sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Europa impõe neocolonialismo à Grécia, diz economista

Folha de São Paulo

A queda de George Papandreou é uma vitória do mercado financeiro, que conseguiu enterrar a ideia --mal encaminhada-- do plebiscito na Grécia. O pacote de resgate imposto pela Europa ao país é "uma forma de neocolonalismo".

A análise é do economista chileno Gabriel Palma, 64, professor da Universidade de Cambridge (Reino Unido). "Alemanha e França pensam que têm o direito de decidir o que acontece na Grécia depois do resgate. A falta de democracia é absoluta", diz.
Especializado em econometria e desenvolvimento, ele avalia que "o pior fantasma que há na Europa é a Itália".

Palma critica o que chama de "passividade da América Latina" em relação ao crescimento puxado pelo preço excepcional das commodities e por fluxos de capitais externos. A Argentina é exceção, pois "está tomando medidas mais agressivas, mais pragmáticas".
Ataca a política de altos juros brasileira, que classifica como "monetarismo do século 19", e define a desindustrialização do país como um processo de "vandalismo econômico".

FOLHA - O que acontece na Grécia?
GABRIEL PALMA - O que acorreu na América Latina muitas vezes. Foi criada uma crise e os que pagam pela crise são outros. A Grécia cortou 25% da educação pública, 25% da saúde pública, deixou a habitação a zero. Nenhum desses setores foi causa da crise. Uns se beneficiaram e são outros os que estão pagando. Na Grécia, entre 2002 e 2007, o valor do estoque de bens financeiros (bolsa, ativos bancários, bônus públicos e privados) triplicou em termos reais. Cresceram seis vezes mais rápido que o PIB. A mentalidade moderna fala que o preço do ativo financeiro sempre reflete os fundamentos da economia. Obviamente não é isso.


Por que houve essa reação tão forte contra o plebiscito, agora descartado?
Na Irlanda o governo anterior ficou com todas as perdas do sistema privado. Fez sem perguntar a ninguém. Todos esses planos de resgate têm um elemento muito antidemocrático. Passam a dívida privada para a pública sem perguntar a ninguém. Chamar um referendo para o resgate não tinha muito sentido porque não era o ponto fundamental, que é se a Grécia segue no euro.

Na Islândia houve dois plebiscitos sobre a socialização das perdas. Se se faz um plebiscito o mais provável é que se diga não. Que a dívida privada fique com os privados. O grande erro de George Papandreou foi não ter feito isso quando assumiu o governo em outubro de 2009. Quando se passam perdas privadas para o setor publico tem que perguntar às pessoas que vão pagar. Os setores financeiros têm a maior parte desses governos no bolso. Ninguém quer a democracia. Ninguém quer o que houve na Islândia. Papandreou estava fazendo algo que era necessário, mas mal feito.

O que a Grécia deveria ter feito?
O fez a Argentina em 2003: renegociar imediatamente com os mercados financeiros. Se eu vou a um banco e peço U$ 1 milhão para ir ao cassino e perco, a culpa é minha. Mas também do banco que emprestou dinheiro para uma coisa tão absurda. É assim o caso da Grécia. Os que emprestaram essa quantidade de dinheiro à Grécia são igualmente responsáveis por essa situação insustentável.

Na Grécia, até agora [segunda-feira, 7/11] não conseguiram chegar a um acordo sobre o primeiro-ministro, já que a escolha obvia --o ex-vice-presidente do Banco Central Europeu, Lucas Papademos-- está reivindicando muitas condições. De qualquer forma, concordaram com uma eleição geral em fevereiro, que não deve gerar um governo forte, pois nenhum partido deve ganhar a maioria.

A ameaça da França e da Alemanha contra o plebiscito não deixam a Grécia numa situação de pouca independência?
Sim. As condições que a Europa impôs à Grécia para o plano de resgate são uma forma de neocolonialismo. É cortar os gastos de educação, saúde, habitação --que paguem os que não têm responsabilidade pela crise. Houve um nível de brutalidade e de caráter antidemocrático muito forte. Alemanha e França pensam que têm o direito de decidir o que acontece na Grécia depois do resgate. A falta de democracia é absoluta.

