Não dá para ser antiimperialista apoiando Kadafi
Parte da esquerda falsifica a realidade para apoiar o massacre do ditador líbio contra o povo
DIEGO CRUZ - da redação, Opinião Socialista e PSTU Online
• A onda de revoltas árabes que irrompeu na Tunísia e se espalhou pelo Norte da África, confrontando ditaduras de décadas, atraiu a atenção de toda a esquerda mundial. Seu ponto alto, o Egito, foi tema de controvérsias e debates, mas ninguém poderia negar a solidariedade à luta dos jovens e trabalhadores contra o regime de Mubarak.
Quando o levante chegou à vizinha Líbia, no entanto, essa história mudou. Para uma parte da esquerda e o chavismo, já não se tratava mais da luta de um povo contra uma ditadura opressiva, mas uma articulação das potências para derrubar um governo antiimperialista. A brutal contra-ofensiva de Kadafi contra os rebeldes e as ameaças de intervenção estrangeira parecem ter dado novo impulso a essa visão.
Na prática, esse setor se presta ao vergonhoso papel de atacar a mobilização popular na Líbia, apoiando e se solidarizando à ditadura Kadafi. No Brasil essas posições se expressam de forma mais clara através dos stalinistas PCB e PCdoB. O que dizem esses partidos sobre o que ocorre hoje na Líbia?
Interpretações
Editorial do portal Vermelho, órgão do PCdoB, de 12 de março, “O medo do espectro do anti-imperialismo”, relembra o passado nacionalista de Muammar Kadafi. “O coronel Muamar Kadafi, que governa a Líbia desde a deposição da monarquia, em 1969, lidera um regime que expulsou empresas estrangeiras (principalmente britânicas e norte-americanas), nacionalizou a economia e colocou o país numa rota de crescimento e bem-estar, por um lado, e de enfrentamento do imperialismo, por outro”, diz um trecho do texto.
Até aí é um fato. Em seguida, porém, o editorial afirma que “mesmo tendo chegado a acordos com os governos dos EUA e da Europa, há uma década, Kadafi nunca chegou a ser confiável para as grandes empresas multinacionais e para os mandatários do imperialismo”. O acordo da Líbia com o imperialismo a partir de 2002 é outro fato. Resta saber a razão de o ditador não ser “confiável” às grandes potências.
As multinacionais petroleiras certamente não compartilham dessa opinião. Nos últimos 10 anos Kadafi já deu demonstrações de ser plenamente confiável ao imperialismo, a ponto de os EUA e a Europa despejarem bilhões de dólares em investimentos na prospecção de gás e petróleo no país. Confiável a ponto de só a Itália comprar quase 1/3 da produção petrolífera da Líbia.
A partir de seu movimento de aproximação com o Ocidente, o ditador líbio escancarou seu país ao capital estrangeiro. Dos “Acordos do Deserto” assinado com o primeiro-ministro Tony Blair em 2004, aos negócios com o dirigente italiano Silvio Berlusconi, Kadafi tornou-se nos últimos anos o queridinho do imperialismo europeu na região. Destinava ao continente 80% do petróleo exportado. Só a petrolífera italiana Eni operava 13 campos de gás e petróleo na Líbia, tendo uma produção de mais de 300 mil barris diários.
Em contrapartida, Kadafi investia seus petrodólares no país. Chegou a ter 10% da Fiat e, em plena crise econômica, socorreu o maior banco italiano, o UniCredit, tornando-se o maior acionista da instituição, com mais de 7% de suas ações.
A nota política da direção do PCB vai mais longe e chega a justificar a guinada à direita do regime líbio após sua fase nacionalista. “Fatores como a queda da URSS enfraqueceriam, logo a seguir, a economia e a autonomia política da Líbia e, após a invasão do Iraque pelos EUA e seus aliados, em 2003, tentando, ao que tudo indica, evitar outra agressão à Líbia, Khadafi começou a fazer concessões políticas e econômicas ao imperialismo, abrindo a economia a bancos e empresas – com destaque para o setor petrolífero e as corporações italianas e inglesas”. Ou seja, para o PCB o ditador líbio abriu o país às multinacionais com medo de ser invadido pelos EUA.
Apesar de criticar a repressão contra o povo líbio, o PCB, assim como o PCdoB, acusa os manifestantes de serem financiados pela CIA. O editorial do Vermelho afirma que o levante é um complô orquestrado entre setores pró-imperialistas e outros saudosos da antiga monarquia, apresentando como “prova” disso as bandeiras erguidas pelos manifestantes, dos tempos do rei Idris, deposto por Kadafi. Outra evidência seria a luta armada, em contraste com as “legítimas” mobilizações de massas na Tunísia e no Egito, por exemplo.
