quinta-feira, 20 de maio de 2010

O sistema circulatório da crise mundial - texto para reflexão

de Rodrigo Souza


Apresento uma análise a respeito da aguda crise econômico-financeira pela qual nossos Sistema Mundial Moderno atravessa neste momento - não passou, e que atingiu o Brasil de vez no último trimestre de 2008. Estive a observar as diferentes reações analíticas dos intelectuais estereoscopicamente, podendo ver alguns estereótipos.

De fato, é lamentável como retóricas frágeis e sem autocrítica lógica são o que predominam e proliferam. Com grossas verborragias preenchendo as lacunas e dando volume.

E ainda, existem nitidamente dois perfis caricatos antagônicos, à esquerda e à direita.

Existem aqueles que não disfarçam a comemoração: Marx volta às prateleiras, estaria voltando “à moda”, o capitalismo está ruindo, etc. É como se há muito estivessem torcendo para uma débâcle assim para novamente
poderem adentrar o debate público com algo relevante a falar. Contudo, não encontramos um aporte consistente sobre o quê de fato se pode dizer pelo instrumental marxista sobre o que estamos vivendo. Nem mesmo se pode estabelecer um nexo entre os constructos marxistas e o caráter da crise financeira, a não ser algumas imprecações e jogos conotativos e de constrangimentos semânticos. Não enxergamos nada que remeta ao volume sobre “Circulação” de O Capital, a não ser uma procedente menção ao que muitos marxistas se referiam no despontar da década de 70 como “capital fictício”, e que era ingenuamente satirizado pelos economistas neoclássicos. E o pior: não conseguem apontam minimamente qualquer indício de “superação do capitalismo” para um modo de produção superior, se é que o que está em jogo é a fidelidade à ortodoxia de Marx...

Existe o extremo oposto igualmente patético. Aqueles que não querem dar o braço a torcer. Para não renegarem os chavões dos anos 90 os quais mais de uma vez pude apontar como estão superados; dizem que o problema com a crise não decorre destes preceitos da “Nova Economia”, mas pelo fato de que se criara alguns constrangimentos para ela, não a deixando fluir inexoravelmente de forma suficiente. Haviam muitas regras para as operações financeiras, e os “agentes” tiveram que buscar alternativas criativas... E que não se teve fé suficiente nos momentos de fraquejamento...

Como se uma pessoa gripada deixasse a gripe ir avançando de estágio, se expondo a choques térmicos, poeira, etc., e quando os sintomas fossem dando o contorno de uma moléstia crônica, a pessoa tomasse uma colher de
mel, e não adiantando, alguém dissesse: “viu, foi combater a gripe, a culpa foi do mel”.

Não queremos aqui darmos uma de um esquizóide como o Zaratustra do livro de Nietzsche, criticando as ilusões ingênuas do mundo depois de descer da montanha, pregando que não existe verdade. Por isso, daremos a cara a tapa não com uma postura similar às precoces que vemos por aí, apontando temerariamente pensadores e pensamentos que “dissecariam” o momento, mas ferramentas, insigths, instrumentos e linhas panorâmicas que nos permitam situarmo-nos, com comedimento, e em linhas gerais.

Retomo alguns pontos, dos fatores-chave do pensamento do historiador Fernand Braudel, que contemplam a minha percepção sobre a conjuntura. Novamente retomo nossa advertência, esclarecendo que não ajo aqui como
propondo “Braudel é a chave para explicar a crise”. De fato, busco na análise de economia-mundo deste cientista social um aporte para nos possibilitar um ângulo propício a começarmos a delinear as estruturas,
fenômenos subjacentes e tendências deste momento.

Retomo do texto

“Um ponto iluminador importante aqui é que a ênfase de Braudel é que a realidade social processa-se num escopo de tempo denominado por ele de longue durée, ou ‘mais ou menos’ traduzido por ‘longa duração’, um tempo estrutural, de extensão finita mas não forçadamente delimitada; e o conjoncture, ou conjuntural, novamente ‘mais ou menos traduzido’, com ciclos internos de extensão média.”

Assim, ele busca ter uma visão ao mesmo tempo macroestrutural, ao mesmo tempo temporal, histórica, evolucionária. Entendendo como diferentes formas, organizações, coexistem e como essa própria coexistência varia dinamicamente no tempo e com mudanças estruturais.