A queda de Papandreou é uma vitória do mercado financeiro?
Sem dúvida. Isso que ele tinha feito, até poucos dias atrás, exatamente o que os mercados financeiros queriam. Hoje os mercados financeiros e as grandes corporações têm o poder de trocar governos, trocar primeiros-ministros. Isso é o fundamental da falta de democracia. Passado o drama [anúncio do plebiscito, queda de Papandreou] a atenção se volta para a Itália.

O caso grego é o pior?
O pior fantasma que há na Europa é a Itália. Nos próximos dois anos 600 bilhões de euros, quase U$ 1 trilhão, da dívida vencem e precisam ser renegociados. Qual será o preço? Não vejo de onde possa vir um governo forte, racional, capaz de adotar políticas fiscais que faça a situação sustentável. A menos que se tomem medidas muito drásticas. Uma das poucas soluções para a Itália seria que, de forma unilateral, transformasse sua dívida curta em dívida longa. Uma solução dolorosa.

A dívida total da Grécia é algo em torno de 350 bilhões de euros. E essa é a quantia que a Itália precisa renegociar todo ano. Ao menos a Itália não tem um déficit primário, como a Grécia, mas nas taxas de juros atuais --aproximadamente 7% na renegociação da dívida-- o país está entrando num esquema de Ponzi: precisam pegar dinheiro novo emprestado apenas para pagar o serviço da dívida existente.

Ou seja, precisam adicionar o serviço ao estoque da dívida. O problema central é que a dívida italiana, de quase 2 trilhões de euros, é cerca de duas vezes todo o fundo de resgate do euro. E a Espanha pode ser a próxima --embora a relação dívida/PIB seja apenas metade da italiana, o déficit do setor é de 9% do PIB e o desemprego chegou a 21%.
Veja a confusão. A maior dívida pública na União Europeia é a da Grécia, de 143% do PIB em 2010. Depois vem a Itália, com 120%. Bélgica, Portugal e Irlanda, com menos de 100%.

A Grécia deveria ter renegociado de forma unilateral?
No primeiro dia. Como fez a Argentina. Os bancos europeus estão numa situação precária não só pela situação da dívida pública, ativos da dívida grega espanhola italiana, mas porque tinham ativos de subprime dos EUA e outros ativos muito precários. Não há como subestimar a precariedade dos bancos europeus.

E os resgates?
Os governos europeus saíram comprando dívida grega, que é de curto prazo. Houve uma transferência da dívida do mercado financeiro para os governos europeus. Esses governos europeus fizeram pressão em alguns bancos para que eles também mantivessem a dívida grega. Se há um default forte grego alguns bancos europeus vão sofrer fortemente, principalmente alemães e franceses. Mas 100% desses bancos vão ser resgatados pelos governos de seus países. Não vão fazer outro Lehman, com grandes perdas privadas. A dívida pública européia vai aumentar mais com o resgate desses bancos.

Está previsto um corte de 50% na dívida grega. Mas hoje os bônus valem quanto?
No mercado secundário o bônus vale menos de 50%. Hoje em dia não há preço, está tudo no ar. Hoje não vale nada, até que as coisas se resolvam. Antes dessa negociação era mentira que valiam 100%. Baixar a 50% é reconhecer um fato que já existe. Foi uma negociação da Alemanha e da França com os bancos privados que têm a dívida grega.

Mas o grande problema é a dívida italiana. Os bancos alemães e franceses têm muita dívida italiana. Esses 50% é sobre o que vale a dívida grega, mas a maior parte dela está com os governos europeus e alguns bancos grandes que têm de alguma forma a garantia dos governos. Se algum banco entrar em dificuldade os governos vão resgatar esses bancos. Por isso não creio que vá haver um grande mercado secundário de dívida grega como houve na América Latina.

A China vai salvar a Europa?
China já tem U$ 600 bilhões de dívida europeia. A China também pode ter muitas perdas. Mas os governos querem que a China compre mais, mais dívida italiana e espanhola. O mais provável é que compre um pouco. A pressão sobre a china é muito forte nesse momento, porque eles têm uma quantidade enorme de US$ 3 trilhões de reserva. Podem comprar toda a dívida espanhola e toda a dívida italiana. O grande problema dessa dívida é que é de curto prazo.

