segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Von Mises e sua Praxeologia: Religião, Aristocracia, Racismo e Contradições

por André Guimarães Augusto, na Revista da SEP, 2016 - O artigo abaixo foi publicado originalmente com o título de “O Neoliberalismo Religioso e Aristocrático de Von Mises” na Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política e uma parte dele foi reproduzida com o título “Limites da “teoria” da ação humana (Praxeologia) de Ludwig Von Mises” no blog Crítica Ontológica.

A tese defendida no artigo é de que o neoliberalismo de von Mises fundamenta-se em uma filosofia de inspiração religiosa e aristocrática. Defende-se que a teoria de von Mises contém um comprometimento com uma ontologia de dois mundos, inspirada pela filosofia de Tomás de Aquino. Tal ontologia de natureza religiosa ganha caráter secular com o argumento aristocrático, presente em sua teoria da história, sua visão da democracia e do funcionamento dos mercados. Conclui-se que o neoliberalismo de von Mises baseia-se em argumentos da reação feudal à ascensão do capitalismo, com o fim de preservar e justificar este último mises-religioso-aristocrata


Introdução
1. Praxeologia e comprometimentos ontológicos
2. Ontologia finalista e de dois mundos
3. A teoria da história de von Mises
4. Crítica ao materialismo e ontologia religiosa
5. O argumento aristocrático
6. Considerações finais: o neoliberalismo como reação

O neoliberalismo muitas vezes é identificado com o conjunto de políticas estabelecidas a partir dos anos 1980 nos governos Reagan e Thatcher e difundidas nas décadas seguintes. Outras vezes, o neoliberalismo, como corrente de pensamento, é identificado como tendo origem na fundação da Sociedade de Mont Pèlerin, em 1947. Reunindo nomes como Hayek, von Mises, Karl Popper e Milton Friedman, a Sociedade de Mont Pèlerin era o think tank do qual sairiam os princípios que fundamentariam as políticas econômicas nos anos 1980.

O ponto de partida deste artigo é a constatação de um alinhamento ideológico e político entre o fundamentalismo religioso, a apologia neoliberal da sociedade de mercado e as defesas de formas aristocráticas de governo – da monarquia à ditadura fascista das elites. Essa “sagrada aliança”, visível no apoio de Hayek e Friedman à ditadura de Pinochet e na encíclica Centesimus Annus (1991) de João Paulo II, pode ser encontrada de forma mais acabada nos circuitos dos autodenominados libertários americanos, organizados em torno do von Mises Institute. A sagrada aliança do neoliberalismo ganhou visibilidade recentemente no Brasil em manifestações de rua, mas é encontrada nos últimos tempos, de forma cotidiana, na imprensa, em pregações religiosas e no discurso de vários políticos. A questão que move o artigo é se tal aliança, aparentemente incoerente, encontra sentido e fundamentação na ideologia neoliberal em sua corrente austríaca.

É na obra de Ludwig von Mises que a expressão mais pura dos fundamentos da argumentação neoliberal pode ser encontrada. [1] O lançamento do Liberalismo de von Mises em alemão em 1927 e em inglês em 1962 assinala o nascimento da ideologia – termo que o próprio von Mises usa para definir o liberalismo (von Mises, 1985, p. 192) – neoliberal. No livro, von Mises propõe uma renovação do liberalismo, cunhando o termo “neoliberalismo” em distinção ao “antigo liberalismo” (ibidem, p. 27).

O artigo não tratará dos argumentos de natureza estritamente econômica do neoliberalismo, mas de seus pressupostos. A tese defendida no artigo é de que o neoliberalismo de von Mises fundamenta-se em uma argumentação anti-iluminista de natureza religiosa e aristocrática.

1. Praxeologia e comprometimentos ontológicos
Para compreender o neoliberalismo de von Mises, é necessário partir da estrutura de sua argumentação. Tal estrutura pode ser compreendida a partir dos escritos epistemológicos do autor, nos quais este visa, por um lado, fundamentar a apologia da propriedade privada dos meios de produção e, por outro, atacar o materialismo,
especialmente o marxismo.

O dualismo metodológico é defendido por von Mises (von Mises, 2007, p. 1), distinguindo entre as ciências físicas, que lidam com a matéria, e as ciências humanas. Essas últimas são derivadas de uma ciência geral da ação humana, a praxeologia. As proposições básicas da praxeologia “antecedem qualquer definição real ou nominal. São categorias finais, impossíveis de serem analisadas” (von Mises, 1990, p. 51); “Não estão sujeitas a verificação com base na experiência e nos fatos” (ibidem, p. 48) nem “derivam da experiência” (ibidem).

A praxeologia é puramente dedutiva; as conclusões já estão contidas nas premissas. As inferências da praxeologia são tautológicas e analíticas e “Sua função é tornar claro e evidente o que antes era obscuro e desconhecido” (ibidem, p. 56). Sua premissa é o conceito de ação. Segundo von Mises, a ação é um comportamento propositado, que se caracteriza pelo “emprego de meios para atingir fins” (ibidem, p. 22).

Os fins são tidos como irredutíveis e não são passíveis de análise. Como ciência subjetivista, não caberia à praxeologia pronunciar-se sobre os melhores fins. Os fins seriam resultado de uma escolha, um exercício da vontade autodeterminada. A única aplicação prática da praxeologia seria a de recomendar os meios mais adequados para a obtenção dos fins (ibidem, p. 34).


A despeito das afirmações categóricas de von Mises, suas conclusões inferidas do conceito de ação e as justificativas para o seu caráter a priori estão longe de serem “claras e evidentes”. Primeiramente, as conclusões que von Mises alegadamente retira do conceito geral de ação não estão contidas necessariamente neste. Em segundo lugar, o caráter a priori dessas premissas apresenta vários problemas, se tomado em termos puramente epistemológicos.

O conceito de ação apresentado pelo economista austríaco não é suficiente para se derivar sua defesa do liberalismo, por exemplo. A definição da ação como um comportamento em que os homens usam meios para atingir fins não contém a conclusão de que a propriedade privada dos meios de produção organizada pelo mercado e sem nenhuma interferência coletiva é a única configuração possível para o desenvolvimento da civilização.

Em toda ação, a busca dos fins realiza-se por meio de atos em que se utilizam meios que não dependem dos fins dos agentes, incluindo a ação dos outros agentes (Kotarbinsky, 1983, p. 6). Para se chegar à conclusão neoliberal de von Mises é necessária uma hipótese adicional sobre a interação de agentes, e pressupor que as ações não são conflitantes. Tais hipóteses não estão contidas na premissa do conceito formal de ação.

Uma forma de se chegar à coordenação dos fins de diferentes indivíduos, partindo do mesmo conceito de ação, é pressupor um fim último que seja comum a todos os indivíduos. Mas isso não impede que diferentes indivíduos busquem esse mesmo fim com meios conflitantes. Portanto, é preciso o pressuposto adicional de que só há uma única maneira de buscar o fim último comum a todos e que todos podem fazer igual uso desses meios. Isso significaria afirmar que os homens são igualmente dotados das mesmas capacidades. A esse pressuposto pode ser dado conteúdo substantivo com a igual capacidade de maximização e perfeito conhecimento, embora isso não seja necessário.

Esses pressupostos adicionais ao conceito formal de ação não estão presentes no argumento neoliberal de von Mises. O autor nega que os homens sejam maximizadores capazes de conhecer antecipadamente o resultado de suas ações. Assim, os homens não teriam a racionalidade perfeita que levaria ao melhor uso dos meios e à consecução dos fins. De forma geral, von Mises pressupõe que os homens não têm igual capacidade de utilizar os meios. Além disso, afirma que os homens têm um fim último em comum em todas as suas ações. Mas esse fim comum é a felicidade, entendida tautologicamente como a satisfação de um desejo. Ou seja, é meramente formal, sem conteúdo
definido.

