sábado, 15 de novembro de 2025

Economia Solidária e a Nova Racionalidade do Desenvolvimento: a autogestão como forma social da coerência econômica

Como a organização solidária do trabalho pode transformar o excedente produtivo em soberania social e reconstrução nacional**

Por Almir Cezar Filho*

Resumo
A Economia Solidária é apresentada como dimensão social e territorial da teoria da acumulação coerente, integrando os conceitos de Preobrazhensky, Kalecki e Furtado em uma perspectiva marxista-estrutural contemporânea.
Mais que uma política pública ou alternativa de renda, ela constitui um novo paradigma de racionalidade econômica, baseado na autogestão, na propriedade coletiva e na reintegração entre trabalho e comunidade.
O artigo analisa suas formas organizacionais, seus instrumentos financeiros (bancos comunitários, moedas sociais, microcrédito orientado), e sua integração com o planejamento estatal e territorial.
Defende que a Economia Solidária é o elo que liga a coerência macroeconômica e a redistribuição social, completando o ciclo iniciado nos artigos anteriores sobre crescimento garantido, doença egípcia e acumulação primitiva nacional.
Como síntese teórica e prática, propõe que o desenvolvimento brasileiro do século XXI depende da capacidade de transformar solidariedade em estrutura produtiva e excedente em emancipação.

Palavras-chave
Economia solidária; autogestão; desenvolvimento; planejamento econômico; acumulação coerente; Preobrazhensky; Kalecki; Celso Furtado; cooperativismo; economia popular; soberania produtiva; Estado solidário.

I. Introdução – O retorno do trabalho como sujeito do desenvolvimento

A Economia Solidária surge, nas últimas décadas, como uma das expressões mais avançadas da crítica prática ao capitalismo contemporâneo. Ela não é mero programa compensatório de geração de renda nem política pública de combate à pobreza, mas a reemergência da auto-organização dos produtores — trabalhadores que retomam, de forma coletiva e consciente, o controle sobre os meios, os fins e os frutos do seu próprio trabalho. Trata-se de uma racionalidade econômica alternativa, enraizada em valores de cooperação, sustentabilidade e justiça social, que se contrapõe frontalmente à lógica do lucro e da acumulação privada do capital.

Num cenário de crise estrutural da globalização neoliberal, desindustrialização prolongada e precarização do trabalho, a Economia Solidária reaparece como projeto de reconstrução produtiva e social a partir de baixo. Enquanto o capitalismo convencional concentra renda e mercantiliza a vida, a economia solidária descentraliza a produção, redistribui o excedente e restabelece os laços entre economia e comunidade. Ela opera onde o mercado fracassa e o Estado se ausenta — mas vai além da mera substituição: propõe uma nova forma de planejamento democrático da produção e do consumo, em que a finalidade é a reprodução ampliada da vida, não do capital.

Essa perspectiva dialoga com as formulações de Preobrazhensky, que, ao teorizar a acumulação socialista primitiva, identificou o papel histórico das formas não capitalistas na transição ao desenvolvimento planificado. Também se aproxima de Kalecki, para quem a dinâmica macroeconômica só é sustentável quando a distribuição funcional da renda sustenta o investimento produtivo e o pleno emprego. E, ainda, de Celso Furtado, que via na articulação entre estrutura produtiva, cultura e solidariedade social o núcleo do verdadeiro desenvolvimento. A Economia Solidária, nesse sentido, é a tradução microeconômica e territorial dessa coerência macroestrutural — uma forma de desenvolvimento endógeno, inclusivo e socialmente racional.

Diferente de programas assistenciais ou políticas de subsistência, a Economia Solidária se ancora na autonomia dos trabalhadores e no enraizamento comunitário da produção. Suas experiências — cooperativas, empresas recuperadas, redes de produtores, bancos comunitários, moedas sociais e tecnologias sociais — compõem um mosaico de resistência e inovação que desafia a hegemonia da empresa capitalista tradicional. Cada experiência local, por pequena que pareça, representa um ato de reconstrução da economia nacional a partir de suas bases sociais, culturais e ecológicas.