Por que China faria isso?
Para a China não convém um desastre mundial; tem interesse em deixar as coisas pelo menos como estão agora. Ela tem U$ 600 bilhões de dívida europeia. Se a china comprar a divida haverá muito menos pressão para que ela faça uma valorização da sua moeda. Há também fatores políticos. O mais importante é que, se amanhã a China tomar Taiwan numa negociação e a transformar numa Hong Kong, não haverá um país do mundo que vai se atrever a levantar um dedo. É a questão política para a China: ter todo mundo dependendo dela de tal forma que ninguém reclame sobre direitos humanos, sobre a valorização da moeda, nem por sua política em relação a Taiwan.

A China está desacelerando?
O crescimento continua a taxas muito espetaculares. A China é a única coisa que funciona nesse mundo, com Índia e algo de Ásia. É o único motor que está empurrando a economia mundial. Se desacelerar, complica a situação. China e Índia têm um mercado interno fantástico. Se os mercados externos se desaceleram, eles podem olhar mais para o mercado interno. E a China tem uma situação de balanço de pagamentos muito positiva.

Qual sua avaliação sobre as medidas sobre câmbio e fluxo de capital tomadas pela Argentina?
A Argentina é um caso à parte, faz coisas diferentes em política econômica. No resto da América Latina, Brasil, Chile, Peru não houve mudanças significativas de política econômica; são neoliberais. Os juros do BC brasileiro são os mais altos do mundo; no câmbio, o real é o mais sobrevalorizado do mundo, segundo o Goldman Sachs. São políticas ortodoxas, como na grande parte da América Latina. O êxito tem se baseado no crescimento dos preços das commodities e na grande entrada de capital estrangeiro.

A situação desses dois fatores que têm empurrado o crescimento é bastante incerta. O preço das matérias-primas não tem motivo para seguir subindo na situação atual. E a entrada de capital pode mudar a todo o momento. Os governos se ajustaram a isso como se fosse uma situação permanente e não transitória. Fizeram ajuste pelo consumo, não por investimento. Se os termos de intercâmbio voltam a níveis normais ou a entrada de capital se reduzir, o ajuste que terá que fazer a América Latina vai ser bastante forte.

E a probabilidade de que isso aconteça é alta. O preço das matérias-primas está onde está metade por causa da China, da Índia etc. E a outra metade é pela grande especulação das commodities. Essa especulação pode perfeitamente terminar. Pode haver um ajuste muito forte e muito rápido. Estamos dependendo de dois estímulos muito instáveis. O problema é que América Latina se ajustou a isso. Se os termos de intercâmbio fosse os históricos, o déficit de conta-corrente do Brasil seria mais do dobro do que é agora.

Mas Brasil tem mercado interno grande, uma indústria. Mesmo assim o ajuste seria grande?
O mais importante que vai minorar o ajuste são as grandes reservas que tem o BC; é um grande colchão. Isso México, Peru e Chile não têm. Com sorte, o Brasil vai seguir. Com má-sorte vai desacelerar mais.

O Brasil deveria cortar mais os juros?
O que mais me perguntam quando viajo à Ásia é: o que estão pensando os brasileiros para ter a política monetária que têm? Para mim é uma situação de monetarismo do século 19. A única razão que existe é a inércia. O ponto das taxas de juros é sempre o mesmo: é muito fácil subi-las, mas muito difícil baixá-las, criou-se uma inércia. Como subiram no nível que subiram é muito difícil baixá-las para ter uma política monetária racional.

E as medidas argentinas?
rgentina é diferente na América Latina, tanto na política monetária quanto nos problemas que tem. Não que eu seja otimista, mas ao menos, uma coisa interessante na Argentina é que se está tomando medidas mais agressivas, mais pragmáticas, no sentido de uma política monetária expansiva, uma política fiscal expansiva, de uma regulação dos fundos de pensão e de outras partes do mercado financeiro. Pelo menos está fazendo algo.
Uma coisa que para mim me desespera é a passividade do resto da América Latina, de um pouco sentar-se e esperar para ver o que acontece. A Argentina tem uma política mais pró-ativa, não só reativa. Isso ao menos lhe dá uma possibilidade de seguir adiante. Não dá para subestimar os problemas da economia argentina.

