duvidar da existência de um tal produto, a não ser no que concerne a certos ramos durante o período do Comunismo de Guerra»
Façamos agora o balanço segundo o total dos "prós" e t4con-tras" e resolvamos a questão de saber que termo é mais correto em­pregar para designar este excedente que vem para a economia esta­tal depois de satisfeitas as necessidades de consumo dos operários da indústria estatal: mais-valia ou sobreproduto? Pessoalmente jul­go mais correto o termo de sobreproduto na medida em que se trata de caracterizar não somente o que existe mas as tendências de de­senvolvimento. Como vimos, Marx empregava o termo "mais-valia" a propósito das relações de exploração que ainda não conti­nham todos os elementos desta noção sob sua forma clássica e pura. Ele utilizava esta denominação por antecipação diante das relações de produção em vias de desenvolvimento que apenas começavam a orientar-se para as formas capitalistas de exploração da força de trabalho, Com a mesma razão, empregamos também o termo "sobreproduto" relativamente às relações de produção e distribui­ção que contêm, eles próprios, elementos e categorias da mais-valia e elementos da reprodução ampliada coletiva, com crescente predo­minância destes últimos.
Esta é a situação na economia estatal, de grande interesse para este estudo justamente porque aí observamos a atrofia das antigas
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relações de produção, sua eliminação por novas relações que se im­põem, de modo que é possível estudar o entrelaçamento do novo e do velho num determinado estágio da construção do socialismo. Em relação à indústria privada e todos os outros setores em que o trabalho assalariado é utilizado em diferentes formas, continua vá­lido tudo o que Marx escreveu a respeito do trabalho assalariado, da mais-valia, etc, levando em consideração, evidentemente, as mo­dificações externas de natureza coercitiva que resultam da instaura­ção da ditadura do proletariado em nosso país.
Para concluir o que dissemos sobre a categoria da mais-valia, gostaríamos de enfatizar uma circunstância extremamente impor­tante. A lei da acumulação socialista primitiva, na medida em que regula o nível de salários na economia estatal, esconde dentro de si uma contradição interna. Enquanto lei na qual se expressam todas as tendências conscientes e espontâneas da intensificação do ritmo da reprodução ampliada na economia estatal coletiva, ela aparece, por isso mesmo, como a lei do desenvolvimento das relações socia­listas de produção em geral. Mas, por ouüo lado, enquanto lei de li­mitação dos salários no interesse da acumulação, ela restringe o rit­mo de transformação dos salários em ração de consumo do traba­lhador na economia socialista porque - a partir do momento em que os instrumentos de trabalho são socializados - é precisamente a rápida elevação dos salários que conduz tanto à separação entre os salários e o valor da força de trabalho como às premissas materiais de desenvolvimento da cultura proletária, socialista. Esta contradi­ção da lei da acumulação socialista primitiva decorre integralmente de seu caráter historicamente transitório, A tendência à superação da categoria do salário, quer dizer, a tendência ao reforçamento da qualidade socialista das relações de produção entra em contradição com a tendência à extensão quantitativa do domínio da economia estatal e de suas relações de produção sob sua forma atual, isto é, de relações de produção num nível muito baixo de desenvolvimento de seu caráter socialista. O próprio termo "acumulação socialista pri­mitiva" expressa este duplo caráter da lei: o adjetivo "socialista" entra em contradição com o substantivo "acumulação" ao qual es­tá ligado não apenas gramaticalmente mas também no seu processo histórico real.
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Passemos agora às demais categorias cuja análise nos deman­dará menos tempo.
# A Categoria do Lucro na Economia Estatal
Para esta categoria, em muitos aspectos, o problema é muito mais simples e claro do que para os outros, com exceção da termi­nologia, que é também inadequada. A rigor, os termos capital, acu­mulação, lucro assim como o termo mais-valia, não servem para ca­racterizar as relações internas na economia estatal. É necessário empregá-los num sentido convencionado, acrescentando-lhes al­guns qualificativos (capital estatal, acumulação socialista) ou então empregá-los no sentido de uma antecipação da tendência de desen­volvimento, como fizemos com relação ao termo mais-valia, substi­tuindo-o pelo de sobreproduto.
Com a predominância das relações de produção capitalistas, a igualizaçào da taxa de lucro para capitais de igual importância de­sempenha grande importância na distribuição das forças produti­vas entre os diferentes ramos da produção. A questão que se coloca é de saber qual é o instrumento que realiza esta mesma função na economia estatal. Em primeiro lugar, como é determinada a taxa de lucro para os trustes estatais? Qual é o sistema que atua quando da distribuição dos novos capitais entre os diferentes ramos da eco­nomia estatal? O que substitui a ação da lei do valor na economia estatal?
A que ponto a noção de "taxa1 de lucro" transformou-se, na economia estatal, numa nova relação de produção e distribuição, é claramente percebido quando comparamos qualquer um de nossos trustes a um grupo semelhante de empresas capitalistas nas condi­ções de liberdade de concorrência, total ou parcial. Admitamos que algumas sociedades capitalistas, como a sociedade das Usinas de Briansk, a sociedade das Usinas de Sormovo, etc, atuem em lugar e em substituição de ndSso Gomza; admitamos também que as firmas manufatureiras dos Morozovye, dos Korzinkinye, etc, funcionem substituindo os trustes têxteis que são dirigidos, no que diz respeito às trocas, pelo sindicato dos têxteis. As empresas capitalistas mecâ­nicas e têxteis não podem saber, mesmo aproximadamente, no co-
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meço de seu ano econômico, nem quanto produzirão, além das suas encomendas asseguradas, nem os preços das matérias-primas, nem as surpresas que as esperam no mercado de trabalho, nem os preços de venda de seus próprios produtos e, conseqüentemente, elas não podem conhecer a taxa de lucro que podem obter. Uma grande par­te dos elementos do *'plano capitalista" é desconhecida. Novos con­correntes podem elevar os preços das matérias-primas e baixar os preços de venda; os operários podem entrar em greve durante um mês, etc. Assim, o balanço da empresa pode oferecer grandes im­previstos para a realização do ano operacional. Na coluna do lucro pode ocorrer que, num dado ano e por um dado ramo, tenha-se in­vestido mais capital do que o necessário e esta informação encon­trará sua expressão na baixa da taxa de lucro, ou num déficit; ou então, inversamente, graças à elevação dos preços dos produtos da empresa no mercado e a outras causas, um súbito salto da taxa de lucro advertirá que houve um insuficiente investimento de capital no ramo considerado. A espontaneidade do mercado, do que nos­sos Morozoyve, as sociedades das Usinas de Sormovo, etc, são os elementos constitutivos, contribuirá - graças à lei do valor e, neste caso particular, graças ao instrumento da repartição espontânea do lucro - para o estabelecimento do equilíbrio na distribuição das for­ças produtivas, ao registrar as grandes diferenças de lucro no balan­ço dos vários ramos e empresas.
Apesar das grandes diferenças de capital constante e de capital variável nos diferentes ramos da produção capitalista, o equilíbrio se restabelecerá a partir da lei dos preços de produção. É graças à sua ação que as empresas, cuja composição orgânica de capital é mais elevada e correlativamente a taxa de mais-valia é mais baixa, receberão no final das contas, em conseqüência da igualização da taxa de lucro, um lucro médio, tal como as empresas com fraca composição orgânica de capital.
Na economia estatal, ocorre diferentemente. O Gomza conhece com antecedência seu programa de produção e o conhece precisa­mente porque todos seus clientes conhecem também seus próprios programas. Os trustes têxteis conhecem também seus programas, ainda que possam ocorrer flutuações quando de sua execução, pois as vendas de tecido não se efetuam somente no interior do setor es-
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ainda que deficiente da demanda das cidades e do campo, este pro­grama não pode se afastar demasiadamente das hipóteses do plano. Numa situação de escassez de mercadorias, em compensação, este problema desaparece na medida em que desaparece o temor de não poder escoar toda a produção. Toda a questão'se reduzirá, então, à importância do capital Fixo e do capital circulante, grandezas plena­mente acessíveis aos cálculos da planificação. Além disso, o Gomza não pode ter surpresas quanto aos preços dos metais, pois é o pró­prio Estado que fixa esses preços. Os trustes têxteis não podem ter surpresas nem com relação aos preços do equipamento, fabricado pelo setor estatal, nem sobre os dois terços da quantidade de algo­dão produzidos no país, nem sobre o linho e o cânhamo cujos pre­ços são ditados antes pelos organismos estatais de planificação do que pelo mercado; do mesmo modo, não pode haver surpresas quanto aos salários cujo nível é.determinado de modo planificado com base nos recursos da economia estatal para o ano considerado e fixado pelos contratos coletivos. Como resultado do reforçamen-to do princípio da planificação na economia estatal, assim como no mercado interno de matérias-primas industriais, modifica-se a pró­pria natureza do lucro e do instrumento de igualização da taxa de lucro.