“O erro seria imaginar o capitalismo como um desenvolvimento por fases em saltos sucessivos: capitalismo mercantil, capitalismo industrial, capitalismo financeiro. ... O leque mercantil, industrial, bancário, isto
é, a coexistência de várias formas de capitalismo, abre-se já em Florença no século XIII, em Amsterdam no século XVII, em Londes já antes do século XVIII.



No princípio do século XIX, o maquinismo decerto fez da produção industrial um setor de grande lucro e o capitalismo aderiu, portanto, maciçamente. Mas não ficará estacionado aí....”



in: Civilização Material, História e Capitalismo.

Nessa perspectiva de análise, Braudel debruçou-se sobre as dinâmicas econômicas das forças de mercado e as forças de acumulação de capital. Ele investigara fenômenos que constituiam-se tendências, a partir de paralelos
e nexos analisados nas cidades-estado italianas do período renascentista, após nas Províncias Unidas, onde hoje são os Países Baixos, apontava que prosseguindo períodos de intensa produção e conseguinte acumulação de
capital, advinha uma grande competição pelas fontes de matérias-primas, entrepostos comerciais e daí pelo próprio capital, além da diminuição da margem de lucro média; os grandes capitalistas buscavam fontes seguras
através do setor financeiro. A competição se acirrando trás insegurança pelas fontes de lucro e nivela-o também.


Escreve em Dinâmica do Capitalismo:



“No século XVII, Amsterdam dominará brilhantemente, por sua vez, os circuitos do crédito europeu e a experiência se saldará, também desta vez, por um fracasso no século seguinte. Só no século XIX, depois de 1830-1860, o capitalismo financeiro verá seus esforços coroados de êxito, quando a banca se apossará de tudo, da indústria e depois da mercadoria, e a economia em geral terá adquirido suficiente vigor para sustentar
definitivamente essa construção.”



(...) “Não creio que Joseph Schumpeter tenha razão em fazer do empresário o 'deus ex machina'. Acredito obstinadamente que é o movimento de conjunto o fator determinante e que todo o capitalismo é comensurável, em primeiro lugar, com as economias que lhe são subjacentes.”

Contudo, realmente a fonte de lucros se dá no setor produtivo, que é o que emana das forças produtivas conjuntas que operam na esfera das trocas. Ela “paira” nesta esfera financeira a espera de novas oportunidades de inversões produtivas, onde muitos pesquisadores destacaram a importância da inovação tecnológica como fonte de aberturas de novas frentes para estas inversões. Ao mesmo tempo que se promove a inversão anterior para a esfera financeira, os capitalistas permanecem atentos a estas novas frentes, pois muitas vezes os pioneiros a descobri-las e investir conseguirão monopólios relativos por um tempo suficiente para abranger
mais frentes, consolidar ou até mesmo possibilitar estar no controle de frentes subseqüentes.

“Os capitais investidos, fáceis de obter através de empréstimos, foram no início de escasso volume. Não foi a riqueza adquirida, não foi Londres e seu capitalismo mercantil e financeiro, quem provocou a espantosa mutação.
Londres só obterá o controle da indústria depois da década de 1830. Assim se vê admiravelmente, e com base num vasto exemplo, que é a força, a vida da economia de mercado e mesmo da economia de base, da pequena indústria inovadora e, não menos, do funcionamento global da produção e das trocas, que têm a responsabilidade pelo desenvolvimento do que em breve será chamado de capitalismo industrial. Este só pôde crescer, adquirir forma e força, na medida do avanço da economia subjacente.”

(...)“Só no século XIX, depois de 1830-1860, o capitalismo financeiro verá seus esforços coroados de êxito, quando a banca se apossará de tudo, da indústria e depois da mercadoria, e a economia em geral terá adquirido
suficiente vigor para sustentar definitivamente essa construção.”

Entretanto, havia épocas em que os canais para as inversões produtivas se estreitavam. Capitalistas ávidos por realizarem-nas permaneciam por um tempo maior com seu capital na esfera das finanças pura, e nela se
acumulava mais capital além do que se possibilitavam esses canais. Essa esfera financeira perdia a sintonia com a produtiva. Sinais econômicos como os juros, relações entre moedas e destas com seus lastros passam a
ser cada vez menos correspondentes com a atividade concreta da economia real. Ele usou uma metáfora para sinalizar estes períodos, como “outonos” do capitalismo.