Sendo os fins substantivamente desiguais e livremente determinados pelas vontades dos indivíduos, nada impede que a realização dos fins de alguns seja obstáculo para a realização dos fins de outros. Isso pode ocorrer quando os trabalhadores buscam aumento de salários e os capitalistas buscam diminuir os salários como meio de aumentar ou manter os lucros, ou quando vários indivíduos desejam o mesmo bem que não está disponível para todos.

Nesses casos, von Mises tem que incluir a premissa de uma ordem espontânea que tornaria compatíveis, no longo prazo, as ações movidas pelas vontades autodeterminadas. A ordem espontânea não está contida no conceito formal de ação e só é possível a realização de todos os fins após uma longa travessia em que é necessário fazer “sacrifícios”. Nessa travessia, alguns, de facto, nunca terão seus desejos realizados. Adicionalmente, é necessário incluir premissas substantivas sobre a economia para se concluir que a divisão do trabalho e a propriedade privada dos meios de produção levam a essa ordem espontânea.

Pode se exemplificar a necessidade de premissas adicionais ao conceito formal de ação para se chegar às conclusões neoliberais de von Mises com o debate sobre o cálculo socialista, onde os dois lados partiam do mesmo conceito formal de ação. O principal opositor de von Mises no debate, Oscar Lange, afirmava que o socialismo era “uma tentativa de aplicar o princípio da racionalidade econômica não somente a uma questão ou empresa particular, mas à economia nacional como um todo” (Lange, 1983, p. 364).

De acordo com Lange, os instrumentos da praxeologia aplicada, como a pesquisa operacional e a teoria da programação, são instrumentos de planejamento que visam o melhor uso dos meios para atingir os fins. Seu objetivo é a eficiência no uso dos meios. No socialismo, afirma Lange, estes instrumentos são aplicados à economia nacional (ibidem, p. 367). Partindo do conceito formal de ação e adicionando a este a existência de fins últimos comuns a todos os homens e a igual capacidade de utilizar os meios sob a hipótese da maximização, Oscar Lange deriva o planejamento socialista.

Não é objeto desse artigo retomar o debate do cálculo socialista. O ponto central aqui é de que a impossibilidade de derivar apenas as conclusões neoliberais do conceito formal de ação não é o resultado de uma inconsistência lógica no argumento de von Mises. O conceito formal de ação requer determinadas condições necessárias para que este ganhe conteúdo; em outros termos, requer pressupostos que não são apenas lógicos, mas pressupostos ontológicos, sobre a constituição da realidade. O mesmo conceito formal de ação com conteúdos derivados de pressupostos ontológicos diferentes leva a conclusões diferentes e até mesmo opostas.

A necessidade de pressupostos ontológicos na praxeologia de von Mises pode ser observada também em sua defesa do caráter a priori do seu conceito de ação. Von Mises defende o método a priori na ciência da ação humana a partir do conhecido problema da indução. Tal problema consiste na impossibilidade de se retirar generalizações de caráter universal a partir do conhecimento empírico, posto que este nunca esgota todas as instâncias do universal.

Invocando Kant, von Mises afirma que todo conhecimento é condicionado por categorias que antecedem a experiência, categorias a priori (von Mises, 1962, p. 12). Aqui von Mises recorre à “regularidade na sucessão de eventos” como categoria a priori necessária para toda teoria. A estrutura lógica imutável da mente humana seria uma regularidade pressuposta para a praxeologia (ibidem, p. 16).

O apelo de von Mises a Kant é enganoso. Como argumenta Barota (1996), os conceitos a priori de Kant referem-se às condições epistemológicas para a realização da ciência. Conceitos a priori são transcendentais e distintos dos científicos. Em termos kantianos, uma teoria científica explanatória não pode ser deduzida de conceitos a priori, mas deve incluir elementos a posteriori retirados da experiência. Assim, as mesmas categorias a priori podem resultar em teorias científicas diferentes (ibidem, p. 59). Do ponto de vista kantiano, von Mises confunde as condições para a ciência com a própria ciência ao dar à ação o status de categoria a priori.

O caráter a priori do conceito de ação em von Mises também não é defensável com base na lógica pura em termos kantianos. As categorias lógicas kantianas – quantidade, qualidade, relação, modalidade – seriam puramente intelectuais, sem qualquer referência à experiência (Young, 1992, p. 101-103). Essas categorias dizem respeito à forma do pensamento sobre qualquer coisa e não ao seu conteúdo (ibidem, p. 105-106), sendo válidos para qualquer ciência independente de seu objeto. Von Mises defende que os conceitos a priori da praxeologia – finalidade, meios, vontade, razão – não se referem ao “conteúdo material” das ações, mas apenas à sua forma. Contudo, ao contrário das categorias lógicas kantianas, eles não se referem à forma do pensamento sobre qualquer coisa, mas à forma da ação enquanto distinta de outras coisas. Von Mises é claro ao distinguir a ação, por exemplo, de um comportamento automático (von Mises, 1990, p. 33).

Como distinguir a lógica da ação em relação à lógica do comportamento automático ou da natureza, se não por meio da experiência? Von Mises afirma que essas categorias são fruto da “reflexão sobre a essência da ação” (ibidem, p. 58). Se por tal reflexão faz-se referência à introspecção, esta se constitui a partir de uma experiência subjetiva. Sendo subjetiva, sua realidade deve ser validada intersubjetivamente. A validade intersubjetiva de experiências subjetivas, por sua vez, implica uma experiência objetiva comum. Como von Mises nega categoricamente que a realidade dos a priori se funde em qualquer experiência, é plausível supor que a categoria da ação de von Mises seja inferida a partir de compromissos ontológicos implícitos que são explicitados na seção seguinte.

2. Ontologia finalista e de dois mundos
A princípio pode-se negar a existência de comprometimentos ontológicos na praxeologia de von Mises, alegando que este apresenta apenas argumentos sobre como conhecemos o mundo, argumentos de natureza epistemológica. Von Mises adota um argumento cético, apontando para a limitação de nosso conhecimento sobre a origem das ideias (ibidem, p. 29-30).

O argumento cético sobre a origem das ideias, no entanto, não impede von Mises de afirmar que estas “são geradas por algum processo desconhecido no corpo humano” (von Mises, 2007, p. 97). Deste modo, ele admite que a mente depende do corpo humano, algo material, para existir. Mas os pensamentos e ideias produzidos pela “estrutura lógica da mente” são “intangíveis e imateriais” (ibidem, p. 95) e a “Mente ou razão é posta em contraste com a matéria” (von Mises, 1962, p. 11).

Com uma justificativa epistemológica, von Mises assume comprometimentos de caráter ontológico. [2] Apesar de admitir que a mente atua a partir de processos materiais gerados no corpo, com a justificativa do ceticismo epistemológico compromete-se ontologicamente com uma substância imaterial e intangível, a mente. Em sua argumentação, a mente funciona independente de qualquer restrição material objetiva provinda do ambiente físico e social. Sua teoria da ação é a mais explícita expressão desse comprometimento ontológico.

Embora von Mises não afirme nada sobre o conteúdo dos fins visados pela ação, afirma algo sobre sua causa: “O que faz alguém sentir–se desconfortável, ou menos desconfortável, é estabelecido a partir de critérios decorrentes de sua própria vontade e julgamento, de sua avaliação pessoal e subjetiva” (von Mises, 1990, p. 24). A ação não passa de uma “manifestação da vontade” e, portanto, da escolha incondicionada dos fins (ibidem, p. 23).

A ação tal como formulada por von Mises consiste nos atos que dependem apenas dos indivíduos, o que Kotarbinsky (1983, p. 11) denominou de “ação absoluta”. Desta forma, as finalidades da ação são produtos puros da mente dos indivíduos. O ceticismo metodológico garante apenas uma negação sobre a origem e o funcionamento dos fins, mas não justifica a afirmação de von Mises. Esta só pode ser justificada assumindo-se o compromisso ontológico de que a ação é um produto apenas da mente “intangível” e “imaterial”. Isso fica claro quando afirma que mesmo a satisfação de necessidades biológicas e a preservação da vida são um resultado da escolha (von Mises, 1990, p. 31).