Enquanto os empreendedores privados só podem fazer conjec­turas baseados nos diversos indicadores indiretos para saber qual será seu balanço, o balanço dos trustes soviéticos está já constituído em 4/5 antes do começo do ano econômico, sob a forma de progra­mas de produção onde são igualmente padronizados os preços de venda de sua produção. Esta padronização significa que os preços e a correspondente taxa de lucro, perdem seu caráter regulador da distribuição das forças produtivas, na medida em que esta distribui­ção não é determinada de modo indireto e espontâneo mas é direta­mente prevista* pel(\plano econômico geral do ano considerado. Já não se trata da taxa de lucro no sentido capitalista da palavra que se cinde, posteriormente, em uma parte capitalizada, e outra consumi­da pelos capitalistas, fato que também complica muito a obtenção de um equilíbrio no sistema de reprodução. No caso, trata de uma taxa de acumulação socialista para cada ramo da produção.j\ taxa
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correspondente a cada ramo já está dada pelos elementos do pro­grama de produção e, antes de tudo, pelo nível dos preços de venda. Em conseqüência da socialização da indústria e do desenvolvimen­to do princípio de planificação na economia estatal e, especialmente da acumulação socialista, a categoria "'lucro" não somente desapa­rece enquanto relação de distribuição existente na sociedade bur­guesa (conjuntamente com a liquidação da classe capitalista) como também desaparece quase completamente enquanto regulador (que se baseia na lei de valor) da distribuição das forças produtivasentre os diferentes ramos da economia estatal coletiva.
Examinemos, agora, outro aspecto do problema: o modo de investimento dos novos capitais na esfera da produção, ou melhor, os novos meios e elementos de produção na economia estatal. Na sociedade capitalista, a parte da mais-valia destinada à produção que não pode ser pura e simplesmente acrescentada ao capital das empresas em funcionamento, reparte-se entre os diferentes setores da produção sob a forma de ações. Para os novos investimentos, contando com a cooperação dos bancos ou somente através deles, são criadas companhias que distribuem ações entre as empresas co­merciais, industriais ou outras que possuem disponibilidade de ca­pital, ou ainda entre diferentes indivíduos. A forma de emissão de ações aparece como a forma puramente espontânea da reunião e re­partição produtiva dós novos capitais e, a este respeito, ela corres­ponde à totalidade da estrutura da sociedade capitalista. Aqui, não examinaremos as modificações que acarretam, na prática, a emis­são de ações por parte do capitalismo monopolista, mas veremos como este mesmo problema se coloca na economia soviética.
Como se sabe, possuímos já muitas sociedades por ações, pu­ramente estatais, em primeiro plano, e um pequeno número de so­ciedades mistas e privadas. Poderia parecer que, no tocante à repar­tição e investimentos dos novos meios de produção, nós seguimos as pegadas do capitalismo. Mas isto constituiria uma visão da for­ma externa e não da essência da questão. Deixando de lado o fato de que, entre nós, apenas uma parte muito reduzida do novo capital passa através do sistema de emissão de ações, a própria estrutura e o método de trabalho das sociedades por ações com capital estatal quase não se distinguem da atividade de um truste qualquer; o mé-
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todo de subscrição de capitais é um método de. subscrição de esta­belecimentos estatais para uma empresa ou um grupo de empresas estatais ou municipais (o que é a mesma coisa). Algo de diferente só aparece onde o capital estatal e o capital privado são, todos os dois, obtidos mediante emissões de ações,
O principal modo de distribuição dos novos capitais que não se incorporam ao capital de empresas em funcionamento - exceptuan-do-se uma única e indiscutivelmente efêmera sociedade por ações para novas construções industriais - é constituído por nosso siste­ma bancário (Banco do Estado, Banco da Indústria e outras insti­tuições bancárias) e parcialmente pela distribuição de recursos à in­dústria através do orçamento do Estado. Esta distribuição não pode deixar de ser planificada porque é totalmente sem sentido pen­sar que o processo de reprodução ampliada da indústria e dos transportes estatais, de todos os novos investimentos, etc, pode ser planificado quando se trata da realização dos programas de produ­ção e não-planificado quando se trata de obter recursos para a re­produção ampliada, baseando-se, neste último caso, em algum pro­cesso relativamente autônomo e espontâneo no interior da econo­mia estatal. Mas é necessário observar, embora rapidamente, que a economia estatal ainda não encontrou formas de organização ple­namente satisfatórias para favorecer o processo de reprodução am­pliada, formas que lhe sejam imanentes e que correspondam, ao mesmo tempo, a urna dada etapa da acumulação socialista primiti­va.
Finalmente, cumpre notar ain4a o fato extremamente impor­tante de que, até agora, nossa economia estatal segue de modo bas­tante espontâneo a linha de ação da lei de acumulação socialista primitiva no sentido de que o balanço glabai da acumulação de cada ano - resultado de um dado nível de desenvolvimento das for­ças produtivas na economia estatal e em toda a economia no seu conjunto, da importância da demanda da economia privada e da importância necessária das novas instalações - não é determinado com antecedência e traçado deliberada e planificadamente através do conjunto do sistema de preços planificados; acrescentemos que o nível geral, se assim podemos dizer, dos preços de produção da eco­nomia estatal enquanto truste único, é estabelecido às apalpadelas, 226
de modo relativamente espontâneo, mais através da adição aritmé­tica do que através da divisão da cifra global da acumulação neces­sária entre os setores produtivos correspondentes. A estrutura exis­tente em nossa economia estatal revela-se freqüentemente mais pro­gressista ,do que seu sistema de direção econômica*.
A questão da transformação sofrida pela lei dos preços de pro­dução nas condições da economia soviética será examinada mais detalhadamente no segundo volume. Aqui cuidaremos apenas de algumas observações teóricas gerais sobre o assunto. No capitalis­mo? a lei de igualização da taxa de lucro garante a necessária pro­porcionalidade na distribuição do trabalho entre os diferentes ra­mos da produção, apesar das diferenças na composição orgânica do capital, e também apesar da diferente soma de mais-valia produzida por cada unidade de capital investido na produção. O nivelamento da taxa de lucro garante a todos os grupos de capitalistas um fundo de consumo aproximadamente do mesmo nível e também um mes­mo nível de acumulação. Sem a ação da lei dos preços de produção, a reprodução seria impossível em certos setores da econcmia capi­talista. Todo o processo de regulação se realiza com base na compe­tição. Neste aspecto, qual é a diferença com relação à nossa econo­mia estatal?
Em primeiro lugar, o lucro das empresas estatais não é dividi­do num fundo de consumo dos capitalistas e num fundo de acumu­lação. Temos apenas um fundo de acumulação, do qual uma parte é destinada ao Comissariado do Povo para as Finanças. Isto ocorre tanto em, razão das vantagens técnicas de distribuir uma parte desse fundo através do orçamento do Estado como, algumas vezes, sim­plesmente como resultado de uma inadequada compreensão da na­tureza da economia que administramos e de suas leis.
Em segundo lugar, o conjunto do fundo de acumulação é cons­tituído não pela reunião de toda a massa da mais-valia recebida com base na íuta fundamental entre operários e capitalistas sobre o tamanho demev**,e então distribuído entre as empresas capitalis-
■ Os três parágrafos que se seguem foram incluídos na segunda edição russa; não constam da tradução francesa e foram traduzidos para o português de acordo corn a tradução inglesa que se baseia na segunda edição soviética (L.M.R.).