Não é difícil constatar estes sintomas na economia mundial a partir da metade dos anos 90. Contudo, remetamos ao que foi dito sobre o caráter evolucionário do processo. Ao longo desses séculos, aumentou-se incrivelmente a massa monetária e a complexidade do circuito financeiro.



As inovações tecnológicas também operaram neste sobremaneira. Mecanismos de comunicação foram se aperfeiçoando de forma a possibilitar transações astronômicas em tempo real. Engendraram-se déficits em conta-corrente e reservas monetárias numa escala e magnitude sem precedentes nos Estados-nações.

A esfera financeira passou a contar com instrumentos de geração de lucros extraordinários em seu próprio circuito, de forma retroalimentante, voltado a si mesmo, e minimizou-se essa perda de sintonia. Passou a ser
vista como uma realidade econômica auto-sustentada e orientada para si mesma. Acreditavam sim que isso era uma “Nova Economia”, que iria obrigar a uma nova forma de conceber-se a economia real, em que esta tinha que
aceitar sua nova condição.

Mas existem fatores básicos em qualquer esfera econômica em todos os tempos, dos quais toda essa exuberância irracional não podia e nem pode desvincular-se. Uma delas é a base de confiança. É preciso crer que cada símbolo ou signo monetário corresponda a um lastro real. Que se você quiser trocar qualquer um documento que lhe assegurem que vale algo de concreto no mundo material, ele corresponda. Que se alguém te dá um papel  e diga que com ele você terá tantos quilos de carne, você efetivamente consiga obter. Algo compartilhado e aceito entre outras pessoas. E de qualquer forma, para que isto seja efetivo, precisa reportar-se à economia real, onde se produz, “... acima e não abaixo da vasta superfície dos mercados, ergueram-se hierarquias sociais ativas: falseiam a troca em proveito próprio, fazem vacilar a ordem estabelecida; voluntária e até involuntariamente, criam anomalias, turbulências [...] Foi assim que grupos de atores privilegiados entraram em circuitos e cálculos que a maioria das pessoas ignora”. Capitalismo e Civilização Material.

“Na realidade, tudo e transportado nas costas enormes da vida material: ela incha, tudo avança rapidamente; apropria economia de mercado incha às suas custas num abrir e fechar de olhos, amplia suas ligações.” Dinâmica do Capitalismo.

Obs. A título de explicação, com “vida material” Braudel quer dizer a economia de base, mais condicionada culturalmente e pelos hábitos, pelo cotidiano, inventividade artesanal das pessoas, na vida corriqueira.

E o que descobrimos na crise: o óbvio – que essa desconexão acima retratada não é algo próprio à realidade, não é nem mesmo uma nova realidade, mas um capricho que brinca com a realidade até quando pode; que
a confiança estava baseada em ficção. Foi um sinal vindo do mais básico, da vida material; a inadimplência por parte dos trabalhadores da economia mais rica do planeta no setor imobiliário serviu para acordar que algo de
astrondoso nos inúmeros signos de capital não possuíam lastro correspondente; que o valor é também algo abstrato, mas não se sustenta apenas como abstrato, sem se reportar também ao trabalho humano. Que os
'hedge funds', 'subprimes' e tantos outros instrumentos inventados para rodar aquele circuito sobre si mesmo, não correspondiam ao que prometiam remeter como valor. E que na verdade o mercado não estava “deixado a si
mesmo”, “auto-regulado” : estava concebido num esquema etéreo, pairando sobre seus condicionantes sociais, geográficos e sócio-ecológicos (incluindo meio físicos, energéticos, etc.).

E se espalhou.... o mundo produtivo quis efervescer-se num novo ciclo ascendente...mas o capital era fictício...sem segurança. E ainda assim, permanecia o excesso de liquidez pairando e girando sobre si mesmo como num carrossel que se auto-alimenta. Gostara do jogo...dizia que era uma nova realidade, de homens novos, os “Pais Ricos”...

E o grande conflito neste ponto: sobre as costas de quem se reerguerá uma real “Nova Economia”...

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