quarta-feira, 17 de maio de 2017

Desruralização no Rio de Janeiro

Desafios e perspectivas às políticas públicas de promoção à Agricultura Familiar e aos Empreendimentos Rurais Familiares no território fluminense: um novo olhar

por Almir Cezar Filho

"O Rio de Janeiro não tem zona rural. Não tem agricultura." É nítido e muito comentado a desruralização do território fluminense. Em muito essa desruralização é pautada pela desagriculturalização. Uma desagriculturalização do latifúndio. Contudo, resta à agricultura familiar não a vitória, mas o abandono. Passados quase duas décadas de políticas específicas aos agricultores familiares o cenário regional pouco mudou. Diante da desruralização e da desagriculturalização típica do Rio de Janeiro é preciso um novo olhar, uma nova abordagem. Se não houver políticas públicas que fomentem a complementação da cadeia produtiva, por meio do estímulo aos empreendimentos familiares rurais, especialmente as agroindústrias familiares, quaisquer ações governamentais de promoção regional à agricultura seguiram com eficácia limitada.

O latifúndio no Rio de Janeiro estava pautado por culturas tradicionais no Brasil (café, cana-de-açúcar, etc.) que perderam dinamismo frente a outras culturas de exportação (soja, milho, etc.), tanto pela concorrência nacional de outras regiões produtivas (café do Paraná, do Espírito Santo, açúcar do interior de São Paulo, suínos e avicultura de Santa Catarina, etc.), como também por não ter acompanhado a “Revolução Verde”, o processo de modernização tecnológica, comercial e de gestão que passou a agricultura brasileira desde a década de 1970 e acelerada na década de 1990. Houve assim um encolhimento da velha plantation, de maneira geral, e especialmente agravada no Rio de Janeiro.

O êxodo rural e a proximidade da mancha urbana, pela ocupação territorial consolidada e antiga do próprio estado, em expansão acelerada pelo próprio e centenário êxodo rural, comprimiram as zonas rurais, comprometendo ainda mais a agricultura na região. Área agricultáveis principalmente de grandes fazendas, acabaram repassadas a projetos imobiliários e a distritos industriais.

Sobraram milhares de agricultores familiares, espremidos em novas zonas urbanas, suburbanas e rurbanas. Sem projeto político para setor econômica da agricultura. Inseridos centenária e marginalmente na cadeia produtiva, agora esvaziada com a saída de grande parte do latifúndio do circuito de negócio. Por fim, os atores da cauda da própria cadeia produtiva ligados a comercialização, beneficiamento/processamento, logística e armazenagem - já historicamente débeis na região, tanto pelo perfil econômico local, tanto como pela maturidade, como pela atrofia por vincularem-se a uma época anterior da economia brasileira - definham-se cada vez mais. Em um agronegócio.

Sem escala (situação que seria resolvida pelo agrupamento e associativismo) e por uma formatação voltada a comprar do latifúndio, a cadeia produtiva não absorve a oferta da remanescente agricultura familiar. Por outro lado, os empreendimentos familiares e as micro e pequenas agroindústrias também atrofiadas, como no restante do país, não servem de alternativa. 

Assim a agricultura remanescente vai encontrar nos monopsônios agroindústrias fora do estado mercado, mesmo que depois seus produtos já processados voltem ao mercado fluminense para consumo final.

Paralelo ainda há o fato, manifestado pelos dados, que as propriedades rurais familiares são pequenas ou minifúndios com baixa extensão. Após séculos de predomínio na região das plantations, propriedades de menor porte são em via regra debilitadas e baixa extensão. Muitos são derivados de antigos meeiros ou funcionários das grandes fazendas. Com esse tipo de porte se viabilizariam produtivamente apenas no caso de uma agropecuária muito intensiva ou com alta tecnologia, que empregaria um aporte de capital considerado e largo emprego da extensão rural. Um padrão que a agricultura brasileira mesmo atual não está familiarizada.

O latifúndio remanescente busca no turismo rural ou no uso pecuário de baixíssima intensidade apenas como forma de configurar para fins legais índices de produtividade com comprovariam a finalidade social do uso da terra, evitando ser atividade pelas ações institucionais de reforma agrária.
Diante desse cenário, a agricultura familiar, apesar de preponderante na agricultura fluminense de conjunto, não consegue se viabilizar enquanto negócio e fonte de geração de renda e emprego, contribuindo ainda mais para que os pequenos proprietários abandonarem a agricultura. Alarga assim o problema do êxodo e da sucessão rural, ou convertendo as propriedades em meros domicílios de bairros periféricos, ou em sítios de lazer, ou vendidos às incorporadoras imobiliárias.

Portanto, ao contrário de outros estados do centro-sul brasileiro, a agricultura familiar fluminense não se manifesta como moderna, como potencial a uma classe média rural, empreendedora, alternativa ao agronegócio latifundista, mas como resquício, como resíduo do antigo agrário, ou potência a um outro uso para sua terra. Em algumas sub-regiões ainda opera apenas por inércia. Em outras, como fornecedora de mão-de-obra pluriativa ao turismo rural ou a outras atividades econômicas.