** m significando mais-valia e v significando o capital variável (L.R.M.).
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tas com base na lei da igualização da taxa de lucro mas ao contrá­rio. Nós procuramos determinar antecipadamente o fundo de acu­mulação necessário, com base no plano de produção; depois verifi­camos que parte dele pode ser coberto por meios orçamentários e que parte pode ser coberto através de uma política de preços. O vo­lume da parte do fundo de acumulação obtida através de uma polí­tica de preços é estabelecido em relação a toda a economia estatal, considerada em conjunto. A tarefa dos diferentes trustes consiste, depois, no preenchimento deste fundo com seus lucros, os quais, neste sistema, geralmente não serão iguais; na verdade serão tanto menos iguais quanto mais capaz for a economia estatal de manipular o mercado. Como resultado, em vez da lei dos preços de produção, temos em nossa economia uma política de preços ditada pela tarefa de .obter cada ano, para a economia estatal como um todo, um fundo de acumulação determinado. Tanto o nível de preços dos diferentes trustes como a soma do lucro obtido por eles são adaptados para a realização deste objetivo básico. Qualquer que for o caso, esta é a tendência, que não foi ainda suficientemente valorizada e que nem sempre aparece claramente refletida em nossa política de preços. Na verdade, muitas vezes acontece o contrário, e a política de pre­ços afasta-se desta linha em detrimento da tarefa de expandir a produção.
A Categoria da Renda
Muitas confusões são cometidas relativamente à categoria da renda no sistema soviético porque a terra foi nacionalizada e o ar­rendamento tipicamente capitalista da terra foi insignificante. Já se discutiu, e se discute ainda com grande seriedade, a questão de sa­ber se os camponeses pagam ao Estado a renda absoluta ou a renda diferencial (segundo a acepção marxista dessas duas categorias) sob a forma de imposto in natura ou, atualmente, em imposto único; a mesma discussão é trayada a propósito de saber que renda uma em­presa estatal paga ao soviete local do território no qual ela se en-contra, etc. Toda esta confusão decorre do fato de que as categorias da sociedade capitalista desenvolvida são transpostas sem espírito crítico para um terreno em que predomina, de um lado, a economia
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estatal com suas relações de produção específicas de um período transitório que conduz ao socialismo e, de outro lado, a produção mercantil simples, com uma camada intermediária capitalista mui­to fraca precisamente ha esfera da produção.
Entretanto, a renda, no sentido marxista do termo, é uma cate­goria do modo de produção capitalista desenvolvido, quando ela abrange o setor agrícola. Em outros termos, Marx analisa, ria sua teoria da renda, as relações de produção e de distribuição do capita­lismo puro, admitindo que toda a terra é trabalhada por fazendei­ros capitalistas e que, ao mesmo tempo, o direito de propriedade da terra pertence a outra classe, a dos proprietários fundiários. Preven­do a confusão que poderia ocorrer com sua concepção de renda ca­pitalista e lutando contra esta confusão que vário» economistas ti­nham cometido antes dele, Marx sublinhou mais de uma vez a dife­rença entre a renda territorial capitalista e as diversas formas de renda existentes no período pré-capitalista que tinham uma carac­terística inteiramente diferente e nada possuíam em comum com a renda territorial capitalista, salvo o direito de propriedade privada da terra enquanto fonte de apropriação de uma dada parcela da renda nacional. Transcrevemos aqui duas citações de Marx que são necessárias para a continuação de nossa discussão. No Terceiro Li­vro de O Capital, Marx escreveu sobre esta questão: "Qualquer que seja a forma específica da renda, todos os tipos de renda têm em co­mum o fato de a apropriação da renda ser a forma econômica de realização da propriedade territorial e a renda territoríafsupor, por sua vez, a propriedade de indivíduos determinados sobre determi­nadas parcelas do planeta. O proprietário pode ser um personagem que aparece como o representante da comunidade, como na Ásia, no Egito, etc; a propriedade territorial pode ser somente uma con­seqüência da propriedade de indivíduos determinados sobre a pes­soa dos produtores diretos, como no sistema escravista ou no siste­ma servil, ou ainda a propriedade territorial pode ser uma pura pro­priedade dos não-produtores sobre a Natureza, um simples título de propriedade sobre a terra; ou, enfim, pode ser uma relação com a terra, uma relação que supõe aparentemente de modo direto a apropriação e a produção direta de produtos em determinadas par­celas de terra pelos produtores, cujo trabalho é isolado e socialmen-
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te pouco desenvolvido, como no caso dos colonos e dos pequenos camponeses proprietários.
"Este elemento comum às diferentes formas da renda - especifi­camente o fato de ser a realização econômica da propriedade terri­torial, da ficção jurídica em virtude da qual a posse exclusiva de de­terminadas parcelas do planeta está em mãos de certos indivíduos -faz com que não se observe as diferentes formas da renda" '.
Prosseguindo o desenvolvimento desta idéia relativa à confu­são entre as diferentes formas de renda, Marx escreveu em outro capítulo de O Capital: "Assim, na análise da renda, toda a dificul­dade consiste em explicar o excedente do lucro agrícola sobre o lu­cro médio, a explicar não a mais-valia mas a mais-valia excedente característica desse setor da produção; em outras palavras, explicar, não o "produto líquido" mas o excedente deste produto líquido sobre o produto líquido dos outros ramos da indústria. O próprio lucro médio é um resultado formado pelo movimento do processo da vida social que se realiza sob relações de produção históricas perfeitamente determinadas, um produto que requer, como vimos, ajustamentos muito complexos. Para que se possa, de modo geral, falar de excedente sobre o lucro médio, cumpre que este mesmo lu­cro médio já esteja estabelecido como um padrão e como um regu­lador geral da produção, como ocorre na produção capitalista. Conseqüentemente, nas formas de sociedades nas quais não existe ainda o capital que realize esta função, que consiste em controlar todo o sobretrabalho e apropriar-se, em primeiro lugar, de toda a mais-valia, e conseqüentemente, nas sociedades em que o capital ainda não submeteu o trabalho social ou o submeteu apenas em certos lugares, não se pode falar, de modo geral, de renda no senti­do contemporâneo da palavra, de renda enquanto excedente sobre o lucro médio, quer dizer, sobre a parte proporcional de cada capi­tal individual, na mais-valia produzida por todo o capital social" :.
Resulta claramente de todas essas citações de Marx, como de toda sua exposição sobre a teoria da renda, que a categoria da ren­da territorial capitalista tem pouca utilização para a compreensão
    1 O Capital, Livro III, Segunda Parte.
    2 O Capital, Livro 111, Segunda Parle.
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das relações soviéticas. Explicaremos mais abaixo o que temos em mira quanto falamos "tem pouca utilização"; no momento interes­sa examinar por que é errado falar de renda no sentido de Marx com relação à nossa agricultura e também, na maioria dos casos, com relação ao imposto territorial das cidades.
Comecemos pela noção da renda absoluta. A fonte da renda absoluta é a parte da mais-valia criada pelos operários assalariados na agricultura capitalista, que está ligada na sua origem a uma bai­xa composição orgânica do capital agrícola e não participa do pro­cesso de igualização da taxa de lucro de toda a produção capitalis­ta. Esta parte da mais-valia, como dizia Marx, é "capturada" pelos donos das terras, não restando, assim, para os agricultores capita­listas senão o lucro médio habitual do capital investido no cultivo da terra. É claro que, mesmo independentemente da nacionalização da terra, não pode existir renda absoluta onde não existe agricultu­ra capitalista. Neste caso, inexistem as relações de produção e de distribuição, na presença das quais a renda absoluta geralmente pode existir.
Deste ponto de vista, tal como para a correta compreensão da categoria de renda diferencial, é muito importante a seguinte passa­gem, extraída das observações preliminares de Marx sobre a renda da terra: "Assim, partimos da hipótese de que a agricultura, exata­mente como a indústria manufatureira, está submetida ao modo ca­pitalista de produção, quer dizer, ela é praticada por capitalistas que fundamentalmente não se distinguem de outros capitalistas a não ser peto setor em que empregam seu capital e pelo trabalho as­salariado movimentado por este capital. De nosso ponto de vista, o fazendeiro produz trigo, etc, como o fabricante produz tecidos ou máquinas. A hipótese segundo a qual o modo de produção capita­lista invadiu a agricultura subentende que ele invadiu todas as esfe­ras da produção e da sociedade burguesa, isto é, que estão plena­mente amadurecidas as condições para este modo de produção, ou seja: a livre concorrência dos capitais, a possibilidade de transferi-los de um setor da produção para outro, um único nível de lucro médio, etc." '
1   O Capital. Livro III. Segunda Parte.
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É evidente que rnal encontramos entre nós essas premissas apontadas por Marx e, particularmente, a que se refere à domina­ção pelo modo capitalista de 4fctodos os setores da produção", Esta passagem de Marx é também inteiramente aplicável à categoria da renda diferencial, que Marx compreende sempre como renda terri­torial capitalista. Se a origem da renda absoluta é a mais-valia su­plementar da agricultura capitalista, a fonte da renda diferencial, como todo lucro suplementar na indústria, é o fundo geral da mais-valia de toda a sociedade capitalista no seu conjunto; porém, a dis­tribuição desta renda, os títulos que dão direito a ela dependem da propriedade privada de terras de fertilidade diferente. Isto significa que a renda diferencial não se origina da terra, fato que Marx repe­te constantemente, mas da fonte geral de toda a mais-valia. Somen­te tem sua origem na terra o direito que o proprietário deste ou da­quele terreno com fertilidade diferente tem de apoderar-se de uma parte determinada desta mais-valia.
