Um ensaio heurístico-dialético aplicada à Economia
Por Almir Cezar Filho
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Vivemos em um tempo de incertezas profundas, marcado por choques externos, transições tecnológicas aceleradas e limites ambientais. Nesse contexto, cresce a exigência por políticas públicas que não apenas resolvam problemas imediatos, mas que preservem a coerência estratégica e histórica de seus objetivos. Este ensaio propõe uma lente alternativa para pensar a racionalidade econômica e a ação governamental no tempo: a coerência motivacional retroativa.
Este ensaio propõe uma lente alternativa para pensar a racionalidade econômica e a ação governamental no tempo: a coerência motivacional retroativa.
Trata-se de uma heurística — ou seja, uma regra prática orientadora que ajuda a pensar e agir em cenários complexos, instáveis ou incertos. Heurísticas não pretendem fornecer soluções fechadas, mas sim guiar decisões eficazes quando os modelos tradicionais não dão conta da realidade. No planejamento e na formulação de políticas públicas, esse tipo de ferramenta é essencial, pois permite alinhar intenção e efeito mesmo quando as condições mudam e os resultados são parcialmente imprevisíveis.
Originalmente inspirada por reflexões filosóficas e paradoxos da literatura de ficção científica, essa noção assume aqui um novo papel: o de princípio heurístico para o planejamento e o fomento ao desenvolvimento. Ela parte de uma pergunta fundamental: uma política continua justificável quando seus efeitos anulam ou distorcem os fins que a motivaram? Em outras palavras, os resultados de uma intervenção pública ainda legitimam a motivação que a originou?
A Economia contemporânea já opera com modelos baseados em expectativas retroalimentadas, como no caso das expectativas racionais. Entretanto, a teoria da coerência motivacional retroativa sugere um passo além: considerar não apenas as consequências econômicas previstas, mas a manutenção ou transformação da motivação que justifica as decisões.
Políticas econômicas ou movimentos de mercado só se sustentam historicamente se os efeitos retroativos dessas ações reproduzem ou atualizam a motivação que as impulsionou.
Exemplo: Um país adota uma política de juros altos para conter a inflação. Se, de fato, a inflação cai, mas ao custo de uma recessão prolongada, desemprego em massa e precarização social, a motivação original — estabilizar a economia — pode perder sua legitimidade.
Nesse caso, os sujeitos sociais/agentes econômicos exigem mudanças, ou até reversão, na política econômica, mesmo que ainda esteja em curso ou até nem tenha completado/finalizado a sua atuação. Isto é, a ação entra em contradição retroativa: os meios deslegitimam o fim.
Nesse caso, os sujeitos sociais/agentes econômicos exigem mudanças, ou até reversão, na política econômica, mesmo que ainda esteja em curso ou até nem tenha completado/finalizado a sua atuação. Isto é, a ação entra em contradição retroativa: os meios deslegitimam o fim.
Esse critério permite uma avaliação histórica da legitimidade das políticas econômicas, não apenas em termos de eficácia técnica, mas de coerência estratégica ao longo do tempo.
1. A Crise da Causalidade Linear nas Políticas Econômicas
Grande parte da teoria econômica moderna opera com um modelo de causalidade linear: políticas geram efeitos que, por sua vez, são avaliados por indicadores. Entretanto, crises sucessivas — como a estagflação, o colapso financeiro de 2008, ou os efeitos distributivos regressivos de reformas estruturais — mostraram que resultados econômicos podem deslegitimar a intenção original de uma política.
A lógica da coerência motivacional retroativa propõe, nesse cenário, um teste de consistência estratégica ao longo do tempo. Uma ação econômica ou institucional só se sustenta se os contextos que ela gera ainda justificam a sua adoção — ou reconfiguram, de forma coerente, sua motivação inicial.
Esse problema decorre, em parte, da persistência do raciocínio causal linear e do uso sistemático do ceteris paribus nos modelos econômicos, que isolam variáveis como se o restante do sistema permanecesse inalterado. No mundo real, porém, as políticas públicas e as decisões econômicas operam em contextos dinâmicos e interativos, onde cada ação modifica as condições iniciais e afeta outras variáveis relevantes. A coerência motivacional retroativa se apresenta, nesse cenário, como uma alternativa mais adequada: ela rejeita a fixação artificial de parâmetros e propõe um critério de causalidade histórico-dinâmica, em que a ação só se justifica se seus efeitos preservarem — ou reconfigurarem de modo legítimo — a motivação que a originou.
