André Biancarelli* | Jornal do Brasil
Com a unificação do discurso econômico das candidaturas de oposição, e a competição entre elas para conquistar o chamado “mercado”, tornam-se consensuais nestes círculos algumas ideias e propostas para o início de 2015. As divergências mais estruturais (papel do Estado, inserção externa, distribuição de renda etc.) em relação ao atual governo são até mais importantes, mas o foco aqui é este debate conjuntural.
Diante de uma descrição, comum e terrível, do cenário da economia brasileira,dois argumentos têm sido usados para justificar medidas duras logo no início de uma eventual nova gestão. Nenhum deles é inédito.
O primeiro se assemelha a slogans de auto-ajuda ou de preparadores físicos:no pain, no gain! O ajuste seria doloroso, mas necessário para reencontrar o caminho do crescimento. Pior ainda, quanto mais se adia, mais custoso ele fica. O segundo seria o das ameaças a impor a receita amarga: a possível perda do investment grade e uma crise fiscal e cambial semelhante à de 2002, que levaria o país ao colapso. Na realidade, quem se pauta pelas notícias e opiniões publicadas atualmente acha que o colapso já está instalado, mas o risco de que pode piorar é sempre importante neste discurso.
Quanto ao primeiro argumento, os custos parecem claros, mas os ganhos futuros nem tanto. Já em relação ao segundo, o paralelo com 2002 (cada vez menos implícito em algumas análises) é esdrúxulo por qualquer critério objetivo. Mas de qual ajuste se está falando, concretamente?
Quatro são as frentes de ação mencionadas: i) uma correção importante nas tarifas públicas, notadamente de energia e combustíveis; ii) o fim das intervenções no mercado de câmbio, gerando desvalorização; iii) a manutenção das condições monetárias restritivas ou mesmo elevação adicional da Selic; e obviamente iv) uma forte contração fiscal.
A primeira dúvida sobre esta artilharia é quanto à combinação entre as diferentes armas. É de se esperar que i) eii) resultem em fortes pressões inflacionárias, em acréscimo aos níveis já desconfortáveis dos índices de preços. Por outro lado,iii) e iv) apostam na redução ainda maior da atividade econômica, justamente para controlar a inflação. Pelo menos no curto prazo, portanto, a proposta é esta mesmo: uma estagflação de verdade. De todo modo, valeria aqui o primeiro argumento acima, sobre o preço a se pagar para corrigir os desequilíbrios.
Uma segunda frente de dúvidas diz respeito à eficácia (ou à dosagem necessária) das medidas. Uma parte dos analistas defende a desvalorização para recuperar a combalida competitividade da indústria nacional. Mas alguém se arrisca a calcular o nível de correção necessário para concorrer no mercado externo, e os impactos disto sobre os preços e o poder de compra domésticos? Defender genericamente “corte de gastos” esconde as dificuldades em fazê-lo, e o resultado mais frequente dessa diretriz: a redução nos investimentos públicos. Ou uma eventual elevação de impostos – o que também não é tarefa simples.
A forma proposta de controlar a inflação é a clássica: cortar a demanda, ampliando o desemprego. No caso em tela, o objetivo é comprimir a inflação de serviços, que responde basicamente às mudanças na estrutura social e ocupacional dos últimos tempos. Mesmo que se queira reverter estes movimentos, civilizatórios, será que é fácil? De quanta recessão se precisa para elevar o desemprego? E de quanto desemprego se precisa para derrubar a inflação de serviços?
A terceira e principal dúvida decorre da pergunta acima, e revela aspectos teóricos interessantes. De onde virá um ingrediente fundamental que está faltando nesta receita, a demanda efetiva?
No raciocínio que sustenta as proposições, a lacuna seria preenchida por outra palavra muito utilizada nos dias que correm: credibilidade.Todas as críticas ao modelo “baseado no consumo” (que, diga-se de passagem, teve o investimento induzido crescendo mais) também bebem desta fonte. As categorias de demanda são concorrentes, o produto é dado, é preciso elevar a poupança da economia. Etc. etc.
Sendo assim, a sinalização do governo de que vai elevar os preços e cortar o nível de atividade, quando crível, seria capaz de disseminar confiança nos empresários (e mesmo nos consumidores), que logo voltariam a gastar. Como a oferta cria sua própria demanda, o caminho pode ser um tanto doloroso, mas se chega lá. Haja confiança no supplyside da economia!
O risco de se jogar fora o que resta de dinamismo do mercado doméstico, revertendo os processos que deram este trunfo à economia brasileira, parece desimportante diante do “choque de credibilidade”. E o paralelo com o ajuste de 2003 ignora que, daquela vez, o que puxou o início da recuperação foi a demanda externa – que não parece convidativa agora ou nos próximos anos.
Aliás, este e outros casos históricos de ajuste em início de governo, que “arrumaram a casa” e permitiram o crescimento posterior, são sempre elencados como argumentos. Seria bom também considerar o exemplo de 2011, quando o forte aperto, fiscal e monetário, contribuiu decisivamente para o país perder o rumo do alto crescimento, sem retomada até agora.
Em suma, os inegáveis problemas e desajustes atuais da economia brasileira certamente precisam de correção. Mas o caminho resumido acima– no conteúdo, intensidade e efeitos com que têm sido defendidos – parece pelo menos duvidoso.
[*] André Biancarelli é professor do Instituto de Economia da Unicamp, diretor-executivo do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon) da mesma instituição e coordenador da Rede D.
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