É tentador aplicar a noção de renda diferencial para a forma dominante da produção agrícola no sistema soviético a partir do fato da diferença de fertilidade do terreno, das diferentes distâncias de localização das terras cultivadas e dos diferentes mercados de es­coamento dos produtos agrícolas. Mas essas diferenças, na medida em que decorrem de diferenças de condições naturais ou geográfi­cas, não dependem do sistema de produção e de distribuição ao passo que a noção de renda territorial capitalista está ligada precisamente a um'sistema historicamente determinado e específico de produção. Esquecer isto é cair no mesmo erro que consiste em atribuir um ca­ráter natural e material às relações de produção do sistema econô­mico soviético, este erro de vulgarização do marxismo ao qual me referi no começo do presente capítulo. Se os agentes financeiros do Narkomfin * tomam em consideração a diferença de rendimento das várias culturas camponesas ocasionadas pela diferença de ferti­lidade do solo, a diferença de impostos sobre duas culturas campo­nesas consideradas idênticas em todos os aspectos, com exceção do rendimento, não é absolutamente um meio de "capturar" a renda

Narkomfim - Comissariado do Povo para Finanças (L. M. R.).
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diferencial na acepção marxista desta categoria. Se nós justificásse­mos precisamente desta maneira a necessidade de impostos fiscais no campo e a necessidade de diferentes níveis de taxação para os di­ferentes grupos de camponeses, qualquer camponês com conheci­mentos de economia e conhecedor de Marx poderia, com toda ra­zão, reduzir-nos a pó. Para justificar a necessidade da aplicação de impostos no campo e de uma diferenciação desses impostos, não te­mos necessidade de apelar aos ensinamentos de Marx sobre a renda territorial capitalista, com exceção das áreas em que existe a agri­cultura capitalista ou semicapitalista. É mais proveitoso reler sua advertência relacionada à má interpretação de sua teoria. Por outro lado, trataremos mais adiante da questão da taxação sob a forma de imposto agrícola único.
Destarte, podemos falar da renda territorial capitalista no sen­tido de Marx somente na medida do desenvolvimento de métodos capitalistas de trabalho da terra e de arrendamento capitalista das terras para outros fins, quer dizer, de modo algum no que concerne ao i\stema,predominante de relações de produção na agricultura so­viética.
Examinemos mais de perto a situação que existe entre nós. O tipo capitalista de arrendamento de terras é constituído, na URSS, por concessões territoriais puras, tais como, por exemplo, a conces­são da Krupp na Ucrânia. Os operários do concessionário criam mais-valia e este pode se apoderar tanto da parte da maiswaíia que podemos convencionalmente considerar como fonte da renda abso­luta,como da* que podemos convencionalmente considerar como renda diferencial. Daí resultam, para o Estado, o direito imediato e a possibilidade econômica de se apoderar, por sua vez, sob a forma de impostos e descontos, do produto que foi apoderado pelo con­cessionário. Acontece o mesmo com as concessões florestais sim­ples. No caso de concessões mistas territoriais e florestais temos um tipo de renda do capitalismo estatal'. Pode-se igualmente falar de renda capitalista quando dos impostos territoriais das terras em que se localizam fábricas e usinas privadas, quando de terras arrenda­das a proprietários rurais privados, etc. É necessário também in-
!  No sentido convencional deste termo, tal como Lènin o empregava.
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cluir aqui a renda proveniente das terras do Estado, alugadas a camponeses ricos que utilizam trabalho assalariado. Enfim, cumpre incluir aqui (e estamos bastante atrasados a este respeito) os impos­tos territoriais de todas as propriedades dos kulaks que utilizam tra­balho assalariado em suas terras, Eles não são, é verdade, os agri-cultores-capitalistas de que fala Marx, mas - por sua natureza, e malgrado o nível econômico muito baixo das terras cultivadas pelos kulaks, do ponto de vista da forma capitalista de utilização da terra - temos aqui, no essencial e segundo as tendências de seu desenvol­vimento, um grupo que pode e deve ser submetido a um imposto territorial especial, não importando se isso for feito independente­mente do imposto geral sobre a renda ou simultaneamente com ele. O Estado não taxa o direito de cultivar a terra da sociedade pelos camponeses que não exploram trabalho alheio mas o mesmo proce­dimento não pode ser aplicado a respeito dos que exploram este tra­balho.
Em todos os casos que enumeramos, somos levados a falar de renda territorial capitalista do ponto de vista de sua origem quando ela provém do trabalho não pago dos operários. Mas a originalida­de de nossas relações de distribuição na questão examinada consiste em que a pessoa que recebe a renda não é nem um proprietário pri­vado da terra, nem um Estado capitalista mas um Estado socialista. Os recursos provenientes do imposto territorial entram no orça­mento estatal e, indiretamente, no fundo de acumulação socialista. No caso considerado, a renda é capitalista por sua origem, e socia­lista por seu destino. E isto significa que lidamos com uma relação de distribuição bastante especial, que só surgiu depois da revolução socialista e que, sob tal aspecto, não foi de modo algum estudada por Marx, que somente nos deu uma análise das relações clássicas do capitalismo abstrato, puro.
Quanto ao imposto territorial ao qual estão submetidas as em­presas estatais, por parte do Estado ou de seus órgâbs locais, seria cômico, no sentido de Marx, falar de renda capitalista extraída de terrenos com edifícios. Tal como é impossível falar de "lucro" do Gomza, no sentido marxista do termo, é ainda mais impossível* de falar de renda no caso particular, embora não se tenha julgado ne­cessário, no uso comum, proscrever este termo, por falta de outro
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melhor. Não temos aqui uma renda mas somente uma das formas de distribuição dos recursos estatais no interior do setor estatal a qual, somente tem a aparência externa das relações existentes na so­ciedade capitalista, que dela só copia a forma e o termo, e que é, na realidade, uma das formas pelas quais a distribuição planificada é alterada. Se mudássemos as colunas correspondentes do orçamento local e do orçamento do Estado, assim como a contabilidade das empresas estatais em que impostos são aplicados, toda a renda -sem a menor modificação na esfera da produção nem da distribui­ção entre as c/asses (mas não entre departamentos de uma única e mesma classe), - desapareceria como fumaça.
Como conclusão, falta-nos apenas discutir a taxação através de impostos da agricultura não capitalista. Depois de tudo que dis­semos há pouco, é evidente que a taxação direta dos camponeses que não exploram o trabalho assalariado e os impostos sobre as rendas dos kulaks, sobre a fração dessas rendas que é criada pelo tra­balho pessoal dos kulaks, não constituem renda territorial no senti­do marxista da palavra mas uma alienação, em benefício do Esta­do, de uma parte do sobreproduto da pequena produção. Esta taxa­ção não se distingue em nada, quanto ao princípio, por exemplo, da taxação do artesanato e da indústria artesanal. Esta taxação é eco­nomicamente possível na medida em que tal sobreproduto existe. E este produto aumenta na medida do desenvolvimento das forças produtivas na economia camponesa. As terras dos camponeses pobres e as de baixo rendimento, que geralmente não geram um sobreproduto, estão livres deste imposto, o que é inteiramente justo e de acordo com a nossa prática comercial.