Mas se a ação é “o comportamento total do homem” (ibidem, p. 22), ela não pode se resumir à escolha de um fim. Aqui pode se argumentar que os fatores distintos da mente “imaterial” teriam efeito causal na consecução dos fins através da busca dos meios. Em outros termos, se os constrangimentos materiais estão ausentes na “ação absoluta”, eles estão presentes nos atos pelos quais essa ação se efetiva. Desta forma, o reconhecimento de causalidades materiais seria um condicionante da ação e, portanto, parte de sua explicação.

No entanto, von Mises afirma que o reconhecimento correto de uma relação causal supõe que os fins foram atingidos (ibidem, p. 36). Não só se trata de um “círculo vicioso”, como von Mises admite, mas a própria causalidade é entendida como um “a priori” (von Mises, 1962, p. 20).

Deste modo, a causalidade é um produto da estrutura lógica da mente humana.

Von Mises compromete-se com uma ontologia de “dois mundos diferentes” e na qual “nenhuma ponte liga esses dois mundos” (von Mises, 1990, p. 29). Para esse economista, a ação humana é homogênea com a razão e é um produto desta (ibidem, p. 58). A razão, por sua vez, parece se identificar com a estrutura lógica da mente humana. Como a ação é tomada como sendo idêntica à razão, a praxeologia funda-se na razão pensando a razão. O caráter a priori das premissas da praxeologia é ontologicamente justificado por sua origem em um “mundo diferente” do mundo material dos sentidos, o mundo da mente imaterial.

Para von Mises, não é possível estabelecer qualquer tipo de relação causal na direção do mundo da matéria para o mundo da mente, embora, como será visto adiante, ele viola esse pressuposto em pelo menos uma ocasião. Mas a direção contrária é admitida. Von Mises afirma categoricamente, e de forma não condicionada pelo estado de nosso conhecimento, que as ideias e pensamentos “produzem mudanças nas coisas tangíveis e materiais” (von Mises, 2007, p. 96).

Von Mises, de facto, atribui um valor ontológico maior à teleologia em relação à causalidade. O autor admite que teleologia é uma espécie de causa, que ele designa como “causa final”. Von Mises defende, ainda, que toda mudança se origina de uma causa e, consequentemente, que a conduta humana é dirigida pela causalidade (ibidem, p. 177). No caso da ação humana, no entanto, essa causa é a vontade, algo subjetivo que não possui causas. Admitindo que tudo se origina de uma causa, a vontade só pode ser causa de si mesma. A vontade é a causa primeira, o motor não movido da ação humana.

Deste modo, von Mises reduz toda causalidade no que se refere ao mundo humano às finalidades dos agentes. Nos termos das quatro causas aristotélicas, a causa material da ação, aquilo de que ela é feita, é a estrutura lógica da mente, uma substância imaterial. O que dá a forma específica de uma ação sua causa formal, nos termos de Aristóteles, é o fim determinado que ela busca, e este é escolhido de acordo com a vontade autodeterminada dos agentes. O que gera a ação, sua causa eficiente, são as finalidades dos agentes; do mesmo modo, as mudanças no mundo material são causadas pelas finalidades dos agentes. Ao admitir que a causalidade é um produto da mente humana, ao colocar a causa material das ações em uma substância imaterial e ao conflagrar as outras causas com a causa final, von Mises assume um compromisso ontológico com um mundo humano regido exclusivamente pela teleologia.

A ordem espontânea é também um tipo de teleologia transposta da mente dos indivíduos para a sociedade como um todo. Tal teleologia refere-se primeiramente à criação de uma ordem social a partir de ideias dos indivíduos, de suas finalidades. Em diversos momentos, von Mises admite que a ordem social é criada de acordo com as finalidades, senão de todos os indivíduos – e não poderia sê-lo, pois não existem fins comuns –, pelo menos de alguns indivíduos. Em alguns momentos, von Mises é dúbio ao supor que essa finalidade pode visar algo ainda por vir; em outros, visa manter o que já existe. O comprometimento ontológico de von Mises com uma teleologia social pode ser observado em sua teoria da história.

3. A teoria da história de von Mises
Pertencendo ao campo da ação humana, a história não estaria sujeita ao mesmo método das ciências naturais, segundo von Mises. Não seria possível, portanto, extrair leis gerais a partir da observação de fatos históricos. Mais do que isso, sendo a história um produto da mente humana, os homens “estão livres para recorrer a interpretações bastante arbitrárias” (von Mises, 1990, p. 47-48) quando se trata de eventos históricos. Assim, só é admissível uma história que seja inferida dos a priori praxeológicos.

Mais do que a coerência com seu método a priori, mesmo quando em desacordo com as evidências históricas, a teoria da história de von Mises revela seus comprometimentos ontológicos. Sua teoria da história pode ser resumida em sua afirmação de que “Não há nada para a história além das ideias das pessoas e as finalidades que elas procuravam motivadas por essas ideias” (von Mises, 2007, p. 161). Assim, a história pertence ao mundo imaterial da mente humana.

Mas von Mises admite algo que parece peculiar perante suas afirmações de que as finalidades são causadas unicamente pela vontade não causada dos indivíduos. Admitindo que todo indivíduo nasce em sociedade, este é “imbuído” com “ideias preexistentes”, que ele pode modificar ou não, e “suas ações são guiadas por ideologias que ele adquiriu através de seu ambiente” (ibidem, p. 160)

Isso significaria admitir que as finalidades dos indivíduos não se originam de sua vontade incondicionada, mas são causadas por ideologias preexistentes. Sendo a escolha causada, ela não pode ser a causa primeira e a pessoa não tem “liberdade para fazer o que quer” (von Mises, 2009, p. 27). Desta forma, seria admitida a existência de uma causa social para as ideias dos indivíduos. Por outro lado, se as ideologias “são produtos da mente humana” (von Mises, 2007, p. 160), isso implicaria em admitir a existência de uma “mente humana” acima dos indivíduos humanos.

Von Mises apresenta uma solução para esses problemas mantendo-se coerente com sua praxeologia. Em lugar de apelar para uma mente acima dos indivíduos ou para uma causa social objetiva da ideologia, von Mises admite que a origem de uma ideia só pode estar em outras ideias. Mas isso levaria ao regresso infinito e o ponto de chegada dessa causação de ideias por ideias é a mente de um indivíduo ou de alguns indivíduos (ibidem). A ideia surgida na mente de um indivíduo se torna aceitável por outros e assim se transforma em ideologia. (ibidem)

A causação das ideologias pelas ideias de um indivíduo restringe a liberdade entendida como o exercício da vontade sem constrangimentos. Alguns indivíduos têm sua ação guiada por ideologia preexistente e que não é produto da sua escolha. Mas se a liberdade da ação é entendida como exercício de uma vontade autodeterminada, nem todos os indivíduos são livres.

As afirmações de von Mises levam à proposição de uma teleologia na história. Se são as ideologias que guiam as ações dos indivíduos, se na história não há nada além dessas ideias e se as ideologias originam-se da mente de um ou alguns indivíduos, são as finalidades destes que determinam a história. Assim, o capitalismo teria sido um produto teleológico da mente dos economistas e “o que é comumente chamado de ‘revolução industrial’ foi o resultado da revolução ideológica efetuada pelas doutrinas dos economistas” (von Mises, 1990, p. 14).


O mesmo tipo de teleologia social está presente no debate sobre o cálculo socialista. Aqui a ordem espontânea gerada pelo mercado é o resultado de uma “divisão mentalmente calculada do trabalho entre os vários empresários” (von Mises, 2009, p. 39). Deste modo, a teleologia social reproduz a finalidade de alguns indivíduos, os empresários. A causa final da história é constituída pelos fins que alguns indivíduos buscam. No caso do capitalismo, trata-se dos fins buscados pelos empresários como causa final da reprodução econômica.