2. Planejamento Econômico: Entre Objetivos e Autocorreção
O planejamento estatal — especialmente em economias mistas ou em setores estratégicos como infraestrutura, inovação e agricultura — exige hoje mais do que previsibilidade: exige adaptabilidade com propósito. A proposta de coerência motivacional retroativa se insere como critério complementar à eficiência e à eficácia: é preciso avaliar se a trajetória histórica gerada por uma política ainda reafirma os fins públicos que a motivaram.
Exemplo: um programa de incentivo ao crédito agrícola visa combater a insegurança alimentar. Mas se sua implementação leva à concentração fundiária, exclusão de agricultores familiares e dependência de commodities voláteis, o impacto histórico pode contradizer sua motivação. O sucesso técnico, nesses casos, entra em conflito com o fracasso político e ético do projeto.
3. Políticas Públicas sob o Princípio da Retrojustificação
Essa abordagem é especialmente útil em tempos de reformas controversas ou mudanças estruturais:
- Reformas fiscais que prometem justiça tributária, mas agravam a regressividade do sistema;
- Reorganizações administrativas que prometem eficiência, mas desestruturam a capacidade do Estado de formular políticas complexas;
- Programas de fomento que deveriam induzir inovação, mas cristalizam dependências tecnológicas ou exclusões regionais.
Em todos esses casos, a coerência motivacional retroativa oferece um critério robusto de avaliação ex post — mas também de planejamento ex ante. Ela fortalece o vínculo entre legitimidade, resultado e responsabilidade.
4. Fomento, Desenvolvimento e Circuitos de Responsabilidade Histórica
O campo do fomento ao desenvolvimento — via bancos públicos, fundos setoriais ou agências de incentivo — lida com apostas de longo prazo e ambientes incertos. Esses instrumentos operam com graus elevados de assimetria de informação e impactos indiretos. Justamente por isso, requerem mais do que métricas estáticas: exigem um circuito de coerência histórica.
A coerência motivacional retroativa sugere que os critérios de avaliação e continuidade desses instrumentos incluam:
- Se os projetos fomentados preservam a lógica do desenvolvimento territorial inclusivo, da sustentabilidade ou da inovação social;
- Se os efeitos de médio e longo prazo reafirmam a motivação fundante da política pública — ou a reconfiguram sem a trair.
Essa abordagem exige diálogo constante entre técnicos, gestores, beneficiários e sociedade civil, para aferir se o tempo está sendo transformado de forma coerente com os objetivos declarados.
5. Economia Política e Ética da Decisão Pública
Exemplo: governos que vencem eleições prometendo inclusão social e, ao longo do mandato, aprovam medidas que precarizam direitos, rompem esse circuito de legitimidade retroativa. O que foi justo em sua origem torna-se ilegítimo em seus desdobramentos.
O mesmo vale para lideranças técnicas ou parlamentares que, em nome da “governabilidade”, viabilizam reformas que dissolvem a razão pública de sua atuação.
Além disso, a teoria econômica tradicional frequentemente depende do pressuposto do ceteris paribus — a suposição de que todos os demais fatores permanecem constantes ao se analisar o efeito de uma variável.
Além disso, a teoria econômica tradicional frequentemente depende do pressuposto do ceteris paribus — a suposição de que todos os demais fatores permanecem constantes ao se analisar o efeito de uma variável.
Embora útil para modelos simplificados, esse artifício ignora as complexidades temporais, as retroações sistêmicas e os efeitos de segunda ordem que caracterizam as decisões políticas e econômicas reais. A coerência motivacional retroativa supera essa limitação ao exigir que toda ação ou política seja avaliada em seu desdobramento histórico: não importa apenas o efeito imediato, isolado, mas se o sistema transformado por essa ação ainda sustenta a lógica que a motivou.
Assim, essa abordagem substitui o ceteris paribus por um princípio de coerência narrativa sistêmica: reconhecer que toda intervenção se dá em um campo vivo, dinâmico, onde as variáveis se alteram mutuamente e onde o tempo exige responsabilização estratégica pelas consequências não previstas, mas possíveis.
6. Conclusão: Por uma Teoria Econômica do Tempo Coerente
Isso significa:
- Formular políticas com clareza de propósitos históricos;
- Avaliar não apenas se a política “funcionou”, mas se ela preserva ou fortalece sua motivação original;
- Criar instituições capazes de aprender, corrigir rumos e justificar, a posteriori, o caminho que trilharam.
Em tempos de disrupção, polarização e descrédito institucional, agir com coerência retroativa é uma forma de reconstruir confiança, legitimidade e sentido estratégico nas ações econômicas do Estado.
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