Esta taxação é economicamente não somente possível mas ne­cessária e racional, na medida em que as despesas do orçamento público do Estado devem ser cobertas tanto pelos operários como pelos camponeses. Ela é necessária também porque a reprodução ampliada na indústria, seu ritmo suficientemente rápido, o desen­volvimento de uma rede de vias férreas, de canais, de eletrificação etc, são extraordinariamente necessárias para a própria economia camponesa. Esta, sem o apoio de uma indústria em rápido progres­so, não poderia desenvolver suas forças produtivas e permaneceria no nível da pequena produção, sem poder, afortiori, passar para
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um grau mais elevado de organização da produção em cooperati­vas. A Revolução de Outubro, a socialização da indústria e dos transportes têm sua lógica. Se seguirmos a via da limitação e da li­quidação da ação da lei do valor e se esta lei não for substituída com a necessária rapidez pela ação da lei da acumulação socialista, com um nível determinado e ao mesmo tempo inevitável de aliena­ção do sobreproduto do campo, não será possível um desenvolvi­mento econômico normal e a obtenção de uma proporcionalidade necessária na estrutura econômica do país.
As relações de produção na agricultura soviética são extrema-. mente complexas. Bastaria indicar as relações extremamente origi­nais de cultivo da terra, de cunho primitivo e ligadas à insuficiência do desenvolvimento das relações puramente capitalistas, descritas recentemente pelo Camarada fCritzman em seu livro '.O que disse­mos sobre a renda não esgota de modo algum a análise de todos os aspectos das relações capitalistas na agricultura de nosso país. Nada dissemos também sobre a "renda" que recebe o camponês que não planta, pela terra que ele aluga ao kulak, realizando e ven­dendo, assim, seu direito à terra, que a Constituição soviética lhe garante. Do mesmo modo, não examinamos as-formas originais de "locação" reveladas pelo Camarada Kritzman em seu livro, formas nas quais a pessoa que, formalmente, oferece em locação é o explo­rado e quem toma em locação é o explorador. Essas relações de ex­ploração, assim como outras - a exploração usurária, por exemplo - e numerosos aspecios das relações de produção ligadas ao excesso de povoamento agrário nas condições da falta de instrumentos de produção, ressuscitando os ofícios de complementação de salário sazonal dos camponeses nas cidades, o entrelaçamento da produ­ção manufatureira doméstica com a agricultura, tudo isto devemos examinar parcialmente em ligação com o problema da renda, não na parte teórica desta obra mas num volume especial consagrado à análise concreta de nossa indústria e de nossa agricultura.
Do mesmo mo-do, na última secção do presente capítulo, con­sagrado ao juro t; ao sistema de crédito, não ultrapassaremos os li-
l  A. Kritsman, Esiratificação de Classes no Campo Soviético.
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mites da análise teórica mais geral, deixando de lado, para um pró­ximo volume, o estudo mais concreto do material factual.
O Juro. O Sistema de Crédito.
A análise teórica da categoria do juro na economia soviética não apresenta grande dificuldade por que as relações corresponden­tes, quando se trata de juros no sentido próprio do termo, nada rrçais fazem do que reproduzir fenômenos antigos, conhecidos há muito tempo e perfeitamente estudados pela economia política quer se trate do comércio do dinheiro, como o elemento mais desenvolvi­do do capital produtivo è comercial, ou do juro usurário no que tange à economia camponesa. Em compensação, no que concerne ao juro que dele só tem o nome, o juro enquanto uma dessas imita­ções da forma capitalista da qual já nos ocupamos na análise de ou­tras categorias, há pouca coisa a ser analisada aqui, pois o caráter fictício da categoria em questão salta aos olhos. Atrás do lamentá­vel véu da Forma capitalista, da terminologia e da fraseologia bur­guesa (às quais, de resto,-alguns "especialistas" se dedicam com o ar mais sério e importante do mundo), o fundo aparece com toda sua nudez. As coisas só se tornam mais complexas com o sistema de crédito e com as tendências de seu desenvolvimento e transforma­ção.
O papel do juro usurário em nossa pequena produção, antes de tudo na economia camponesa, era imenso antes da guerra e da Re­volução. Mesmo atualmente este papel continua muito importante e aumenta cada vez mais. A usura enquanto excrescência parasitá­ria da pequena produção possui uma história multissecular e foi su­ficientemente estudada,. Ela desempenhou historicamente um duplo papei: o de preparar os elementos materiais da socialização do tra­balho deis pequenos produtores (dos quais absorvia concomitante-mente o sobreproduto e uma parte dos escassos meios de existên­cia), e o de sugar, esgotar e arruinar a pequena produção sem favo­recer sua passagem para um tipo mais elevado de organização do trabalho. No campo, na imensa maioria dos casos, a usura desem­penhou e desempenha hoje precisamente este segundo papel. Aqui só trataremos de algumas particularidades específicas de nossa usu-
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ra e adiaremos o estudo desta questão até a análise concreta de todo sistema econômico da agricultura soviética.
Quanto ao juro capitalista, Marx o definiu, como se sabe, do seguinte modo: "O juro... na sua origem, só aparece e só continua, na realidade, como uma fracção do lucro, quer dizer, da mais-valia que o capitalista, industrial ou comerciante, que põe seu capital a funcionar, deve pagar ao possuidor e fornecedor deste capital, na medida em que ele emprega um capital emprestado, e não o seu próprio. Se o capitalista só utiliza seu próprio capital esta divisão do lucro não ocorre e o lucro pertence inteiramente ao capitalis­ta"'.
A questão que se coloca é saber em que domínio da economia soviética se aplica esta definição de Marx. O domínio do juro, no sentido capitalista, são as relações de compra e venda de capital-dinheiro no mercado privado da URSS, legal ou ilegal. Trata-se, em primeiro lugar, dos estabelecimentos de crédito privado, como as sociedades de crédito mútuo e, principalmente e antes de tudo, o mercado ilegal de capital usurário, com seu direito próprio, seus elevados juros, o caráter das transações, amiúde juridicamente difí­cil de apreender, etc. As particularidades do mercado privado de capital na URSS não estão ligadas a uma natureza diferente do ju­ro, na medida em que se trata de um domínio em que as relações da economia estatal não interferem com a economia privada; estas particularidades relacionam-se ao fato de que o capital privado, na URSS, é capital industrial apenas numa pequena parcela. O capital privado aparece principalmente sob a forma de capital comercial e decapitai usurârio, aumentando o papel relativo do capital usurá-rio na medida em que o desenvolvimento da rede e da rotação do capital estatal e cooperativo restringe o campo de aplicação do ca­pital privado no comércio. O capital usurârio, em troca, foge do se­tor industrial èm conseqüência de uma série de razões ligadas à so­cialização da grande e média indústria, à política fiscal, à legislação relativa à proteção do^trabalho, às recentes limitações do direito de herança, ao ritmo menos rápido da rotação e acumulação de capital
/  O Capital, Livro Terceiro, Primeira Parte. 238
na indústria e, enfim, ao risco que corre o capital privado ao aban­donar a forma móvel de capital-dinheiro em favor da forma rígida de meios de produção industriais, forma sob a qual o capital priva­do se expõe a um maior e melhor controle por parte de um Estado que lhe vota um ódio de classe. Esta diminuição natural do campo de aplicação do capital privado mantém as relações do crédito pri­vado numa forma capitalista pouco evoluída que se reflete particu­larmente no nível elevado da taxa de juros.
Do ponto de vista teórico, a situação é ligeiramente diferente nqque diz respeito às relações de crédito nos setores em que o capi­tal privado se beneficia de créditos fornecidos pelo banco estatal e de outros estabelecimentos análogos, A categoria do juro reflete aqui a particularidade específica de nossa economia no domínio em que, transitoriamente, coexistem e se entrelaçam as relações capi­talistas, capitalistas estatais e socialistas. A importância da utiliza­ção legal do crédito estatal por parte do capital privado é muito re­duzida; a utilização ilegal' dos recursos estatais provavelmente é muito mais importante. Mas esta forma do crédito, apesar de, na prática, ser de reduzidas dimensões, apresenta certo interesse teóri­co. A essência e a originalidade deste crédito residem no fato de que a mais-valia é transferida do setor privado capitalista para os fun­dos da acumulação socialista primitiva. Do ponto de vista organi­zacional, temos um entrelaçamento de dois tipos de relações de pro­dução nos quais o termo lenínista convencional de "capitalismo estatal" se aplica particularmente bem. Do ponto de vista da repar­tição, o Estado participa aqui na partilha da mais-valia que repre­senta muitas vezes, do ponto de vista material, a parte do sobrepro-duto da própria economia estatal a qual, sob formas e vias diversas e antes de tudo através do aparelho comercial privado, é "captura­da" do fundo de acumulação socialista pelo capital privado.