Poder-se-ia alegar que a ordem espontânea da história não é teleológica, mas sim um processo evolucionário análogo ao da evolução biológica. Mas não só as evidências textuais negam tal analogia, como isso incluiria von Mises na ideologia à qual dedicou toda sua vida a combater, o materialismo. Quando trata das origens das ideias, von Mises rejeita explicitamente as analogias biológicas do contágio propostas pelas explicações materialistas como uma “comparação superficial e que não explica nada” (von Mises, 2007, p. 99).

Fica por explicar o motivo de algumas ideias surgirem em alguns indivíduos e não em outros e como elas são aceitas se transformando em ideologia. A explicação da aceitação e da origem das ideias leva a um outro elemento fundamental na ontologia de von Mises: a desigualdade natural dos homens e a superioridade de uns em relação aos outros. Trata-se aqui do argumento aristocrático que será tratado de forma mais detalhada adiante. Tal argumento supõe que alguns são naturalmente predestinados a terem ideias vencedoras e outros a aceitá-las.


Assim, von Mises tem um comprometimento ontológico com a existência de dois mundos, com a existência de uma substância imaterial, com uma teleologia social e com a predestinação dos indivíduos. Conforme argumentaremos na próxima seção, as raízes desses comprometimentos ontológicos podem ser encontradas em uma ontologia de origem religiosa.

4. Crítica ao materialismo e ontologia religiosa
Os comprometimentos ontológicos de von Mises têm origem e natureza religiosa, e suas raízes podem ser encontradas na filosofia aristotélica reinterpretada em termos religiosos por Tomás de Aquino. Tal proximidade é bastante plausível, uma vez que o ensino no Império Austro-húngaro era dirigido pela Igreja Católica, fundamentando-se na filosofia tomista. (Hülsmann, 2002, p. li)

A praxeologia de von Mises atende a todos os critérios da ciência no sentido estrito (scientia scire simpliciter) de Tomás de Aquino. Para Aquino a scientia é o conhecimento completo e certo da verdade de algo. (Mac Donald, 1993, p. 162) Como na praxeologia de von Mises, a scientia “não argumenta para provar seus princípios, mas argumenta a partir dos princípios para provar outras verdades” (Aquino, 1947 p. 8). Segundo Tomás de Aquino, “Os princípios de qualquer ciência ou são autoevidentes em si ou redutíveis às conclusões de uma ciência superior” (ibidem).


Os princípios da argumentação são autoevidentes, significando que “seu conhecimento é naturalmente implantado em nós” (ibidem, p. 12). Aquino argumenta que algo pode ser autoevidente em si ou em si e para nós. Uma proposição é autoevidente para todos “quando”, sendo seus termos conhecidos, imediatamente se “conhecem”, ou quando nelas “algo se predica de si mesmo, como homem é homem, ou se o predicado delas está incluído na definição do sujeito, como homem é animal” (Aquino, 1990, p. 34) ou, de outra forma, “quando o predicado está incluído na essência do sujeito” (Aquino, 1947, p. 13).

Mas uma proposição pode ser autoevidente em si, mas não para nós quando “não sabemos o significado e o sujeito da preposição” (ibidem, p. 12). Quando a essência que se predica do sujeito é desconhecida, é “necessário demonstrar a preposição por algo que é conhecido por nós” (ibidem, p. 13) uma vez que, argumenta Aquino citando Boécio “Existem alguns conceitos mentais que são autoevidentes somente para os instruídos” (ibidem, p. 13)

O caráter autoevidente das premissas, ou princípios primeiros da argumentação, as torna irrefutáveis e não passiveis de prova. Assim, argumenta Aquino, para conhecer as verdades autoevidentes “não é necessário um esforço de investigação” (Aquino, 1990, p. 34) e “Ninguém pode admitir mentalmente o oposto do que é autoevidente” (Aquino, 1947, p. 12).


A fundamentação dada por Aquino ao caráter autoevidente dos princípios primeiros é a mesma dada por von Mises ao caráter a priori das premissas da praxeologia. Tais premissas são resultados de uma “reflexão sobre a essência da ação” (von Mises, 1990, p. 58). O sentido da reflexão pode ser entendido como um ato puramente mental sem referente nas ações realmente existentes. Sendo essa “essência da ação” independente dos atos pelos quais qualquer ação realmente existe, sua fundamentação é metafísica. [3]

A scientia tomista depende da natureza do que é conhecido. No caso das coisas naturais, a matéria faz parte de usa própria definição (Aquino, 1947, p. 573) e seu conhecimento depende da “matéria sensível em comum” (ibidem, p. 575), embora não da individual. Trata-se aqui da “filosofia da natureza”, cujos princípios primeiros devem ser obtidos indutivamente a partir dos sentidos. Os objetos matemáticos, por sua vez, “podem ser abstraídos pelo intelecto da matéria sensível”, “podem ser considerados à parte das qualidades sensíveis”, mas não podem ser abstraídos da “matéria inteligível comum” (ibidem).

Aqui se trata das ciências a priori – a matemática e a lógica. Já a metafísica, lida com coisas “que podem existir sem a matéria, como ocorre claramente com coisas imateriais” (ibidem).

Von Mises admite que as ciências naturais se utilizam da experiência, mas o mesmo seria impossível para as ciências do homem. Assim, as premissas da praxeologia “São como a lógica e a matemática aprioristas” (von Mises, p. 48), o que implicaria um compromisso ontológico com a mente como algo que se situa como uma “matéria inteligível comum”, distinta da “matéria sensível”.

A praxeologia de von Mises também está próxima dos argumentos de Tomás de Aquino sobre a alma. Aquino reconhecia a existência de seres corpóreos e seres espirituais (Aquino, 1947, p. 342) e de substâncias intelectivas separadas das substâncias corpóreas (Aquino, 2008, p. 26-27), analogamente à divisão entre o mundo material e o da mente imaterial em von Mises. Como a mente em von Mises, a alma humana em Aquino é uma substância incorpórea: “É necessário dizer que aquilo que é o princípio da atividade intelectual, aquilo que chamamos da alma humana, é um princípio incorpóreo e subsistente” (Aquino, 1947, p. 482).

Mas o homem não é um ser puramente espiritual em Aquino. Para Aquino o homem “é composto de uma substância corpórea e outra espiritual”, corpo e alma, sendo assim um “ser limítrofe” entre as coisas materiais e as puramente espirituais. As teses praxeológicas de von Mises sobre a mente humana que funciona em um corpo mas não depende dele em nenhum sentido causal levam a inferir a presença de uma noção do homem como um ser composto de duas substâncias separadas, como em Aquino.

A praxeologia de von Mises poderia ser remetida diretamente à ética aristotélica. Von Mises, da mesma forma que Aristóteles e Aquino, afirma que o fim último do homem é a felicidade. Mas Aristóteles dá um sentido ético à felicidade como fim último que todos os seres humanos deveriam buscar e analisa o sentido do termo felicidade para inferir dele um conteúdo determinado como bem comum (MacInerny, 1993, p. 200).

Para Aquino a felicidade é identificada com o bem e deus é o bem supremo. Se o fim é o objeto da vontade, o fim tem o aspecto de um desejo, e todas as coisas desejam o bem (Aquino, 1947, p. 32), este é o fim último de todas as ações. Para Aquino, deus é o bem último e a felicidade plena só pode ser obtida quando o homem coloca deus como fim último.

Aqui von Mises difere tanto de Aristóteles como de Aquino, pois a felicidade é definida subjetivamente pelos indivíduos, ou seja, é informal e indeterminada. Mas em um ponto pelo menos ela se aproxima mais da ética tomista do que da aristotélica. Primeiramente, sem o elemento teológico, a felicidade de von Mises se aproxima do bem de Tomás de Aquino, pois, para este, “porque o bem é de vários tipos”, “a vontade não é determinada necessariamente por um” e a capacidade da vontade “não é submetida a qualquer bem individual” (ibidem, p. 550). Se os bens são de vários tipos e o que é desejado é o bem, por definição, pode se inferir a conclusão de que a finalidade da ação é indeterminada.

