quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Para Cardim, Brasil saiu da estagnação, mas há muitos problemas para resolver

Entrevista com o economista Fernando Cardim de Carvalho ao jornal Valor Econômico. Cardim é maiores pensadores brasileiros em macroeconomia pós-keynesiano, e um dos formuladores do vem se chamando de "neodesenvolvimentismo". Como muitos dessa "nova vertente", acabou por abraçar o lulismo, e disputá-lo, à medida que consideram um movimento instrumetalizável à construção de um novo projeto de desenvolvimento nacional. O importante nessa entrevista é o fato que Cardim aponta segundo sua visão quais seriam os graves problemas econômicos brasileiros da atualidade, numa perspectiva que pode não ser dos trabalhadores, mas que foge ao convencional que vem sendo tratado pelo jornalismo econômico da grande mídia, dominada pela ortodoxia neoliberal.

Para Cardim, Brasil saiu da estagnação, mas há muitos problemas para resolver

Do Valor,13/10/2010

Valor: Administrar o câmbio é o maior desafio do próximo governo?

Cardim: Eu acho que sim. Não há saídas fáceis, não há o almoço grátis nesse tema. O que tem sido praticado não parece estar levando a resultados positivos, aumentando nossa vulnerabilidade a problemas de balanço de pagamentos, e tendo efeitos negativos sobre a estrutura econômica brasileira. É preciso pensar em alternativas, no contexto de uma nova reflexão sobre a política econômica brasileira em geral, dado o quadro de recuperação rápida da economia depois da crise de 2008 e 2009.

Valor: Como o Brasil deve reagir à guerra cambial hoje em curso?

Fernando Cardim de Carvalho: $ Nós atravessamos um período muito perigoso. Até recentemente, uma das diferenças entre a Grande Depressão e a atual crise financeira tinha sido o reduzido apelo a políticas conhecidas como "beggar thy neighbor", isto é, exportar os seus problemas para os seus parceiros. Esse padrão está sendo rompido, especialmente pela Alemanha e a China, por canais diferentes. A Alemanha, por simplesmente pegar carona no esforço de recuperação e expansão dos outros países, crescendo por exportações ao invés de dinamizar sua própria demanda doméstica e permitir que outros expandam suas exportações para aquele país. A China, pela manutenção de uma política cambial obviamente protecionista. O Brasil deve reagir principalmente através dos fóruns internacionais, buscando a necessidade de cooperação em benefício mútuo. Se isso não funcionar, estabelecer defesas próprias na extensão em que a manipulação cambial dos países que mantêm suas moedas excessivamente desvalorizadas esteja prejudicando a nossa economia. Seria ruim para todos que o mundo escorregasse para uma guerra comercial como a dos anos 30, mas isso não deve servir apenas a um ou outro país, e sim à comunidade internacional.
Valor: O governo elevou o IOF de 2% para 4% para aplicações em renda fixa. Como o sr. avalia a medida?
Cardim: Continua sendo mais simbólica que eficaz. O próprio Valor calculou o impacto disso sobre o retorno de aplicações na dívida pública brasileira mostrando que esse aumento reduz o retorno de 11% e alguma coisa para 11% e alguma coisa ligeiramente menor. Não vale a pena receber toda a reação por aplicar controles de capitais em troca de algo que é pequeno demais para ter qualquer efeito.

Valor: É o caso de elevar a alíquota do IOF? E o sr. acha razoável tributar também o investimento em fundos de ações ou private equity?

Cardim: Sim, uma alíquota maior o suficiente para remover o estímulo à entrada excessiva de capitais. A valorização do real não resulta apenas do capital que vem atrás de juros, alguma barreira também deveria conter o investimento em ações e private equity. A alternativa ao IOF são as exigências de permanência mínima no país, como o Chile usou por bastante tempo, e o próprio Brasil também.

Valor: Há outras medidas de curto prazo para conter a valorização?