É de caráter inteiramente inverso o juro que o Estado paga por seus pedidos de empréstimos internos (e externos), na medida em
1 Por utilização ilegal do crédito estatal, tenho em vista a utilização por interme­diários, em benefício do capital privado, de recursos destinados ao Estado, assim como diversas manobras referentes às mercadorias destinadas às cooperativas,
etc.
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que seus subscritores são negociantes, industriais privados e peque­na burguesia, quer dizer, principalmente campesinato. No caso considerado, o juro representa uma dedução do sobreproduto da economia estatal efetuada pelo Estado a fim de obter, da economia privada, através do sistema creditício, recursos suplementares para a reprodução ampliada. O Estado representa aqui o papel de deve­dor e a economia privada o papel de credor que explora em seu pro­veito uma parte do sobreproduto criado pelos operários da econo­mia estatal. Quando o empréstimo é feito para completar recursos do Tesouro e se destina a atender as necessidades nacionais, os ju­ros são pagos, não somente pelos operários, com base no sobrepro­duto da economia estatal mas também pelos camponeses enquanto contribuintes. Se o empréstimo é total ou parcialmente fornecido pelo campesinato e se, correlatamente, ele se destina total ou par­cialmente à recuperação da economia camponesa, temos um caso de redistribuição, por intermédio do Estado, dos recursos da econo­mia privada no interior desta mesma economia privada, quer dizer, um caso de crédito neutro, se assim se pode dizer, do ponto de vista de sua influência direta sobre a acumulação socialista. Esta forma de crédito, no futuro, pode ser utilizado em larga escala na URSS, até o presente um país essencialmente agrícola.
No que concerne à parte dos empréstimos internos fornecidos pelos operários e empregados da economia estatal, e no que concer­ne também à parte correspondente dos juros que o Estado lhes pa­ga, do ponto de vista dos princípios teóricos esta relação de distri­buição nada tem em comum com a.anterior. Os operários e empre­gados põem de lado uma parte de seus salários, entregando-a ao fundo de acumulação socialista e recebem em retorno, não um juro mas algo semelhante a um bônus pela redução de seu consumo pes­soal, redução que implica ao mesmo tempo um acréscimo das pos­sibilidades de reprodução ampliada no interior do setor da econo­mia estatal e entre seus trabalhadores. Temos aqui, na realidade, uma redistribuição iuterna dos recursos, uma redistribuição entre fundo de consumo e fundo de reprodução no interior apenas do se­tor estatal. Do mesmo modo que na redistribuição no interior do campesinato por intermédio do aparelho estatal, esta redistribuição interna no setor socialista pode desempenhar um grande papel no futuro, na medida da elevação dos salários. Entretanto, é absoluta-
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mente impossível de incluir sem reservas este sistema de crédito in­terno, com seu bônus de poupança, na categoria de juro no sentido habitual do termo.
Enfim, também as empresas estatais participam da subscrição dos empréstimos internos pedidos pelo Estado, particularmente dos empréstimos para a recuperação econômica. Falar aqui de juros no sentido da economia política é tão absurdo quanto falar de renda na acepção marxista a respeito do imposto territorial que as empre­sas estatais pagam aos sovietes locais. Temos aqui simplesmente uma*redistribuição interna, no interior do setor estatal, de novos re­cursos liberados. Trata-se apenas de uma imitação à& forma das re­lações capitalistas, imitação que chegará ao fim quando a economia estatal tiver encontrado - através da experiência e de novos modos de distribuição planificada de novos recursos - métodos mais ade­quados ao conjunto de sua estrutura interna.
É também absurdo empregar o termo juros no sentido capita­lista para aquele setor em que esta ''categoria" é amplamente utili­zada no sistema soviético, quer dizer, no setor da concessão de cré­ditos à indústria estatal, aos transportes e ao comércio estatal pelos estabelecimentos de crédito do próprio Estado. Trata-se do mais extenso setor em que as relações de produção e de distribuição da economia estatal aparecem disfarçadas com a antiga vestimenta da categoria capitalista de juro.
Admitamos que o Estado possua uma quantidade determinada de recursos que pode ser utilizada para aumentar o capital fixo e o capital circulante de seus trustes. Admitamos que um truste que ne­cessite desses meios receba o crédito correspondente do Banco do Estado ou do Banco da Indústria. Ele paga um "juro" sobre o capi­tal que pediu emprestado. Qual é a origem desse juro? Seu próprio sobreproduto. A quem pertence este sobreproduto? Ao próprio Es­tado socialista. Para onde vão todas as somas provenientes do pa­gamento pelos trustes estatais dos juros do capital adiantado? A esse mesmo Estado. Ê evidente que temos aqui uma relação com­pletamente diferente, comparada ao capitalismo, onde uma única camada da classe capitalista, ou seja, os empresários que operam não com seu próprio capital, mas com capital emprestado, cede uma parte de sua mais-valia aos possuidores do capital emprestado,
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sob a forma de juros cuja importância é, além disso, determinada pelo jogo espontâneo da oferta e demanda de capitais de emprésti­mo. Contrariamente a isso - se podemos aqui fazer uma compara­ção adequada com as relações capitalistas - nosso Estado socialista encontra-se na situação do empreendedor que trabalha com seu próprio capital e não paga juros a si mes.mo, ainda que possa, ern seus livros, para fins de contabilidade, deduzir de si mesmo o paga­mento de juros. Suponhamos que se introduza em nossa prática ■ uma regra formalmente diferente de concessão de crédito a uma in­dústria estatal, quer dizer, se repartíssemos, segundo um plano de­terminado, os créditos disponíveis a partir de um único centro e seus departamentos, e se concentrássemos neles todos nossos recur­sos atuais de crédito e todo o novo sobreproduto criado anualmen­te por todas as empresas estatais sem exceção, então o juro simples­mente desapareceria, sem modificação substancial das relações de produção no interior do setor estatal. Na realidade, mesmo atual­mente, com um sistema de distribuição de crédito muito pouco or­ganizado, toma-se em consideração a necessidade de todos os ra­mos, seu sobreproduto próprio, que se acrescenta ao capital já em funcionamento, a necessidade de novas instalações, etc. Não sei até que ponto é racional o sistema atual de concessão de empréstimos, que reflete amiúde as relações de forças entre... departamentos. Mas, mesmo sob sua forma imperfeita, com uma imitação talvez inútil dás formas bancárias capitalistas, ele constitui, no fundo, em tudo qu-e diz respeito às relações no interior do setor estatal, uma variedade da distribuição planificada dos recursos da economia es­tatal.
Depois de tudo que foi exposto acima, resta pouca coisa a ser dita de nossa organização de crédito do ponto de vista de seu papel em todo o sistema de relações mercantis-socialistas de produção e distribuição, tanto mais que já foi suficientemente tratado, no capí­tulo da acumulação socialista, o papel da organização do crédito estatal sobre a-acumulação socialista primitiva.
Como sabemos, Marx mostrou, de um lado, o papel importan­te que pode desempenhar o crédito na sociedade burguesa n$> que tange à transição a um novo modo de produção mas, de outro lado, ele alertou, no que tange à produção socialista, contra a superesti-
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mação do alcance deste sistema de cálculo e de controle que a socie­dade capitalista atinge graças à organização do crédito '.
Evidentemente, não é por acaso que nos apropriamos dos mé­todos e das formas de organização capitalistas de crédito, tanto no que diz respeito às áreas em que a economia estatal1 se entrelaça com a economia privada como no que diz respeito à repartição de recursos no interior do próprio setor estatal. É óbvio, porém, que, se no interior do setor estatal as formas de concessão de crédito ad­quirem um novo conteúdo, isto resulta precisamente do tipo histo­ricamente mais elevado da economia estatal enquanto economia ao mesmo tempo coletiva e planificada. A planificação, o cálculo e o controle que resulta-m organicamente da socialização dos meios de produção nos mais importantes setores da economia soviética apa­recem por sua própria essência como um tipo mais elevado de planifi­cação e de cálculo comparado aos que até agora pôde atingir o siste­ma capitalista de crédito mais desenvolvido e centralizado. Assim se explica o fato, atualmente evidente, de que a melhoria na planifica­ção e organização de nossa economia» nos últimos anos, tenha com­pletamente exaurido - se assim se pode dizer - todo conteúdo pro­gressista que pode encerrar o sistema bancário capitalista e que a economia estataltenha tido que ultrapassar as possibilidades, com­parativamente limitadas, que esta instituição oferece geralmente ao setor de vanguarda de nossa economia, quer dizer, a economia cole­tiva do proletariado.