Também com relação à vontade autodeterminada, von Mises se aproxima de Aquino. A vontade é autodeterminada em Aquino, como em von Mises, pelo menos em suas primeiras obras (Kretzman, 1993, p. 147). Nas obras posteriores, Aquino afirma que a vontade move a ação em direção ao fim que é determinado pelo intelecto. Assim a vontade é determinada pelo intelecto apenas como causa final, mas não como causa eficiente (Aquino, 1990, p. 132). No entanto, no argumento de Aquino, resta uma vontade indeterminada, pois quer a si mesmo e a todas as coisas (ibidem, p. 133-135), que se identifica com a própria essência do volente (ibidem, p. 132-133) e que não tem nenhuma causa fora de si (ibidem, p. 147): a vontade divina. Pode-se inferir que, sob esse aspecto, a ação humana na praxeologia de von Mises é formalmente idêntica à ação divina em Aquino.

De modo geral, a explicação de von Mises para as transformações na sociedade são análogas à criação divina. O intelecto puramente imaterial é, para von Mises, a causa eficiente e final das coisas existentes no mundo humano, e as finalidades da ação humana são criadas ex nihilo (a partir do nada) como no ato da criação divina. A vontade humana é a causa final não causada do mundo humano, um análogo da vontade divina.

Ademais, ao afirmar que as premissas da praxeologia são incontestáveis lógica e empiricamente, von Mises dá a ela o mesmo status da verdade revelada por Deus. Causaria espanto em qualquer pessoa capaz de um raciocínio lógico mínimo a falácia contida no argumento de que tal teoria possa se proclamar “acima de disputas de partidos e facções”, quando ela mesma se constitui como uma facção, ou “indiferente aos conflitos de todas as escolas de dogmatismo” (ibidem, p. 43), quando ela mesma proclama seu dogmatismo.

A motivação explícita de von Mises para a formulação da praxeologia e para o argumento liberal deduzido a partir dela é a evidência mais forte de sua fonte religiosa. Em sua cruzada pelo neoliberalismo, von Mises afirma que a libertação das pessoas da “doutrinação” do marxismo e do “progressivismo” será decidida “pelas questões fundamentais da epistemologia e teoria do conhecimento” (von Mises, 1990a, p. 206). Note-se de passagem que isso contradiz a afirmação de von Mises de que “Ninguém tem condições de determinar o que faria alguém mais feliz” (von Mises, 1990, p. 24), uma vez que ele não exclui que suas ideias neoliberais façam os outros mais felizes.

As ideias das quais von Mises magnanimamente pretende libertar os homens são as ideias do materialismo. Von Mises entende por materialismo uma ontologia que atribui as origens de todas as características humanas a processos físicos e biológicos (von Mises, 2007, p. 94). A partir dessa definição estreita, o materialismo é identificado com o fisicalismo e com o mecanicismo. Esse último se refere não só à analogia do homem com a máquina, mas ao determinismo causal estendido da natureza ao homem.

Von Mises só reconhece a causalidade de tipo mecânico: ele rejeita explicitamente a causalidade probabilística (von Mises, 1962, p. 93); não considera a dialética de Marx, atribuindo a ele o estrito mecanicismo; e desconhece a causalidade complexa do materialismo emergentista que se desenvolveu nos últimos anos.

O alvo imediato do ataque ao materialismo é obviamente o marxismo. Mas von Mises vai mais longe em sua cruzada contra o materialismo, atingindo o positivismo e o Iluminismo. Todos são tidos como essencialmente o mesmo materialismo. Desta forma, o materialismo que von Mises ataca pode ser classificado como um espantalho.

Sendo o materialismo uma ontologia, sua contraposição deveria ser feita no mesmo plano ontológico. Von Mises não o faz explicitamente, apresentando o ceticismo epistemológico como contraponto ao materialismo. Segundo ele o materialismo foi incapaz de explicar como eventos materiais produzem eventos mentais. A possibilidade de o problema ser o determinismo mecânico e não o materialismo não é aventada em nenhum momento por von Mises, uma vez que identifica superficialmente os dois.

Seu ceticismo epistemológico levaria logicamente à conclusão de que se não podemos falar como causas materiais levam a eventos mentais, também não poderíamos falar que eventos mentais não têm causas materiais. Mas von Mises não tem o hábito de se calar sobre o que ele mesmo afirma não poder ser dito. Admitindo que não sabemos o que faz a mente operar, não há nenhuma razão para admitir a separação entre o “corpo material” e a “mente intangível”. O próprio ceticismo epistemológico põe em suspeita essa separação, posto que ela é “realizada pela própria mente” (ibidem, p. 11). Se não sabemos as causas da operação da mente, também não sabemos se a separação é real. Ou seja, o ceticismo epistemológico não justifica o realismo dos pressupostos apriorísticos da ação.

Por outro lado, a ação executada por um corpo material em um mundo em que há coisas materiais e outros homens com corpo e mente se relacionando em sociedade não pode ser atribuída apenas à mente e à vontade dos indivíduos. Mesmo admitindo o ceticismo sobre as origens das finalidades, os atos pelos quais a ação se realiza devem contar com causas eficientes de natureza externa à mente dos indivíduos, independente de tais causas serem conhecidas. Portanto, von Mises só pode se contrapor ao que ele entende por ontologia materialista adotando o comprometimento com uma ontologia não materialista, de origem religiosa. Isso se evidencia na posição que assume na disputa
entre materialismo e religião.

Von Mises afirma que a ontologia materialista surgiu como uma contraposição à ontologia religiosa dos dois mundos (von Mises, 2007, p. 99). Nesse ponto, von Mises assume claramente o partido da religião contra o materialismo: “[…] é impossível para o raciocínio a priori e para as ciências naturais refutar de forma convincente os refinados dogmas religiosos. […] críticas elaboradas não afetam o núcleo da fé” (ibidem, p. 100). Em seguida, afirma que a popularidade do materialismo se deveu a motivações políticas, decorrentes do envolvimento da Igreja com a aristocracia do antigo regime. É uma hipótese bastante plausível, portanto, que von Mises tenha recorrido aos referidos dogmas para se contrapor ao materialismo.

Mas os comprometimentos ontológicos de natureza religiosa de von Mises não podem ganhar um caráter mundano sem o argumento aristocrático. Uma ontologia religiosa que prescinde de um Ser absoluto sobrenatural torna-se viável como ontologia social se é admitida a existência de seres superiores no mundo terreno da sociedade. O argumento aristocrático é o ponto fundamental dos comprometimentos ontológicos de von Mises.

5. O argumento aristocrático
Von Mises admite que o liberalismo clássico fundava-se na igualdade natural de todos os homens; as desigualdades seriam fruto das condições sociais. Esse argumento do liberalismo clássico encontra-se em Adam Smith, por exemplo. Ao tratar da divisão do trabalho, Smith admite que todos os homens têm as mesmas capacidades e que não há diferença natural entre um filósofo e um carregador. Smith recorre à comparação entre pessoas antes e depois da idade de trabalhar e entre países com divisão do trabalho pouco desenvolvida e mais desenvolvida para validar sua afirmação de que as diferenças de capacidades são causadas pela divisão do trabalho (Smith, 1985, p. 483).

Von Mises afirma que os homens são naturalmente desiguais e que, mesmo entre irmãos, há desigualdade de capacidades físicas e mentais (von Mises, 1985, p. 27). Afirma também o caráter hierárquico dessa diferença, sentenciando que a partir da desigualdade natural, “Podemos – sem nenhum juízo de valor – distinguir entre
homens superiores e inferiores” (von Mises, 1990a, p. 21). Note-se a falácia no argumento de von Mises, uma vez que as diferenças entre indivíduos ou grupos humanos não implica necessariamente a superioridade in toto de uns sobre outros. Para deduzir a suposta superioridade das diferenças, von Mises inclui um juízo de valor implícito.

Não é possível inferir essa desigualdade do conceito formal de ação de von Mises. Além disso, ao contrário de Smith, von Mises não apresenta evidências empíricas capazes de comprovar sua afirmação. Sendo uma diferença natural, isso seria violar seus princípios, pois se refere ao mundo da matéria. Se há desigualdade natural em capacidades mentais, isso significaria admitir um efeito causal da matéria sobre a mente imaterial.