Em outros casos, como fornecedora de gêneros hortifrutigranjeiros, especialmente nas zonas rurais que margeiam a região metropolitana da Cidade do Rio de Janeiro. Como esses são gêneros com baixo processamento e por questões logísticas devem ser produzidas próximas ao centro consumidor, e por questões tecnoprodutivas mais favoráveis à pequena produção, os estabelecimentos agropecuários familiares ganham justamente preponderância.

Em tantos outros casos, a pluriatividade das familiares da agricultura familiar, devido inclusive ao pequeno porte da propriedade e da sua produtividade limitada, é canalizada para constituição de empreendimentos rurais familiares. Muitas desses essencialmente rurais, isto é, senão produtivos agrícolas (agropecuários, florestais e aquícolas), mas voltados ao artesanato rural, à comercialização de produtos agropecuários, ou ao beneficiamento e processamento artesanal, rudimentar ou microagroindustrial da produção de sua propriedade ou adquirida de terceiros. Sem, porém, que o empreendimento se desenvolva mais por múltiplas razões econômicas, como a infraestrutura da localidade, apoio governamental, crédito, burocracia, etc., algumas das quais também afetam a produção agrícola.

Com o advento da popularidade comercial dos produtos agroalimentícios orgânicos, agroecológicos e de perfil gourmet ganha-se alguma alternativa econômicas para além disso. Contudo, os agricultores familiares seguem vitimadas pelos problemas anteriores, como a necessidade de intensidade de capitais, canais comerciais, limitada extensão da propriedade, e principalmente da compressão e concorrência da expansão da mancha urbana.

Sobre a questão da concorrência com a expansão mancha urbana, as áreas de dessa agricultura alternativa e o cinturão de hortifrútis, tal como nas demais sub-regiões rurais, passa pelo problema da prioridade política e de ordenamento territorial dos governos municipais e estadual para com as áreas urbanas. 

À medida que o marco jurídico brasileiro concedeu a mera discricionariedade legal dos municípios a delimitação do território entre zonas urbanas e rurais, sem definir critérios técnicos claros e/ou participativos, deu brechas que as administrações públicas dessem preferência a demarcar amplas faixas do seu território como urbanas, desconsiderando os laços comunitários, a cadeia produtiva, o perfil geográfico, baixa densidade demográfica e a vocação econômica das respectivas áreas.

Temos assim bairros, distritos e mesmo municípios inteiros com forte perfil rural, mas classificado e tratado pela governança pública como urbano. As políticas públicas e serviços essenciais ao fomento da agricultura e ao desenvolvimento rural sustentável e solidário cada dia se ausentam. As diferenças de tratamento sobre a questão da destinação de resíduos da produção agrícola, a logística, etc., contribuem a um empobrecimento ainda maior dos agricultores familiares. Contribuído com o fator da compressão de suas propriedades dia após dia circundado por habitações de perfil exclusivamente urbano.

Por essas razões, surge assim o caso de milhares de agricultores familiares urbanos. Negligenciados nas ações governamentais para com a Agricultura justamente por esse perfil. Porém sem desfrutar dos benefícios da urbanização promovido pela municipalidade e pelo governo do Estado.

Tem-se então uma desruralização relativa, em que parte da população rural é demarcada artificialmente como urbana ou empurrada a essa condição, ou emigrada para áreas urbanas, não pela dinâmica socioeconômica, mas pela promoção do Estado. E mesmo o rural restante não pode por si mesmo desenvolver vitalidade socioprodutiva pela agricultura, sobrevive por inércia, senão comprimida pelas áreas urbanas de seu entorno. Ou mesmo quando há dinamismo, há porque mimetiza a dinâmica urbana ou por se enquadra dependente do circuito produtivo urbana.

Assim, não surpreende que apesar da pequena população rural (para o Censo 2010, 5% do total), o número de estabelecimentos agropecuários familiares que se beneficiam de políticas públicas específicas seja relativamente reduzido. O número de contratos anuais de crédito rural do PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) no estado, e mesmo de agricultores familiares com DAP (Declaração de Aptidão ao PRONAF) são pequenos, se comparados.

Por sua vez, fica explicável porque vários municípios pequenos e eminentemente rural não tenham nem mesmo uma secretaria de Agricultura. Sem a agricultura patronal e latifundista que costuma liderar as entidades do setor agrícola, mas diante de uma agricultura familiar frágil, e sem projeto estratégico próprio, não há possibilidade de elaboração de Política para o setor, muito menos de política pública.

As políticas públicas agrícolas, agrárias e de desenvolvimento rural convencionais não têm eficácia justamente devido a esse perfil. E as ações estatais de promoção da agricultura familiar passaram ainda por um diagnóstico equivocado. 