A situação é diferente no que diz respeito às mútuas relações entre a economia estatal e a economia privada. Se, na época do Co-
I "Não há nenhuma dúvida, enfim, que o sistema de crédito será uma poderosa alavanca na época da passagem do modo de produção capitalista ao modo de produção do trabalho associado. Entretanto, este é apenas um dos elementos, em ligação com outras grandes revoluções orgânicas no próprio modo de produção. Por outro lado, as ilusões sobre a força miraculosa das questões de crédito e dos bancos, no sentido socialista, resultam de uma perfeita incompreensão do modo capitalista de produção e das questões de crédito enquanto uma de suas formas. Uma vez que os meios de produção deixaram de se transformar em capital (fato que subentende também a supressão da propriedade privada da terra), o crédito enquanto tal não tem nenhum sentido, o que, de resto, os próprios saint-simonianos tinham compreendido", O Capital, Livro Terceiro, Segunda Parte.
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munismo de Guerra, o caráter impositivo do sistema de confisco do excedente agrícola e abastecimento "planificado" do campo com produtos industriais (segundo o princípio: quem dá mais excedente ao Estado recebe menos ou não recebe nada do Estado) derivou da necessidade de impor, numa conjuntura de guerra, uma aparência de distribuição socialista à economia camponesa que continuava a ser pequeno-burguesa na esfera da produção; em troca, com o atual sistema econômico mercantil-socialista, a economia estatal, contra­riamente, é forçada a adaptar seu sistema de trocas (de modo for­mal, dentro do país e real, externamente) ao da economia privada que não pode deixar de ser um sistema mercantil e monetário de distribuição. E, neste aspecto, o sistema de crédito deve desempe­nhar um enorme papei progressista pois o sistema bancário do capi­talismo representa historicamente um tipo muito mais elevado de organização do controle, do cálculo e da repartição das forças pro­dutivas do que o mercado quase feudal e desorganizado da produ­ção simples de mercadorias que é até aonde esta pode chegar, "sem ajuda externa", no que diz respeito à regulação espontânea da eco­nomia,
Quando Lênin, muitas vezes, sublinhou insistentemente o ca­ráter progressista das relações de produção e de trocas do capitalis­mo estatal, comparados às relações da produção simples de merca­dorias que predominam na economia camponesa, ele sempre teve em vista este aspecto das mútuas relações da economia estatal com a economia privada e, ao mesmo tempo, as relações mútuas relacio­nadas ao crédito. Este papel "estimulador" de nosso sistema de cré­dito se faz sentir e deve se fazer sentir ainda mais fortemente na questão da concessão de crédito às cooperativas camponesas de di­ferentes tipos, notadamente na cooperativa relacionada ao crédito -no crédito sob a forma de mercadorias, no crédito destinado à me­lhoria das terras, no sistema de empréstimos internos colocados no campo, e na concessão de adiantamentos para os produtores (atual­mente limitados unicamente aos produtores de linho, de algodão, fumo, oleaginosos e^posteriormente sem dúvida, aos produtores de cereais comercializáveis, etc).
Cumpre dizer, como conclusão, que se o dinheiro aparece como uma categoria da economia mercantil na qual a reificação das
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relações de produção entre os homens atinge seu apogeu, em com­pensação, na economia soviética, é possível constatar, aqui tam­bém, certo progresso, antes de tudo porque diminuem os elementos de reificação e se atinge uma maior transparência nas relações de produção. Isto tem sido alcançado principalmente nas relações que ocorrem no interior do setor estatal, onde as relações monetárias adquirem principalmente o caráter de cálculo e contabilidade dos meios de produção e dos bens de consumo, graças à atrofia do pa­pel que as relações monetárias desempenhavam como instrumentos de equilíbrio espontâneo da produção.
• Entretanto o fetichismo do dinheiro, parcialmente banido da economia estatal, ainda continua predominante na economia priva­da e nas fronteiras entre elas. Isto conduz, no plano ideológico, ao fato de os trabalhadores do Comissariado do Plano para as Finan­ças (comissariado situado, ele e seus serviços, no ponto de junção da economia privada e da economia estatal) tenderem a ressuscitar este fetiche sob sua forma original, para não di/er degenerada.
Num país que não possui moeda-ouro e que é obrigado a subs­tituir, no plano da direção econômica, a sabedoria espontânea do ouro (instrumento de regulação vigente no regime da lei do valor) por uma política planificada de repartição dos meios de produção e dos bens de consumo por intermédio do papel-moeda, membros do Comissariado do Povo para as Finanças apelam sistematicamente para a sabedoria da "bolsa negra" e, em caso de depreciação do tchervonetz de dez rublos com relação à moeda de ouro de dez rublos, eles entram em pânico e realizam operações com o ouro que são inúteis e prejudiciais ao Estado, permitindo aos Nepmen trocar os seus tchervontsi em ouro. Este erro, dos mais grosseiros em maté­ria de política financeira, decorre aqui de uma total incompreensão do papel do ouro em nosso sistema econômico, erro que decorre, por sua vez, da incompreensão do papel do ouro em geral. Num período de crise industrial, transformada em crise financeira e em crise do sistema de crédito, ou acompanhada dessas crises, um país burguês em que vigora a moeda-ouro sacrifica em benefício do valor do ouro dezenas de milhões de mercadorias; todas as transações co­meçam por serem feitas em dinheiro, desempenhando o ouro o papel de ultima ratio, de última instância de apelação para estabelecer em
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que ponto são corretas as proporções da distribuição das forças produtivas entre os ramos e o volume da produção total com rela­ção à demanda efetiva, É por esta via espontânea que a circulação do ouro é salva numa sociedade que não tem outra via de regulação de suas relações econômicas. Ao contrário, salvar, na "bolsa-negra", a paridade do tchervonetz~pape\ com a moeda de ouro de dez rubtos num país em que não existe circulação do ouro mas onde existe outros métodos de controle das relações econômicas e, parti­cularmente, das relações monetárias, significa imitar, sem espírito crítico, os aspectos mais irracionais e mais nefastos da regulação ca­pitalista. Considerando o grau de organização já alcançado pela economia estatal, com a concentração de quase todo o sistema de crédito nas mãos do Estado e principalmente a manutenção do mo­nopólio do comércio externo, o ouro só nos é necessário para o ba­lanço de pagamento com o Exterior, quando as importações exce­dem as exportações, e não para obter da "bolsa-negra" um teste­munho de confiança em favor do tchervonetz. Nesta questão, recor­ro ao apoio de Marx e citarei um trecho do Terceiro Livro de O Ca­pital, notável em si mesmo e que parece especialmente escrito para nós. Eis a passagem:
"A depreciação da moeda de crédito (mesmo sem falar da per­da das suas características monetárias, perda que, de resto, só é imaginária) abalaria todas as relações existentes. Desta maneira, sa­crifica-se o valor das mercadorias a fim de garantir a existência fan­tástica e independente deste valor sob a forma de dinheiro. Como valor monetário, ela é garantida, de modo geral, somente enquanto o próprio dinheiro é garantido. Para uma pequena soma em dinhei­ro, muitos milhões em mercadorias devem ser assim sacrificados. Isto é inevitável com a produção capitalista, e constitui um dos seus encantos. Isto não ocorre com os modos de produção anterio­res porque, sobre a estreita base sobre a qual eles se apoiam, nem o crédito, nem a,moeda de crédito podem se desenvolver grandemen­te.
