Recebi da lista de email do meu amigo pesquidor do CEPES-UFU, Henrique Barros. Esse artigo de Antonio Prado, fala da incapacidade dos Fed, banco central dos EUA, diante das fatores gerados de crises financeiras.
Memórias de crises e o colapso do mercado autorregulado
Antonio Prado*
Os economistas que passaram anos calculando os custos da ineficiência do Estado regulado, hoje defendem a estatização temporária.
Em 1907, sob os escombros do terremoto do ano anterior em São Francisco, estourou uma crise financeira nos EUA, que rapidamente alastrou-se pelos mercados europeus, com a mesma fúria que os incêndios destruíam bairro após bairro da cidade americana. Era a natureza revelando as entranhas de mais uma das manias especulativas que de forma recorrente varrem as economias capitalistas.
Aquela também foi uma bolha caracterizada por alta alavancagem dos especuladores. Com a queda abrupta do preço dos ativos em Nova York, afetados pelo terremoto seguido de incêndios e pela elevada indenização devida pelas seguradoras inglesas, o crédito apertou e o pânico espalhou-se. Não havia Federal Reserve, criado em 1913, para atuar como emprestador de última instância e regulador do sistema financeiro. A crise foi devastadora.
A necessidade de regulação do mercado financeiro, apesar das resistências liberais de sempre, ficou demonstrada de forma cabal. A liberdade excessiva nos mercados gerava um custo muito superior do que seu benefício presumido. E o avanço da organização política e sindical dos trabalhadores implicava uma reação cada vez mais forte frente aos efeitos depressivos das crises de liquidação da riqueza capitalista. Desemprego em massa e quedas nos salários nominais tornavam-se socialmente inaceitáveis.
Mas, a memória dos flagelos das crises financeiras é curta, como nos revela Galbraith e já nos anos 20 do século passado a euforia retorna a galope, deixando a prudência comendo poeira. O fascínio pelo enriquecimento fácil captura mesmo os puritanos, já cansados da árdua labuta diária. Ponzi vende pirâmides financeiras e terrenos nos pântanos da Flórida, como negócios de primeira. A nova economia acende os olhos dos visionários, que imaginam transformações mágicas de toda a sociedade. Não se surpreenda o leitor com a semelhança desta narrativa com os anos 1990 e 2000. Nada é novidade neste campo, nem os gênios das finanças.
A pouca experiência do Fed como regulador do sistema e sua mentalidade impregnada ainda pelos ecos do laissez-faire não contribuíram muito para mitigar o novo desastre que se armava no entre-guerras. A revolução produtiva do fordismo, a rápida evolução do sistema de crédito e as inovações nas comunicações e transportes atraíram capitais de forma crescente para as bolsas de valores, que absorviam IPOs de todos os tipos de empresas, com promessas de lucros tão estapafúrdias como a crescente perda de aversão aos riscos.
O crash de 1929 expõe o delírio de Aguirre. Ações dobravam de preço em poucos meses e emissões de milhões de dólares, de empreendimentos insondáveis, eram vendidas em horas. Os bancos e corretoras financiavam as compras alavancadas, garantidos pela prosperidade geral dos negócios. Já havia uma desconfiança latente no ar e algumas liquidações de ativos foram realizadas, mas a bolsa voltava a reagir. Os tremores repetiram-se e os surtos de valorização também. Em outubro daquele ano, o mundo veio abaixo.
A Grande Depressão durou até os anos da II Guerra, quando o esforço de gastos militares crescentes reativou a produção americana e gerou empregos aos milhões. Mas esse período mudou as mentalidades dos formuladores de políticas e foi muito criativo em normas de regulação e na gestação de instrumentos de monitoramento estatístico da economia. Em 1929, não era disponível um sistema de contas nacionais apurado e tampouco conhecidos os multiplicadores dos gastos autônomos, revelados por Keynes na Teoria Geral de 1936. A motivação foi a vontade política e o método a tentativa e erro.
O esforço em preservar as regras do jogo do padrão ouro não contribuiu para a solução do problema. Tampouco, a aversão em utilizar diretamente a intervenção do Estado para gerar demanda na economia. A ideia de que a política monetária seria suficiente como estímulo econômico foi demolida pelo fenômeno, hoje bem conhecido, da armadilha da liquidez.
No pânico, quando a confiança no sistema de crédito colapsa, a demanda por moeda sobe exponencialmente, devido a uma preferência geral pela liquidez. E quanto mais avança a crise de liquidação e a consequente deflação dos ativos financeiros e também dos reprodutíveis, mais entesouramento faz sentido para os participantes do sistema econômico. O aumento da oferta de moeda, mesmo que necessária e urgente, resulta nestas condições em empoçamento de liquidez.
Navegar contra o pensamento convencional não é fácil. No entanto, F. D. Roosevelt, em 1933, recebeu um mandato para fazê-lo. Assumiu riscos políticos e atuou sem uma referência teórica estruturada. Tateou no escuro. Abandonou o padrão ouro e com isso começou a recuperação dos preços agrícolas. Reviu a regulação dos bancos, separando bancos comerciais e de investimentos, e mesmo relutante, aceitou o FDIC para garantir os depósitos bancários e deu ao Fed poder para regular taxas de juros nas instituições de poupança, dispositivos previstos na Lei Glass-Steagall. Em 1934, foi criado a SEC (Securities and Exchange Comission), uma CVM americana.
O processo de saída da Grande Depressão foi turbulento e demorado. O uso do gasto público para estimular a economia foi controverso e sofreu reveses e somente mostrou total eficácia já no esforço de guerra. O segundo termo de Roosevelt já contava com keynesianos e seus instrumentos de intervenção econômica, com fundamentação teórica e observação empírica. O modelo de desenvolvimento que resultou deste período foi uma colisão de gastos sociais e militarismo. Em resumo, o gasto público passa a ser central como instrumento de estímulo ao desenvolvimento econômico e social.
Se no início do Século XX a participação estatal nas economias rondava de 4% a 6% do PIB, no pós segunda-guerra ela salta para marcas superiores a 25%, chegando, em alguns casos, como nos países escandinavos, a mais de 40%. Esse gasto expressa mudanças estruturais profundas nas economias e não apenas uma configuração política conjuntural. A transformação de uma sociedade rural em urbana exige gastos sociais e em bens públicos crescentes. E a manutenção da hegemonia em um sistema interestatal implica gastos militares da nação hegemônica e de apoio econômico aos seus aliados e protetorados.
O Estado mínimo foi uma peça de propaganda das forças retrógradas que conquistaram o poder após o esgotamento do padrão de acumulação keynesiano, nos anos 1970. A questão real não era reduzir a participação do Estado para os níveis do Século XIX, pois os conservadores sempre defenderam o custo da máquina de guerra que protege seus interesses. Mas, sim, livrar o capital das amarras que impediam uma maior submissão da força de trabalho e também as aventuras financeiras típicas dos anos 20.
Os economistas que passaram anos calculando os custos da ineficiência do Estado regulado, hoje defendem a estatização temporária do sistema bancário americano, como medida extrema. Mas alertam, 'só deve ser adotada a cada século'. E melhor seria se isso fosse feito logo.
A conta trilionária do colapso do mercado autorregulado realmente está causando estupor.
(*)Antonio Prado é doutor em política econômica pelo IE-Unicamp, professor do Departamento de Economia da PUC-SP (licenciado). Atualmente é chefe do departamento de Relações com o governo na presidência do BNDES e docente no IRBr do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
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