A aparente contradição entre a negação absoluta do materialismo e a explicação das diferenças naturais dos homens com base em “fatos biológicos” pode ser entendida como um resultado de comprometimentos ontológicos de natureza religiosa sem uma teologia. Sem uma teologia, não se pode apelar para a providência divina para justificar a existência de uma predestinação dos indivíduos. Tal predestinação é incompatível também com a proclamação da livre escolha movida pela vontade não causada. Assim, resta apenas a violação de um princípio epistemológico para manter um compromisso ontológico.

Von Mises mobiliza explicitamente o argumento da causa biológica em sua defesa da desigualdade natural dos homens (von Mises, 2007, p. 327-328). Deste modo, afirma sobre os indivíduos que “as capacidades mentais que circunscrevem as potencialidades de seus atos mentais e de sua personalidade” são herdadas de seus pais, e que “há uma correlação entre a estrutura corporal e as características mentais” (ibidem). Von Mises fundamenta a diferença entre “o gênio e o idiota” nos “fatos da biologia e da história” (ibidem, p. 331). Mas, como veremos a seguir, “os fatos da biologia” são descartados pelo autor austríaco com base no ceticismo epistemológico.

Para justificar com os “fatos da biologia” a diferença natural dos homens, von Mises assume uma teoria biológica das “raças”. Afirma que “a espécie humana é subdividida em grupos raciais com distintas caraterísticas biológicas hereditárias. A experiência histórica não impede o pressuposto de que alguns grupos raciais são mais bem-dotados que outras raças para conceber ideias mais sensatas” (ibidem, p. 161).

Von Mises assevera que é possível conceber que determinadas “raças” possam alcançar o nível cultural de outras pelo processo de evolução biológica (ibidem). Mas a evolução biológica das “raças” dar-se-ia em uma direção pré-determinada para o nível alcançado pelas “raças” que produziram “ideias mais sensatas” e que foram “mais bem-sucedidas que outras na busca das finalidades de todos os homens” (ibidem, p. 333). Deste modo, von Mises afirma que “a moderna civilização é um feito dos homens brancos” (ibidem, p. 334). Cabe assinalar que esse é mais um aspecto do caráter teleológico da teoria da história de von Mises.

Mas von Mises sustenta que a teoria “racial” biológica e a superioridade da “raça branca” no atual momento da história não justificam as doutrinas políticas racistas (ibidem). Não haveria, segundo ele, como garantir que a suposta superioridade da “raça branca” permanecerá no futuro, pois isso só seria garantido por uma descoberta biológica “de características anatômicas dos membros das raças não-caucasianas que contivessem naturalmente suas faculdades mentais”, o que segundo ele não teria acontecido até aquele momento (ibidem, p. 336).

Von Mises, no entanto, afirma que não é seu objeto na discussão da história “a análise dos problemas controversos da pureza racial e da miscigenação”, nem “investigar os méritos do programa político do racismo” (ibidem). Dessa forma, embora assumindo o racismo biológico como um dado a priori, posto que não calcado em qualquer evidência além de afirmações vagas, von Mises livra-se de ter que fundamentar sua teoria da história na biologia.

Apesar de descartar as políticas racistas como consequência de sua teoria da história, ao admitir o racismo biológico como ponto de partida, von Mises afirma, no mínimo, a compatibilidade de sua teoria da história com as políticas racistas. Se a teoria da história de von Mises não deve se pronunciar sobre tais pressupostos biológicos, se o mundo da mente humana é separado do mundo material no qual se incluem os fatos biológicos e se, de acordo com von Mises, a história afirma a “superioridade da raça branca”, resta apenas uma teoria racista da história no autor. Livre dos fatos biológicos, os “fatos da história”, segundo von Mises, corroboram que “até o momento” se estabeleceu a “superioridade da raça branca”.

Ao colocar de forma cética o argumento do racismo biológico e ao mesmo tempo afirmar a superioridade de uma suposta “raça” sobre as outras na história, a refutação da teoria das raças pela biologia – algo já estabelecido hoje – não levaria à negação de políticas racistas. Sob esse aspecto, o racismo contido na teoria de von Mises revela-se ainda mais profundo e pernicioso que o racismo biológico. O racismo cultural, característico da extrema direita contemporânea, é uma conclusão implícita no argumento de von Mises. [4]

A manutenção da civilização capitalista, que seria um feito da “raça branca” segundo von Mises, implicaria políticas racistas que contivessem os “não-caucasianos” que “odeiam e desprezam o homem branco”, que “planejam sua destruição e se comprazem no orgulho extravagante de sua civilização” (ibidem, p. 332). Tais afirmações de von Mises, em que pese sua recusa em se pronunciar sobre políticas racistas, não deixam de ser uma defesa implícita de tais políticas.

O racismo é apenas a faceta mais repugnante do argumento aristocrático de von Mises. A defesa das diferenças naturais e da superioridade de alguns em relação a outros estende-se da relação entre as supostas “raças” para a relação entre governantes e governados na política e entre indivíduos na economia.

Segundo von Mises, a defesa Iluminista da democracia baseava-se na defesa da superioridade intelectual e moral do povo frente aos monarcas e à aristocracia. (von Mises, 1985, p. 42) Von Mises vê na defesa da democracia pelo liberalismo antigo um equívoco, pois “o povo é a soma de todos os cidadãos individuais; e se alguns indivíduos não são inteligentes e nobres, então todos juntos também não o são” (ibidem). Com base nisso, von Mises defende a democracia como “o governo dos melhores”, ainda que os melhores aqui sejam aqueles capazes de convencer os outros de que são qualificados para governar. (ibidem, p. 42-43)

Outra diferença apontada por von Mises entre o liberalismo clássico e o neoliberalismo é a concepção da evolução histórica. O liberalismo clássico acreditava em uma evolução progressiva, iluminada pela razão e pelo conhecimento, que levaria a sociedade a se conformar aos princípios do liberalismo, supostamente naturais e derivados da razão. (ibidem, p. 157) O liberalismo clássico defendia essa progressão da aplicação de seus princípios com base na igualdade natural das capacidades intelectuais de todos.
(ibidem)

Aqui o argumento da desigualdade natural é mobilizado por von Mises para contrapor-se ao argumento do liberalismo clássico, afirmando que “as massas carecem da capacidade de pensar logicamente” (ibidem). Von Mises acrescenta que o programa do liberalismo não poderia se realizar por uma evolução natural, porque mesmo que a sua suposta racionalidade fosse reconhecida, “os ganhos momentâneos” decorrentes de “vantagens especiais” pareceriam mais importantes que os “ganhos maiores e duradouros que devem ser adiados” (ibidem). Von Mises atribui isso à falta de “força de vontade”, que, ao lado da “incapacidade intelectual da maioria das pessoas” (ibidem), as impediria de suportarem o “sacrifício provisório que toda ação social demanda” (ibidem, p. 158).

Claro está que se alguns são naturalmente mais capazes que outros, alguns são predestinados a governar. Mas a democracia política liberal é um incômodo para o argumento aristocrático. Os “melhores” devem convencer as massas “intelectualmente incapazes” de que são os melhores. Tal tarefa inglória das pobres elites estaria sempre fadada ao fracasso pela ignorância “natural” das massas. A democracia política liberal nunca é uma democracia perfeita em um argumento aristocrático. A democracia perfeita para as elites deve ser buscada em outro lugar e não na política. É na economia neoliberal que o governo dos supostamente melhores poderia se dar sem amarras.

Von Mises defende a desigualdade da propriedade como a única forma de aumentar o produto e o bem-estar material. Deste modo, a manutenção da propriedade privada não representaria a manutenção de um privilégio, argumenta von Mises, mas “uma instituição social para o bem e o benefício de todos, mesmo que esta seja especialmente agradável e vantajosa para alguns” (ibidem, p. 30). Ou seja, a desigualdade beneficiaria a todos, mas beneficiaria mais alguns do que outros. Sendo natural, essa desigualdade não constituiria um privilégio, mas uma predestinação.