Por exemplo, a extensão rural à propriedade pequeno porte, principalmente minifúndio,  implica não apenas o acesso à tecnologia e ao conhecimento, mas de capitais a aquisição de infraestrutura produtiva necessários ao modelo de produção aplicado pela assistência técnica. Capitais são necessários acesso ao sistema financeiro em montante e em taxas de juros condizentes com o porte do tomador de crédito. Mesmo o Pronaf em suas várias linhas de créditos talvez nãos sejam suficiente.

E mesmo a assistência técnica. Sendo minifúndios implica recorrer a extensão rural gratuita de larga escala, que nem sempre o Poder Público consegue oferecer, especialmente diante a competição com outras rubricas no orçamento público exíguo, como saúde, educação, etc.
Algumas omissões são as mais graves.

A primeira é a ausência da reforma agrária, que diante desse padrão agrário atrapalha ainda mais o desenvolvimento agrícola fluminense. Uma reforma agrária efetuaria o reordenamento fundiário, que além de ajudasse a distribuir terras pelo fracionamento dos latifúndios (reduzindo sua exposição à especulação imobiliária), que tanto permitisse ampliar a extensão das pequenas propriedades, como ampliasse o volume de pequenos, compartilhada do associativismo que organizaria essa oferta de produtos, daria escala a produção da agricultura familiar.

A segunda omissão é a negligência de completar a cadeia produtiva e sem ser pela via dos monopsônios. Ao longo das últimas décadas várias marcas domésticas de agroalimentares desapareceram na economia fluminense. A alternativa dada a cabo pelos governos foi a atração de grandes empresas de fora, que é nada resolveram. Plantas de processamento locais foram compradas por elas para depois serem fechadas, para a produção ser efetuadas por plantas em estados vizinhos, com preços extremamente rebaixados aos produtores fluminenses.

Enquanto isso, acabou esquecido a produção artesanal ou por microagroindústrias, ou o beneficiamento próprio no estabelecimento agropecuário ou por cooperativas. Agricultores familiares e empreendedores rurais familiares seguem com dificuldades diante das exigências legais, falta de crédito e de canais de negócios. Centenas de milhares de agricultores familiares fluminenses são privados de fornecer para empreendimentos familiares que beneficiariam, processariam, distribuiriam e comercializariam.

Por fim, a terceira ausência no Rio de Janeiro, é clara carência de unidades locais de SUASA (Sistema Unificado de Atenção e Sanidade Agropecuária), instalados por municípios ou consórcio intermunicipais. Além do registro, inspeção e fiscalização da sanidade agroalimentar, pudessem realizar ações de assistência técnica e extensão rural aos estabelecimentos agropecuários e empreendimentos rurais. Alguns poderiam ainda até realizar processamento, armazenagem e distribuição, tal como são poucos mercados públicos e municipais e feiras de produtores.

As políticas públicas para o desenvolvimento rural e a promoção da agricultura no Rio de Janeiro devem portanto levar em conta que o fenômeno fluminense da desruralização é pautada pela desagriculturalização, particularmente do latifúndio e por uma compressão da mancha urbana sobre a zona rural, em muitos casos apoiada pelas autoridades. Restou à agricultura familiar não a vitória como padrão socioprodutivo da agricultura fluminense, mas o abandono.

Porém, as políticas públicas voltadas ao fomento do segmento familiar da agricultura, não podem como visto ser calcadas, como em outras regiões brasileiras apenas da melhoria técnica e nas fontes de crédito ao produtor. Se não houver políticas públicas que promovam a complementação da cadeia produtiva e por meio principalmente do fomento dos empreendimentos familiares rurais, especialmente de processamento, armazenagem e distribuição, as demais ações governamentais de promoção à agricultura regional seguirão fadadas à baixa eficácia e eficiência.

REFERÊNCIA
  • Alentejano, Paulo Roberto. “Um breve balanço da agricultura e da política agrária no Estado do Rio de Janeiro nas últimas décadas”. Terra Livre: A produção do espaço brasileiro: a abstração real. São Paulo, v. 1, n. 36, p.25-42, 2011.
  • Alentejano, Paulo. Reforma agrária, território e desenvolvimento no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: CPDA/UFRRJ, 2003.
  • Delgado, Guilherme Costa. Bergamasco, Sonia Maria Pessoa Pereira (orgs.). Agricultura familiar brasileira: desafios e perspectivas de futuro. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2017.
  • França, Caio Galvão de. O censo agropecuário 2006 e agricultura familiar no Brasil. Brasília: MDA, 2009.
  • Gláucio, José Marafon. Miguel Ângelo Ribeiro. Agricultura familiar, pluriatividade e turismo rural: reflexões a partir do território fluminense. Revista Rio de Janeiro, n. 18-19, jan.-dez. 2006.
  • IBGE. Censo Agropecuário 1970/2006.
  • IBGE. Pesquisa Agrícola Municipal

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