Por fim, a Economia Solidária ocupa um lugar estratégico na nova teoria do desenvolvimento que propomos ao longo desta série. Se o primeiro artigo tratou da coerência macroeconômica entre crescimento e estabilidade, e o segundo diagnosticou a “doença egípcia” como estagnação estrutural das economias dependentes, e o terceiro resgatou a acumulação primitiva nacional como fundamento da reindustrialização soberana, agora a Economia Solidária fecha o ciclo ao apresentar o sujeito social desse processo: o trabalho coletivo, consciente e autogestionário. É nele que o desenvolvimento se reconcilia com o humano — onde a economia volta a servir à sociedade, e não o contrário.

II. Fundamentos teóricos e críticos da Economia Solidária

A Economia Solidária não é uma invenção recente, nem tampouco um modismo social. Suas raízes remontam às experiências de autogestão operária e cooperativismo do século XIX, quando trabalhadores buscavam, diante da exploração industrial, organizar-se em sistemas próprios de produção, consumo e crédito. No entanto, o que hoje se compreende por Economia Solidária transcende o cooperativismo tradicional: ela não é apenas uma estratégia de sobrevivência dentro do capitalismo, mas a pré-figuração de uma outra lógica econômica, fundada na associação voluntária, na partilha do excedente e na democratização das decisões produtivas.

No plano teórico, a Economia Solidária se situa na confluência de três grandes tradições críticas. A primeira é a marxista, que reconhece no trabalho coletivo o princípio de toda riqueza e, portanto, na autogestão, uma antecipação prática das formas superiores de sociabilidade. A segunda é a institucionalista-polanyiana, que resgata o caráter social e moral da economia, recolocando a produção e o mercado sob regulação comunitária e política. E a terceira é a tradição latino-americana do desenvolvimento estruturalista, que vê na articulação entre economia popular e política pública um caminho para superar a dependência e a exclusão estrutural.

Nesse sentido, a Economia Solidária se opõe simultaneamente a duas deformações: à mercantilização total da vida, imposta pelo neoliberalismo, e à burocratização estatal que sufoca a iniciativa popular. Ela se ergue como um terceiro polo de racionalidade econômica, no qual a eficiência é redefinida em termos de utilidade social, e a produtividade se mede pela capacidade de satisfazer necessidades humanas e ambientais. É a síntese entre a espontaneidade das comunidades e o planejamento racional do desenvolvimento — uma forma de auto-organização regulada, que expressa a sociedade se produzindo conscientemente a si mesma.

A crítica fundamental que a Economia Solidária dirige ao capitalismo é que este rompeu a unidade entre trabalho e comunidade, separando a produção da finalidade social. A reaproximação desses polos redefine o sentido do desenvolvimento: não se trata apenas de acumular capital, mas de reconstituir os vínculos sociais, territoriais e ambientais destruídos pela acumulação privada. A propriedade coletiva dos meios de produção e a gestão democrática são, assim, menos uma forma jurídica do que uma forma social de racionalidade econômica.

Sob a ótica da teoria do valor, essa economia representa uma reconfiguração do processo de produção e apropriação do excedente. Enquanto no capitalismo o excedente se autonomiza e se acumula em detrimento da reprodução social, na economia solidária ele é reinvestido na comunidade — em novas formas de trabalho, educação, cultura, tecnologia e infraestrutura social. É uma forma embrionária, porém concreta, de “planejamento democrático do excedente”, aquilo que Preobrazhensky identificava como o embrião do planejamento socialista dentro do mercado.

Ao mesmo tempo, a Economia Solidária opera dentro e contra o mercado. Dentro, porque ainda depende de fluxos monetários, insumos e canais de distribuição; contra, porque redefine as finalidades e os critérios de eficiência. Essa dualidade não é fraqueza, mas força: ela a torna um campo de transição, onde coexistem práticas de autogestão, redistribuição e inovação social, capazes de apontar para novas formas de acumulação — solidária, ecológica e endógena.