A mesma lógica de argumentação se dá em relação à desigualdade na distribuição da renda. Novamente, o argumento é subordinado à eficiência econômica, entendida no sentido de proporcionar o crescimento do produto (ibidem, p. 31). Von Mises vai mais longe nesse ponto, ao defender o consumo de luxo como um indutor de inovações tecnológicas e, portanto, do crescimento econômico (ibidem, p. 32). Deste modo, von Mises está mais próximo de Malthus na defesa da necessidade econômica da aristocracia e distante das advertências do liberal Adam Smith contra a prodigalidade dos ricos.

De acordo com von Mises, a origem da desigualdade econômica está na desigualdade natural. Alguns se beneficiam mais da propriedade privada que outros, têm uma renda maior que outros e consomem bens de luxo por serem naturalmente mais capacitados que outros. São predestinados pela natureza a serem proprietários e ricos. O argumento de von Mises com relação à origem natural da desigualdade econômica, no entanto, é ocultado pela aparente defesa da soberania do consumidor.

Von Mises afirma que na economia de mercado são os consumidores que selecionam os vencedores no mercado. Os lucros “derivam sempre de uma correta previsão da situação futura” (von Mises, 1990, p. 928-929); portanto aqueles que conseguem se manter como proprietários são os naturalmente mais bem-dotados em suas capacidades mentais. Mas estes estariam subordinados à vontade dos consumidores. Von Mises afirma que “é o consumidor que faz algumas pessoas ricas e outras pobres” (von Mises, 1990a, p. 50), e os que obtêm lucros são os que “estão em condições de atender as necessidades mais urgentes do público” (von Mises, 1990, p. 927).

Tal capacidade de “atender as necessidades” do público, sendo oriunda de uma desigualdade natural, não pode ser atribuída ao mérito, mas a uma predestinação. Em segundo lugar, os empreendedores parecem fugir do conceito formal de ação como livre exercício da vontade, pois suas vontades são determinadas pelo público, identificado por von Mises com os consumidores. Assim, von Mises, em um artifício de retórica, coloca aparentemente os empreendedores não como homens que exercem a sua vontade autodeterminada, mas como subordinados a um mestre, à massa dos consumidores. (von
Mises, 1990a, p. 22)

Os artifícios de retórica para a apologia do neoliberalismo não são capazes de ocultar o argumento aristocrático de von Mises. Aparentemente, uma economia de mercado seria uma democracia governada pelas massas. A democracia de mercado, afirma von Mises, é “aquela em que cada centavo significa um voto” (ibidem, p. 81). Como os empreendedores que detêm a propriedade dos meios de produção e têm uma renda maior também são consumidores, a retórica da soberania do consumidor é a retórica de um populismo elitista. [5] Aqueles que são predestinados por sua maior capacidade natural de antecipar os desejos dos consumidores têm um “voto” de maior peso na “democracia do mercado”. A democracia do mercado é uma democracia aristocrática, um oximoro.

O populismo elitista de von Mises no que se refere à “democracia do mercado” é explicitado quando confrontado com a afirmação de que “as massas carecem da capacidade de pensar logicamente” (von Mises, 1985, p. 157). Sendo coerente com os argumentos de von Mises, como os consumidores são a massa da economia, estes careceriam de tal capacidade e, portanto, uma economia de mercado em que os consumidores são os mestres seria irracional. O argumento aristocrático da superioridade natural das elites, portanto, deve “corrigir” a soberania das massas. Von Mises afirma que os “consumidores como seres humanos são dados ao erro” (von Mises, 1990a, p. 28) e “é dever da elite induzi-los a alterar seu modo de vida ‘voluntariamente’” (ibidem).

Mas a elite econômica é formada pelos empreendedores, cujo voto no mercado tem maior peso. Assim, quem deve ensinar as massas dos consumidores qual deve ser o modo de vida correto são os empreendedores – ou seja, os capitalistas. Obviamente, a vontade das massas dos consumidores nesse caso não é autodeterminada, mas induzida. Sua liberdade é a liberdade de ser manipulado pelas elites. Não há dúvida sobre quem é o “mestre” e “soberano” na economia de mercado.

Von Mises mobiliza aqui o argumento de Pareto de que no capitalismo as elites estão em contínua mudança. (von Mises, 2009, p. 34) No entanto, se as desigualdades de capacidades são naturais, a mudança contínua dos indivíduos que compõem as elites só pode se dar no restrito limite dos naturalmente predestinados a fazer parte da elite.

Com o argumento da circulação das elites, von Mises avança o argumento do caráter meritocrático do capitalismo. Cada um só pode “culpar a si mesmo” se não chega à elite. (ibidem, p. 35) Mas sendo as capacidades humanas naturalmente diferentes e hierárquicas, segundo o próprio autor, ninguém poderia culpar a si mesmo pelas dotações que a natureza lhe deu. O argumento meritocrático só ganha coerência se for tido como uma “lição” das elites superiores sobre o “modo de vida” das massas inferiores, isto é, a aceitação “voluntariamente induzida” de sua condição material inferior.

O argumento aristocrático dá sentido a pontos aparentemente obscuros da teoria da história de von Mises. As “boas ideias” tornam-se ideologia quando a elite predestinada pela natureza cumpre o seu dever de “induzir as massas a alterar voluntariamente seu modo de vida” (von Mises, 1990a, p. 28). Embora von Mises afirme uma raiz biológica para a superioridade natural das elites, não é um mecanismo análogo ao biológico que define o caminho da história. O mecanismo que explica o desenvolvimento histórico para von Mises é de natureza religiosa e aristocrática. Sem uma teologia não é mais o Ser espiritual superior que guia a história na direção definida por sua vontade, mas a elite composta pelos homens naturalmente “superiores” que o fazem.

A teoria formal da ação ganha assim um conteúdo preciso e definido com o argumento aristocrático de von Mises. A vontade da elite predestinada é autodeterminada. As massas devem se contentar em mudar seu modo de vida “voluntariamente” induzidos pela elite; caso as massas persistam na ignorância, só resta às elites induzirem coercitivamente a mudança em seu modo de vida. Um comportamento voluntário induzido não é um comportamento autodeterminado, mas a vontade das massas tem como causa a vontade das elites. No liberalismo de von Mises, apenas as elites têm sua vontade autodeterminada, apenas elas são livres. Sua defesa da liberdade é a defesa da liberdade de alguns induzirem a vontade de outros, pela coerção física quando necessário.

O argumento aristocrático de von Mises é completamente compatível com uma ditadura de elite, mesmo que essa deva se manter somente durante o “tempo necessário” para mudar o pensamento “das massas” (von Mises, 1985, p. 45). Cabe observar que a defesa que von Mises faz de uma “ditadura temporária de elite” não é apenas teórica. Em 1934, von Mises tornou-se membro da Frente Patriótica austríaca, com a carteira número 28632 (Hülsmann, 2007, p. 677, n. 149). A Frente Patriótica foi estabelecida como partido único da Áustria pelo chanceler Engelbert Dollfuss, chanceler da Áustria em 1933, após se aliar à Itália então governada pelo partido fascista de Mussolini, dissolver o parlamento e governar com bases em leis emergenciais; ou seja, após estabelecer uma ditadura temporária de elite.

6. Considerações finais: o neoliberalismo como reação
Demonstrou-se nesse artigo que o neoliberalismo de von Mises fundamenta-se em uma ontologia religiosa e em argumentos aristocráticos. Pode parecer estranho a fusão do liberalismo com o pensamento religioso e aristocrático. No plano ideológico, o liberalismo combateu o pensamento aristocrático e religioso durante o alvorecer do pleno desenvolvimento do capitalismo no século XVIII, a despeito das diferenças que se possam observar entre a ideologia e a prática. É preciso assinalar que o neoliberalismo de von Mises é orientado pela obsessiva cruzada contra tudo que ele identificava como socialismo. O “tudo” que identifica, de facto, como socialismo é qualquer coisa que seja minimamente favorável aos trabalhadores, mesmo dentro dos marcos do capitalismo e da democracia liberal. A natureza da ameaça ao capitalismo mudou, já não é mais o clero e a nobreza, mas os trabalhadores ou, como denomina von Mises, “a massa”.