Argumentos falaciosos
Os argumentos desfilados pelos stalinistas para justificarem seu apoio ao ditador Kadafi são tão frágeis quanto falaciosos. Vale lembrar que quem determinou a forma de guerra civil para a luta no país não foram os manifestantes, mas a própria ditadura. Kadafi não hesitou em reprimir violentamente as mobilizações e mandar bombardear a oposição. Se ainda existe luta hoje no país é porque a oposição pegou em armas para responder ao regime e pela deserção de grande parte do Exército líbio. Caso contrário, os rebeldes já teriam sido exterminados.
A bandeira hasteada pelos opositores tampouco reivindica a volta da monarquia. A bandeira com as faixas vermelha, negra e verde, com a meia lua e a estrela, é o símbolo da independência do país, conquistada em 1951. Ela foi substituída por Kadafi em 1977 pela bandeira totalmente verde, a cor do Islã. Os manifestantes também usam a antiga bandeira apenas com as faixas, sem a meia lua e a estrela, que representariam o clã do rei Idris.
Já a suposta manipulação dos manifestantes pelo imperialismo foi usada pelo ditador tunisiano Ben Ali e seu colega egípcio Hosni Mubarak. Quando se vêem acuados, os ditadores tratam de recorrer ao sentimento antiimperialista das massas árabes, acusando seus opositores de estarem aliados às potências ocidentais. De tão hipócrita, o discurso foi completamente desmoralizado, já que esses mesmos ditadores, de Ben Ali a Kadafi, estiveram ao lado do imperialismo até o fim.
Recentemente, o filho do ditador, Saif al Islam, chegou a declarar à imprensa internacional que a Líbia financiou a última campanha presidencial do atual mandatário francês, Nicolas Sarkozy. “Fomos nós que financiamos sua campanha. Temos todos os detalhes e estamos prontos para revelá-los”, disse à rede de TV Euronews. Ou seja, as ligações entre o regime da Líbia e o imperialismo europeu extrapolavam os investimentos e acordos para a exploração do país.
Por outro lado, no início da guerra civil, manifestações no centro da oposição, Bengasi, rechaçaram qualquer tipo de intervenção estrangeira. No que se transformou uma gafe internacional, soldados de elite britânicos, que estavam clandestinos na Líbia, foram detidos pelos rebeldes e expulsos do país. Só quando a oposição começou a ser esmagada pelas milícias de Kadafi é que um setor da oposição reivindicou a imposição de uma zona de exclusão aérea.
Os combatentes rebeldes, por outro lado, estão longe de serem os mercenários armados e financiados pelo imperialismo que afirmam a esquerda pró-Kadafi. São antes jovens e trabalhadores que, de forma heróica, se armam improvisadamente com facas e, se muito, com velhos fuzis kalashnikov, contra pesada e moderna artilharia do ditador.
O discurso do tirano nos auges dos protestos contra seu governo tentava justamente convencer os EUA da conveniência de se manter no poder. Kadafi tentou se mostrar como um porto seguro contra o avanço da Al Qaeda e até contra a imigração africana para a Europa.
Imperialismo e a esquerda
Se a oposição ao ditador líbio não é pró-imperialista como acusa parte da esquerda, o que motivaria as ameaças de intervenção militar no país? Para os EUA e a Europa, parece inaceitável uma situação de instabilidade em uma região tão rica em petróleo. Mais inaceitável ainda a ascensão de um governo contrário à orientação pró-imperialista que a atual ditadura protagonizou nos últimos 10 anos.
Isso significa que os EUA e as potências europeias vão fazer o que o governo Obama fez no Egito, ou seja, tentar articular uma transição a um governo confiável aos seus interesses. As últimas movimentações mostram que, para isso, todas as cartas estão colocadas sobre a mesa, inclusive a intervenção militar.
A esquerda de conjunto tem como obrigação se opor com todas as forças a qualquer intervenção imperialista na Líbia. Mas isso não é possível apoiando um ditador sanguinário, sustentado até o último momento pelos mesmos países que agora ameaçam intervir, como faz parte da esquerda utilizando como pretexto falsificações típicas do stalinismo. Setores que, na prática, apóiam o brutal massacre de Kadafi, que no mundo árabe só tem paralelo à política genocida de Israel contra os palestinos.
Nos próximos dias o representante máximo do imperialismo, Barack Obama, estará no Brasil. O PSTU vai aproveitar a ocasião para exigir que o imperialismo tire as mãos da Líbia, ao mesmo tempo em que prestará total solidariedade ao povo árabe que se levanta contra a ditadura Kadafi. Trabalhadores e jovens que enfrentam de peito aberto o ditador que tem a seu lado as milícias paramilitares, os mercenários estrangeiros e, lamentavelmente, até mesmo parte da esquerda.
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