Por isso, mais que um “setor da economia”, a Economia Solidária é uma nova racionalidade econômica em formação. Sua expansão depende não apenas de apoio estatal, mas de integração com o sistema produtivo nacional e de uma mudança cultural mais profunda — a reconciliação entre economia e ética, entre desenvolvimento e solidariedade. É, portanto, o fundamento ético e social daquilo que nos artigos anteriores chamamos de coerência estrutural: a reintegração entre as dimensões macroeconômica, produtiva e humana do desenvolvimento.

III. Formas organizacionais e instrumentos econômicos

A Economia Solidária manifesta-se por meio de uma diversidade de formas organizacionais autônomas e cooperadas, que materializam, em diferentes graus, a autogestão produtiva e a apropriação coletiva do excedente. São laboratórios sociais de uma nova racionalidade econômica, onde o trabalho volta a ser sujeito do processo de acumulação e a produção se ordena pela utilidade social. Nesse universo plural, cooperativas, empresas recuperadas, coletivos de produtores, redes alternativas e empreendimentos comunitários formam um ecossistema que desafia a hegemonia da empresa capitalista e a passividade das políticas assistenciais.

As cooperativas populares e de produção representam o núcleo histórico e simbólico da economia solidária. Nelas, a propriedade é coletiva, o comando é democrático e a renda é distribuída segundo a contribuição do trabalho, não do capital. As empresas recuperadas por trabalhadores, por sua vez, expressam a autogestão em sua forma mais combativa: a transformação da crise capitalista em oportunidade de reapropriação produtiva. Já os coletivos de produtores e redes solidárias surgem como formas flexíveis e descentralizadas, articulando territórios, ofícios e saberes em sistemas de produção e comercialização cooperada.

No campo financeiro, desenvolveu-se um conjunto de instrumentos de crédito solidário que visam democratizar o acesso aos recursos e romper o monopólio dos grandes bancos sobre o financiamento da produção. Os bancos comunitários, como o pioneiro Banco Palmas, representam a expressão institucional mais madura dessa lógica: operam com base em confiança social e vínculos territoriais, promovendo a circulação local da renda e reduzindo a dependência de capitais externos. As moedas sociais — emitidas e reguladas por comunidades — constituem instrumentos de soberania monetária de escala local, que internalizam o valor e impedem sua drenagem pelos circuitos financeiros globais.

O microcrédito produtivo orientado completa essa arquitetura financeira ao oferecer crédito acompanhado de assistência técnica, educação cooperativa e planejamento de negócios. Trata-se de uma forma de crédito “com alma”, que substitui a intermediação bancária por vínculos pedagógicos e solidários. Essas iniciativas convergem para a formação de ecossistemas financeiros solidários, integrando crédito, poupança, produção e consumo dentro de um mesmo território ou rede comunitária.

A economia solidária também se consolida por meio de circuitos alternativos de comercialização. As feiras, redes de trocas, lojas coletivas e plataformas digitais cooperadas constituem canais de distribuição que conectam produtores e consumidores fora da lógica do intermediário capitalista. Ao mesmo tempo, políticas públicas de compras governamentais e alimentação escolar têm se mostrado poderosas alavancas para dar escala e estabilidade a esses empreendimentos, ao garantir demanda previsível e preços justos. Dessa forma, o Estado, quando atua como consumidor solidário, converte-se em agente de planejamento e redistribuição.

Outro campo em franca expansão é o das tecnologias sociais, que articulam conhecimento científico, saber popular e inovação tecnológica em processos de desenvolvimento endógeno. Elas permitem elevar a produtividade e a sustentabilidade das cooperativas e empreendimentos solidários sem reproduzir a dependência tecnológica do capitalismo industrial. Nesse sentido, constituem o embrião de uma base técnico-produtiva alternativa, alinhada à transição ecológica e à economia de baixo carbono.

Todas essas formas — financeiras, produtivas, comerciais e tecnológicas — apontam para uma convergência essencial: a construção de uma infraestrutura solidária da economia nacional. Se a economia capitalista se estrutura sobre o tripé empresa–mercado–banco, a economia solidária ergue o seu próprio tripé: cooperativa–rede–comunidade. Esse é o seu sistema nervoso e sua base material, capaz de sustentar uma nova etapa de desenvolvimento que seja simultaneamente inclusiva, sustentável e soberana.