Cardim: O ideal seria obter alguma coordenação internacional, seja através do FMI, seja através do G-20. É importante lembrar que taxa de câmbio envolve sempre mais de uma moeda e a coordenação com os emissores das outras moedas em benefício comum seria o meio mais produtivo. Infelizmente, a expectativa que esse diálogo produza algum resultado é fraca. Nessas condições, o país deve considerar o emprego de medidas mais eficientes de autoproteção. Há muitos anos defendo a imposição de medidas de controles de entrada de capitais externos e saída de capitais nacionais, e continuo achando que essa é a melhor saída que nos resta, se o diálogo não levar a lugar algum. O Fundo Soberano é uma possibilidade, mas há muitos aspectos ainda obscuros nos seus modos de operação, não sei se seria o caso de atribuir um papel muito importante a algo que é, em grande medida, uma novidade e pode ou não funcionar.

Valor: Como funcionariam as medidas que o sr. propõe de controle da entrada de capitais externos?

Cardim: Eu tenho a impressão que o melhor sistema, como eu disse, seria o chileno, o estabelecimento de um tempo de permanência mínima no país, voltado a desencorajar a aplicação em dívida de prazo mais curto ou em papéis pela valorização de curto prazo. A tecnologia para aplicação desses controles é conhecida e eles contam até mesmo com o aval, se não o entusiasmo, do FMI.

Valor: Ainda que não esteja claro como funcionará o Fundo Soberano, o sr. acha que o governo deve acelerar as compras de dólares?

Cardim: Acelerar compras cria um problema para o governo, porque o financiamento do próprio governo é mais caro que o retorno que se pode obter com reservas. Nós já temos um nível bastante elevado de reservas, não se pode ou não se deve acumular indefinidamente. O melhor é criar barreiras à entrada, em vez de comprar indefinidamente.

Valor: Em que medida a valorização do câmbio tem prejudicado a economia brasileira?

Cardim: As evidências em termos de exportações e de produção de manufaturados são bastante visíveis e o próprio Valor tem publicado relatos importantes do risco de desindustrialização. Nas exportações, estamos voltando a exportar produtos primários, o que é um violento retrocesso em relação ao que conseguimos na segunda metade do século XX. O passivo externo brasileiro está crescendo rapidamente, com compromissos tanto com relação a emprestadores quanto a investidores estrangeiros. Esse filme passou dezenas de vezes por aqui, sempre com final infeliz. O tamanho do rombo em transações correntes ainda é relativamente pequeno, mas a velocidade com que ele se amplia é preocupante.

Valor: Economistas ortodoxos costumam pregar um forte aperto fiscal para que, com isso, seja possível baixar mais os juros e reduzir o diferencial entre as taxas internas e externas. É um bom caminho para evitar o tombo do dólar?

Cardim: Esse raciocínio se apoia em várias proposições que são mais matérias de fé que de evidência. A recuperação da disciplina fiscal, um tanto atropelada ultimamente, é boa em si mesma, para permitir que se possa usar mais intensamente instrumentos anticíclicos, se isso vier a ser necessário no futuro. A melhora da eficiência do Estado é tambem boa em si mesma, já que não basta ser grande, é preciso ser ágil e eficiente, e o Estado ainda está longe disso em várias áreas. Mas a relação com juros e o balanço de pagamentos não me parece a mais importante.

Valor: O que é mais importante para explicar a valorização do real? A desvalorização do dólar em relação a outras moedas ou fatores domésticos, como o alto nível do juro?

Cardim: A valorização é principalmente com o dólar, mas isso não nos prejudica apenas nas relações com os EUA, mas também com todos os países que ancoram a moeda no dólar, inclusive a China, apesar da flexibilização muito suave que aquele país promoveu até agora. Portanto, nosso problema maior é mesmo a atração excessiva de capitais financeiros.

Valor: Quais os outros desafios econômicos do país em 2011?

Cardim: São muitos. O Brasil conseguiu sair da estagnação que caracterizou o comportamento de sua economia até muito recentemente, mas ainda há muitos problemas a resolver, na infraestrutura produtiva, na educação para aumentar a produtividade do trabalho no país, na saúde, no uso de novos instrumentos para redistribuição de renda e riqueza, como a estrutura tributária. O Brasil se levantou e ensaiou os seus primeiros passos depois de muito tempo. Mas ainda cambaleia, e é importante definir para onde vai. (SL)

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