Enquanto o.caráter social do trabalho manifesta-se como for­ma monetária de existéhcia das mercadorias, isto ét enquanto coisa existente fora da produção real, as crises monetárias, independeqtes das crises reais ou agravando-as, são inevitáveis. De outro lado, é evidente que enquanto o crédito de um determinado banco não é
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abalado, ele atenua o pânico, em tais casos, aumentando o crédito monetário, ou o reforça, reduzindo este último. Toda a história contemporânea da indústria mostra que se a produção fosse organi­zada no mercado interno de cada país, não haveria necessidade des­te metal senão para o comércio externo, uma vez rompido seu equilíbrio num momento dado. Que desde agora não haja mais ne­cessidade de nenhum metal no mercado interno é o que demonstra a suspensão dos pagamentos em dinheiro de parte dos bancos ditos nacionais - meio ao qual se recorre em todos os casos extremos corno a única saída" ',
Indico, com insistência, esta citação de Marx a nossos encarre­gados das finanças. A falta de espaço me impede, infelizmente, de desenvolver aqui todas minhas opiniões sobre as funções do papel-moeda e do ouro no sistema econômico soviético. Seria conveniente voltar a este assunto, não na parte teórica desta obra mas na sua parte concreta.
A Cooperação
Tanto em seus artigos mais recentes como em outros mais anti­gos, Lênin já disse o que havia de essencial sobre o problema da cooperação no sistema soviético. Neste item, direi apenas algumas poucas palavras sobre a cooperação, relacionando-a com a exposi­ção precedente.
As relações que se estabelecem na cooperação não constituem uma categoria particular no sistema capitalista de produção e de troca. A cooperativa de produção, constitui pequenas ilhas de pro­priedade, não social, mas coletiva, dos instrumentos de produção, ilhotas quô só subsistem no oceano das relações capitalistas na me­dida em que estão subordinadas, no que tange à produção, às leis básicas da economia capitalista. A cooperativa de produção desa­parece nos lugares em que não pode se adaptar à lei do valor. A
!  O Capital, Livro Terceiro, Segunda Parte.
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mesma coisa pode ser dita a respeito da cooperativa de consumo cuja extensão e alcance são muito maiores. Esta forma de coopera­tiva, quer esteja baseada nos princípios de Rochdale ou em qualquer outro, está submetida exatamente do mesmo modo a todas as leis de troca do capitalismo e só pode ficar - através de uma certa racio­nalização da distribuição - com uma parte do lucro comercial em benefício de seus membros.
O cooperativismo só adquire uma importância especial depois da revolução socialista, particularmente num país como a URSS, onde o imenso oceano da pequena produção dispersa no meio ru­ral, do artesanato e da indústria artesanal, opõe-se à economia esta­tal organizada, ou mais exatamente, em vias de organização, a par­tir de um plano de produção. O papel particular de nosso coopera­tivismo resulta justamente da coexistência desses dois sistemas de produção ligados, através das trocas e do crédito, a um único orga­nismo econômico.
A questão fundamental a ser considerada aqui é de saber o pa­pel que desempenha o cooperativismo na luta entre a princípio de planificação e a lei do valor, e em que medida o próprio cooperati­vismo é um campo de batalha passivo para a realização desta luta num determinado setor de troca e de produção, ou se é o veículo de um ou de outro princípio.
No capitalismo, como já vimos, o cooperativismo só pode exis­tir adaptando-se à lei do valor. Em nosso sistema, tdrnando-se ine­vitavelmente uma arena de luta entre as duas leis fundamentais de nossa economia, o cooperativismo deve adaptar-se primeiramente ao princípio que for vitorioso e, secundariamente, ao princípio que lhe for mais próximo em virtude do tipo de organização social do trabalho que é subjacente a este princípio.
Consideremos inicialmente a primeira questão.
Dado que o cooperativismo pode existir também em regime capitalista sem ameaçar em nada sua existência,-é claro que o coo­perativismo não contém, em si mesmo, nenhum princípio ativo que leve à socialização das relações de produção. Os utópicos do coope­rativismo sustentam o contrário mas foram vencidos por toda expe­riência do capitalismo e do próprio cooperativismo. O cooperativis­mo só pode desempenhar uma função socialista na medida em que
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constituir um elo do sistema que evolui para o socialismo na base de suas próprias forças e tendências internas. Este sistema é a economia estatal do proletariado que se apoia, em seu desenvolvimento, sobre o crescimento da grande indústria socializada. A economia coletiva do proletariado - tanto pelas leis imanentes de seu desenvolvimento como pela situação externa - deve desenvolver-se rapidamente ou morrer. Ela não tem outra saída. Quanto mais ela se desenvolver rapidamente, tanto mais o cooperativismo, se não se incorporar ao sistema econômico estatal, constituirá ao menos seu prolongamento. o mais movediço, o menos ligado e o menos organizado (como a cauda do núcleo de um cometa) mas, apesar de tudo, um prolonga­mento que lança seus tentáculos nos poros das trocas entre a peque­na produção e a economia estatal e começa, aqui e ali, a organizar a cooperação entre pequenos produtores.
Quanto ao segundo ponto, cumpre fazer as seguintes observa­ções. O desenvolvimento da ação da lei de acumulação socialista primitiva na qual se concentram, numa dada etapa, as tendências de evolução para o socialismo, implica o fortalecimento de um tipo determinado, o tipo coletivo de organização do trabalho humano. O fortalecimento da ação da lei do valor reflete, e ao mesmo tempo favorece, as tendências para uma outra organização do trabalho, para a organização privada capitalista. Por seu tipo social de orga­nização, o cooperativismo está mais próximo do tipo coletivo de or­ganização do trabalho. Neste sentido, nas condições soviéticas, sua fusão com a economia estatal constitui um processo mais natural que sua orientação para o capital privado. Entretanto, não é este aspecto que é determinante, como vimos mais acima. Se, em nossa economia, o desenvolvimento das relações socialistas, que têm sua base na indústria, paralisasse ou diminuísse bastante, e se as rela­ções capitalistas começassem a crescer mais rapidamente, então, apesar de sua estrutura social, o cooperativismo logo se dividiria e, na sua maioria, desertaria de sua posição de retaguarda da econo­mia estatal para passar para o lado do capitalismo. Cumpre não es­quecer que, com exceção do cooperativismo operário, que na reali­dade não faz outra coisa senão racionalizar o sistema de distribui­ção no interior do setor estatal, e representa assim uma relação de distribuição diferente, todo o resto do cooperativismo apóia-se
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sobre a pequena produção mercantil. Esta pequena produção, numa sociedade burguesa, é neutra, no melhor dos casos, com rela­ção ao socialismo ao passo que ela segrega relações capitalistas e continua o fazê-lo em ampla medida mesmo sob a ditadura do pro­letariado.
A experiência provou que as cooperativas de consumo podem desempenhar - e desempenham - um papel importante no estabele­cimento de uma vinculação direta entre os pequenos produtores e a indústria estatal. Na medida em que o Estado aplica uma política de planejamento de preços para seus produtos e de preços fixos para os produtos que ele adquire dos pequenos produtores, o Esta­do impõe certos limites à lei do valor; as cooperativas de consumo, por intermédio de sua rede, participam desta limitação. Mas, por outro lado, tal como a experiência mostrou, estas cooperativas re­sistem mais fracamente do que os órgãos estatais à pressão da lei do valor. Elas não se mantêm fiéis aos acordos estabelecidos com os órgãos estatais no que diz respeito aos aumentos dos preços das mercadorias que elas vendem a varejo em relação aos preços das mercadorias que elas compram por atacado. Elas revendem ao -;a-pital privado produtos que receberam dos trustes estatais "em me­lhores condições", e freqüentemente o fazem a crédito; muitas vezes abandonam as operações de compra a preços fixos, etc.
Em todos esses casos e, em muitos outros, a lei do valor se im­põe sobre as tendências da economia estatal à planificação. A orga­nização dos pequenos produtores em cooperativas, na esfera das trocas, não encontra sérios obstáculos na ditadura do proletariado. Ocorre mesmo o contrário, se lembramos as vantagens que o Esta­do soviético concede ao cooperativismo e que não encontram para­lelo em nenhum outro regime. Aqui a associação se efetua sem obs­táculos e não somente em razão do fato dessas vantagens mas tam­bém porque ela não tocou até agora a esfera da produção, que per­manece uma economia mercantil dispersa e de pequena importân­cia. O pequeno produtor tem todos os motivos para sustentar o aparelho comercial que*vende mais barato. E quando a cooperativa e o comércio privado vendem aos mesmos preços, há a possibilida­de de escolha, de acordo com a qualidade, as facilidades de crédito, etc. Nunca se deve esquecer que a cooperativa de consumo, por exemplo, que não é uma organização estatal, apenas muito parcial-250

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