Pode se entender isso a partir da natureza política da contraposição de von Mises ao materialismo. Já no período iluminista, o materialismo continha elementos perigosos para a manutenção da ordem capitalista; mas como ele combatia o “Ancién Regime”, ainda era aceitável. Von Mises afirma que o materialismo se sustentou a partir de meados do século XIX por motivos políticos. Essa observação não é meramente casual; na verdade, o materialismo tornou-se perigoso para a manutenção da ordem capitalista a partir do momento que se tornou materialismo histórico. A partir daí, qualquer materialismo deve ser combatido pelos partidários da ordem – e von Mises é um de seus maiores aficionados.

Para combater o materialismo, os neoliberais buscam fundamentos na ideologia da reação feudal à ascensão do capitalismo. A ideologia de natureza religiosa, qualquer que seja a denominação desta, cumpre um papel fundamental na cruzada neoliberal. A religião não só é potencialmente capaz de induzir uma mudança “voluntária” no comportamento das massas, como mobiliza argumentos justificados apenas pelo sentimento da fé, “irrefutáveis pela evidência empírica”. Visto sob esse prisma, é possível entender que a defesa radical do neoliberalismo venha acompanhada não simplesmente da tolerância religiosa de Voltaire, mas do fundamentalismo religioso de Joseph de Maistre. [6] Mas se trata não apenas de uma aliança, consagrada na encíclica Centesimus Annus (1991) de João Paulo II, mas de uma verdadeira fusão encontrada também na “teologia da prosperidade” pentecostal. Ademais, o neoliberalismo é defendido com um fervor religioso que deixa seus adeptos imunes à contestação empírica e à argumentação lógica.

Da mesma forma, a defesa da igualdade natural dos homens já não serve mais à manutenção do capitalismo. No século XVIII, os defensores do capitalismo tinham na nobreza que se via como naturalmente superior aos “comuns” um inimigo a ser combatido. Agora, são os “comuns”, isto é, os trabalhadores, que representam a maior ameaça à manutenção do capitalismo. A nova aristocracia já não é mais a nobreza proprietária de terras, mas os empreendedores – leia-se os capitalistas –, a suposta “raça” branca e os intelectuais neoliberais.

A oposição ideológica entre a democracia liberal e o absolutismo transforma-se em uma bizarra síntese na democracia aristocrática, no populismo elitista. A igualdade natural é substituída pela suposta superioridade e pela predestinação natural da nova aristocracia. O argumento aristocrático serve às autodenominadas elites para induzir os trabalhadores a se conformarem voluntariamente com sua condição. Se o céu das elites não é alcançado pelas massas terrenas, restaria a essas a autodepreciação induzida.

Notas

[1] A primeira obra de von Mises que visa a reconstrução e renovação do Liberalismo é “Liberalismus” publicado em Alemão em 1927. Os argumentos referentes à teoria do conhecimento e a praxeologia ainda não estavam elaborados nessa primeira obra e foram desenvolvidos no livro “Nationalekonomie”, escrito entre 1934 e 1939 e publicado em alemão em 1940. Uma versão modificada desse livro aparece em inglês em 1949 no livro Human action, mas a substância dos argumentos são mantidos. Em obras posteriores, como em Theory and history (1957) e The ultimate foundation of economic science (1962), von Mises aplica e desenvolve para questões especificas o conteúdo dos argumentos contido em Human action. A aplicação e desenvolvimento dos argumentos de Human action aparecem também na série de palestras proferidas em 1958 na Argentina e posteriormente publicas sob o título de “As seis lições”.

Pode-se afirmar, portanto, que os elementos mais substanciais da constituição do neoliberalismo de von Mises deram-se no período entre guerras. Embora haja reelaborações, aplicações e desenvolvimentos em obras posteriores a esse período seus argumentos metodológicos, sua defesa do liberalismo e o argumento aristocrático permanecem como uma constante. Muitos argumentos são repetidos em várias obras, muitas vezes literalmente, outras com adições ou omissões. A crítica ao otimismo do “velho liberalismo” em relação às massas contida em “Liberalismo” de 1927, por exemplo, reaparece modificado em alguns detalhes em todas as edições de “Ação humana”. Do mesmo modo, os argumentos sobre a praxeologia e a história contidos em “Ação humana” reaparecem desenvolvidos mas não substancialmente modificados em “Theory and history” e em “The ultimate foundation of economic science”.

[2] Qualquer afirmação de natureza epistemológica, isso é sobre como conhecemos algo, supõe um comprometimento ontológico, isto é, uma afirmação sobre o que conhecemos. Mesmo o ceticismo epistemológico, ao asseverar que nada podemos afirmar sobre o que conhecemos independente do próprio ato de conhecer, faz uma afirmação sobre o que
conhecemos.

[3] Tecnicamente a metafísica é entendida como a ciência das categorias, que compreende a ontologia – a ciência do ser enquanto ser – como um de seus ramos. Mas se a partir de Kant a ontologia é entendida em sua relação com a epistemologia como se referindo ao que conhecemos, é possível fazer uma distinção em relação ao que se assevera sobre o que conhecemos. Em uma ontologia realista o que conhecemos é o existente. Em uma ontologia realista afirma-se que conhecemos aquilo que o existente é – sua essência ou quididade – e que somente é algo, ou seja, têm uma essência, aquilo que
existe. Essência e existência não existem em dois mundos separados, trata-se de uma ontologia da imanência. Já a metafísica assevera que podemos conhecer a essência independente da existência. Assim afirma Aquino: “Efetivamente posso conceber o que é o homem ou a fênix e apesar disso ignorar se existem entre as coisas da natureza. Logo é evidente que o ser se distingue da essência ou da quididade, exceto se existir alguma coisa cuja quididade seja o ser” (Aquino, 2008, p. 30) Deste modo, afirma-se uma ontologia de dois mundos, um referente às essências, metafísico – aqui significando além do existente, transcendente – e outro o mundo existente.

[4] Em que pese as muitas mediações entre as práticas e afirmações de adeptos da teoria de um autor, é possível ilustrar a compatibilidade entre as teorias de von Mises e o racismo com a postura de seus difusores contemporâneos, reunidos no von Mises Institute dos EUA. Lee Rockwell Jr., um dos fundadores do von Mises Institute, exalta a resistência dos estados do sul dos EUA à legislação dos direitos civis, e Murray Rothbard, outro fundador do von Mises Institute, aprovou o “populismo de direita” de David Duke, membro da Klu Klux Klan e um dos maiores defensores da “supremacia branca” nos EUA (New York Times, 25 de janeiro de 2014).

[5] Trata-se aqui de uma analogia com o populismo de elite característico do fascismo universal, de acordo com Umberto Eco. Tal analogia é relevante, pois se defende nesse artigo que o neoliberalismo é uma ideologia aristocrática, da mesma forma que o fascismo, de acordo com a caracterização de Eco. Segundo a retórica do populismo de elite, qualquer um poderia fazer parte da elite, mas para haver elite deve haver “inferiores” e a participação no grupo de elite baseia-se no “desprezo pelo mais fraco”, reforçando um sentido do elitismo de massas. (Eco, 1995, p. 7)

[6] Joseph de Maistre (1753-1821), jurista nascido no reino de Savóia. Foi um feroz oponente do Iluminismo e da revolução francesa, apologista do cristianismo e referência do pensamento conservador. Há pelo menos uma referência elogiosa de von Mises a de Maistre e outros autores anti-iluministas: “foram pensadores como Burke e Haller, Bonald e de Maistre que chamaram a atenção para o problema que os liberais não haviam percebido. Foram eles que souberam avaliar o pensamento das massas mais realisticamente do que seus adversários” (von Mises, 1990, p. 1177)

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