Por quê?
A Argentina tem uma situação de balança de pagamentos muito mais complicada que o Brasil. Não só o balanço de pagamentos depende do preço alto das commodities, mas também as receitas públicas. O dia em que o preço da soja e de outros produtos importantes para a Argentina, como o trigo, voltar a seus níveis normais, o país não só ter um problema de balanço de pagamentos, mas também fiscal. No dia em que os preços do ferro e da soja voltarem a níveis normais, o Brasil terá um problema sério de balanço de pagamentos, mas não de contas públicas. Argentina terá os dois.

Mas as medidas são boas?
São muito melhores do que não fazer nada. Melhor do que a posição brasileira de usar só política monetária, deixar o câmbio flexível, deixar que os mercados ajeitem as coisas. Hoje em dia eles não são capazes de ajeitar nada. Portanto, fazer algo na direção certa é muito positivo. É difícil saber se essas medidas serão suficientes, ou ela terá que tomar medidas mais fortes.

O que o Brasil deveria fazer?
Sem dúvida não tem nenhum sentido o câmbio nem a taxa de juros. Essas duas variáveis não têm nenhum fundamento na realidade da economia brasileira nem de nenhuma perspectiva de teoria econômica ou de um ponto real. É basicamente deixar que os mercados financeiros internacionais determinem o tipo de câmbio brasileiro. É inaudito, pois o Brasil deveria estar defendendo a sua capacidade produtiva doméstica. Mas com esse câmbio e com essa taxa de juros, estão destruindo a indústria manufatureira brasileira.

Estamos vivendo uma situação em que os países, incluindo China e Índia, deverão cuidar mais de seus mercados domésticos como motor de crescimento. Nessa situação é imperdoável o que o Brasil fez com sua indústria manufatureira. Em 1980, o valor da produção manufatureira brasileira em dólares era igual que a soma da China, Índia, Coreia, Malásia e Tailândia. Hoje é 10% dessa soma.

Isso é vandalismo econômico. O Brasil tinha uma capacidade manufatureira que o colocava numa situação muito favorável para aproveitar a globalização com uma força industrializadora interna. E, por sua política monetária, cambial, de taxa de juros, e abandono da política industrial fez exatamente o contrário. Fez com que a indústria brasileira como percentagem do PIB caísse à metade do que era em 1980.

Custa muito construir e é muito fácil destruir. Ter construído uma indústria manufatureira como tinha o Brasil em 1980. Tinha os seus problemas, mas eram muito menores que os que tinham a indústria manufatureira chinesa ou hindu. Esses países conseguiram uma industrialização sem precedentes. O argumento de que isso aconteceu porque os salários são menores na Índia e China do que no Brasil não tem sentido.

Porque o que importa do ponto de vista produtivo é o custo laboral por unidade de produto. Ainda que o salário brasileiro fosse o dobro do chinês, a produtividade brasileira era três vezes a chinesa. Era mais barato produzir no Brasil. O custo unitário da produção manufatureira brasileira nos anos 1980 era menor que o chinês. Porque o diferencial de produtividade era maior que o diferencial de salário.

O Brasil tinha uma indústria muito poderosa, uma situação de baixos custos produtivos, numa situação ótima pra aproveitar a globalização e transformar-se num centro industrial muito forte, especialmente no processamento de matérias primas. E, em lugar disso, abandonou sua indústria manufatureira à sorte dos mercados, com esse tipo de câmbio, taxas de juros.
Os países asiáticos, partindo de uma situação muito pior do que a brasileira, o superaram.
Daqui para adiante, os mercados domésticos vão ter um papel mais importante para o crescimento, mais do que tiveram nos últimos 20, 30 anos. Isso vai custar caro ao Brasil. Como há setores dinâmicos na economia brasileira, há pelo menos uma base para reconstruir a indústria. Mas para isso precisa mexer no câmbio, na política industrial, uma taxa de juros. É necessário fazer mais o que Luciano Coutinho está tentando fazer no BNDES, e não o que o BC está fazendo. É preciso um projeto nacional.

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