quarta-feira, 17 de setembro de 2025

"A Servidão do Caminho": Economia de Mercado, Pós-Modernidade e Servidão - o Paradoxo Neoliberal

Por Almir Cezar Filho

Em O Caminho da Servidão, Friedrich Hayek acusava o socialismo, o intervencionismo econômico, o Estado de bem-estar social e o planejamento estatal de conduzirem a uma "servidão": a perda das liberdades civis e a ascensão de regimes totalitários. Para Hayek, e para seus pares como Von Mises e Milton Friedman, qualquer tentativa de submeter a dinâmica do mercado à ação coletiva racional implicaria inevitavelmente na erosão da liberdade individual. No entanto, a realidade que emergiu nas últimas décadas mostra-se um espelho invertido dessa tese. O desmonte dos instrumentos de regulação estatal, a demonização do planejamento, a precarização do Estado social e a expansão desmedida da lógica mercantil não produziram liberdade, mas sim uma nova forma de servidão: a servidão ao capital financeiro, às corporações transnacionais e ao poder punitivo do Estado autoritário.

Sob a hegemonia da ideologia do livre mercado, vivemos a degradação da malha social, a desindustrialização, a explosão das crises financeiras, a inflação das commodities, a concentração de riquezas e a corrosão da esfera pública. O "mercado" — como abstração ideológica que naturaliza relações sociais e apaga conflitos — se tornou dogma inquestionável. Entretanto, esse fundamentalismo mercadológico se traduz, na prática, em anomia, precariedade e despotismo. A promessa de liberdade se converte em serviço informal, vigilância digital, escravidão por dívida e judicialização da política. O que era para ser um antídoto contra o totalitarismo, revelou-se seu fermento.

A democracia, aqui, deve ser compreendida não apenas como regime institucional, mas como um conjunto de liberdades democráticas reais: o direito de existir dignamente, de decidir coletivamente, de proteger a vida comum contra a tirania do lucro. Nesse sentido, os neoliberais e ultraliberais não representam o liberalismo clássico — de Smith, Paine ou Jefferson —, mas uma direita pós-moderna, marcada pelo paradoxo: defendem o Estado mínimo econômico, mas sustentam o Estado máximo policial e punitivo; exaltam o individualismo econômico, mas impõem moralismos coletivos regressivos; denunciam o totalitarismo imaginário do welfare state, mas silenciam diante do autoritarismo financeiro e judicial.

A pós-modernidade é o zeitgeist do tempo presente: o crepúsculo da sociedade burguesa, o momento senil do capitalismo. Uma fase marcada por crises de sentido, cinismo político e dissolução das identidades ideológicas tradicionais. Nessa fase, conservadores se tornam reacionários religiosos, liberais viram libertários plutocráticos, e a própria ideia de "direita" assume uma forma fluida e contraditória: a Direita Pós-Moderna. Ela amalgama o discurso do livre mercado com o autoritarismo penal, o anticomunismo histérico com o moralismo puritano, o empreendorismo com a terceirização da vida.

No campo político, essa Direita Pós-Moderna impulsionou a ascensão de uma nova vaga neofascista: anti-intelectual, antissindical, antiambiental. Seu discurso é reativo e ressentido. Promete ordem, mas promove caos; promete progresso, mas entrega barbárie. E é justamente o fracasso do mercado desregulado que serve como palco para essa ascensão: ao destruir os vínculos de solidariedade e o pacto social, o ultraliberalismo alimenta a busca desesperada por salvadores autoritários. Em nome da liberdade, instala-se a servidão.

A tese de Hayek, portanto, revela-se auto-refutada. O caminho que ele denuncia é, na verdade, o caminho que ele propõe. A realidade mostrou que não é o planejamento que leva à tirania, mas a fé cega no mercado como ordenador espontâneo. Como apontou Karl Polanyi, é a desorganização promovida pelos mercados autorregulados que cria o caos social propício à tirania. Gordon Tullock, por sua vez, lembra que experiências como a Suécia — com altos níveis de intervencionismo e bem-estar — provaram que é possível combinar liberdade política com regulação econômica.

Em suma, o neoliberalismo, longe de ser o guardião da liberdade, mostrou-se seu coveiro. A promessa de que menos Estado significaria mais liberdade converteu-se em mais repressão, mais desigualdade, mais vigilância, mais desespero. O "mercado livre" não libertou: aprisionou. Se quisermos recuperar as liberdades democráticas e econômicas, precisaremos retomar a ideia de planejamento, de regulação, de propriedade comum. Precisamos de um novo caminho: não o da servidão disfarçada de liberdade, mas o da liberdade organizada pela justiça social e pela soberania popular.

Não vivemos no caminho da servidão, mas sim, na servidão do caminho...

Nenhum comentário:

Postar um comentário