Dialética radical
Os últimos números reafirmam nossa profunda dependência do exterior. Está meio demodé tocar no assunto, nestes tempos dialéticos, quando a moda é ser ao mesmo tempo você e o seu contrário
Está passando quase despercebido o crescimento do deficit em transações correntes do balanço de pagamentos. Em resumo, o saldo da balança comercial não vem sendo suficiente para compensar as maciças remessas de lucros e dividendos. A relativa tranquilidade nasce de dois vetores: as reservas cambiais e a captação de investimentos vindos do exterior.
Ou seja, a economia brasileira resiste também porque continua escancarada aos fluxos globais do capital, e assim o país vai se financiando. Não deixa de ser irônico que aconteça sob um governo do PT, mas essa observação já anda meio batida, reconheço (comparar o que o PT dizia antes de chegar ao governo e o que fez depois).
Sempre é útil, entretanto, registrar que enquanto Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e entourage batem dia sim outro também na tecla do “fim da dependência”, nunca antes na história deste país estivemos tão dependentes do dinheiro vindo de fora. Mas como ele existe e está disponível para um governo tão “market friendly” quanto o nosso, a coisa passa disfarçada. O governo fala grosso. E a oposição se faz de surda. Que não é besta.
Lula adora repetir, e cada vez mais, o quanto não dependemos agora do Fundo Monetário Internacional, e isso tem um efeito simbólico conhecido. Deve ter também algum efeito eleitoral. Mas o presidente não conta a história toda. Deixa de dizer que passamos a depender de um dinheiro muito mais caro, o dinheiro que vem para cá atrás das nossas obesas taxas de juros e, num grau menor, das gordurosas margens.
Haverá negócio mais bacana no planeta do que ser dono de um banco ou de uma companhia telefônica no Brasil?
O faz de conta está mesmo com tudo. Pena é que alguns menos treinados na mistificação escorreguem de vez em quando. O chanceler Celso Amorim protagonizou uma página espantosa na trajetória da diplomacia pátria, ao dizer, no início deste mês, na Câmara dos Deputados, que o Brasil pôde votar no Conselho de Segurança da ONU contra as sanções ao Irã porque não deve ao FMI.
Ou seja, segundo Amorim, quem votou a favor das sanções fê-lo por ser devedor.
Restou porém fora da lógica do ministro um detalhe: o maior credor do mundo, a China, votou favoravelmente.
É o caso de especular. Será que Barack Obama ameaçou Pequim com um calote dos títulos do Tesouro americano caso os chineses não acompanhassem o voto americano contra o Irã? A julgar pelo raciocínio de Amorim, quem sabe?
Ironias à parte, os últimos números reafirmam mesmo nossa profunda dependência do exterior. Está meio démodé tocar no assunto, nestes tempos de dialética radical, quando a moda é ser ao mesmo tempo você e o seu contrário. Mas é fato.
E por que permanecemos atrelados ao nosso roteiro tradicional? Porque continuamos incapazes de gerar a poupança necessária para sustentar nosso consumo e, ao mesmo tempo, nossas necessidades de investimento.
Somos um Estados Unidos em escala reduzida. No que eles têm de pior. No vício de viver do dinheiro e do trabalho alheios. Na cultura do esbanjamento. A diferença é que eles ainda podem, por enquanto, imprimir a moeda mundial. Nós não.
Lula e Dilma fizeram o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Do ângulo simbólico foi ótimo. Havia tempo que a agenda do crescimento não era colocada em primeiro lugar.
Infelizmente, porém, na rubrica dos recursos orçamentários para investimento ou na taxa de poupança não se registrou neste governo evolução significativa em relação ao anterior. O que deixou de ser drenado em juros virou custeio. Bom de um lado, pelos repasses aos mais pobres, mas péssimo para quem acredita na essencialidade da poupança nacional e do investimento público para crescer de maneira sustentada.
Nos últimos dias os analistas respiram aliviados, pois parece que o Banco Central tem sido eficaz ao impedir a aceleração do crescimento. Lula festeja, pois parece que nosso “PIB potencial” (o que não arrebenta a inflação) anda um pouquinho maior em relação ao do governo anterior.
Como se sabe, vivemos uma era de profundas transformações.
Coluna ("Nas entrelinhas") publicada nesta quarta (28) no Correio Braziliense.
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