IV. Políticas Públicas e Estado Solidário

A Economia Solidária não se sustenta apenas na vontade autônoma dos trabalhadores, mas requer um ambiente institucional capaz de proteger, articular e expandir suas experiências. A autogestão, isolada, tende a sucumbir sob as pressões do mercado capitalista; por isso, sua consolidação depende de um Estado que reconheça, financie e planeje a economia cooperativa como parte integral da estratégia nacional de desenvolvimento. É o que se pode chamar de Estado Solidário — não um aparato paternalista ou assistencial, mas um mediador ativo entre o excedente econômico e a reprodução social.

No Brasil, esse projeto encontrou expressão institucional na criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) e na constituição do Conselho Nacional de Economia Solidária, ambos vinculados ao Ministério do Trabalho e Emprego. Tais espaços representaram o reconhecimento, ainda que parcial, de que o desenvolvimento não pode ser reduzido à macroeconomia de mercado, mas deve incorporar formas alternativas de produção e de sociabilidade. A SENAES foi concebida não apenas como uma instância de fomento, mas como núcleo de formulação de política pública, capaz de integrar crédito, capacitação, assistência técnica e comercialização solidária sob um mesmo marco estratégico.

No entanto, a consolidação da Economia Solidária como política de Estado exige superar três limites estruturais. O primeiro é o da descontinuidade institucional — o desaparecimento cíclico de programas e a alternância política que desestrutura redes de apoio e financiamento. O segundo é o da fragmentação administrativa, que dispersa as ações entre diferentes ministérios e impede o planejamento intersetorial. O terceiro é o da falta de corpo técnico especializado, capaz de formular, executar e monitorar políticas voltadas à autogestão e à economia popular. Sem servidores estáveis e carreira técnica voltada à economia solidária, as políticas permanecem reféns de convênios temporários e da rotatividade política.

A superação desses entraves requer a construção de uma governança pública solidária: descentralizada, mas coordenada; participativa, mas tecnicamente estruturada. É nesse ponto que a Economia Solidária se conecta diretamente à ideia de acumulação primitiva nacional, desenvolvida nos artigos anteriores. O excedente gerado pelos setores primário-exportadores — agronegócio, energia, mineração — pode e deve financiar fundos públicos de investimento solidário, voltados à formação de redes produtivas locais, agroindústrias cooperadas e empreendimentos comunitários de base tecnológica. O Estado solidário, nesse sentido, não é o oposto do mercado, mas seu planejador ético, responsável por redistribuir o excedente de modo produtivo e socialmente racional.

Programas como o Plano Nacional de Economia Solidária, o Programa de Microcrédito Produtivo Orientado, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) representam exemplos concretos dessa integração possível entre política social e política econômica. Cada um deles atua como elo de coerência entre produção, consumo e redistribuição, convertendo políticas públicas em instrumentos de planificação social. O desafio, contudo, é dotá-los de estabilidade orçamentária e de um horizonte estratégico comum — a transição para um modelo de desenvolvimento solidário e sustentável.

Mais do que uma política social, a Economia Solidária é uma política de Estado para o século XXI, pois responde simultaneamente à crise do emprego, à concentração de renda, à financeirização e à crise ambiental. Ao articular trabalho, território e solidariedade, ela oferece ao planejamento público um novo paradigma de regulação econômica, baseado não na concorrência, mas na cooperação organizada.

O Estado solidário é, assim, a expressão política do que Preobrazhensky chamou de “planejamento consciente da acumulação” e Kalecki de “crescimento garantido pelo investimento produtivo”. Sua função é restabelecer o elo perdido entre o macro e o micro, entre o excedente e a vida, entre a riqueza e a justiça. É ele que transforma o desenvolvimento de conceito em processo, e a economia solidária de experiência local em projeto nacional.

V. Intersecções com os Artigos Anteriores

A Economia Solidária ocupa, dentro do arcabouço teórico que vimos desenvolvendo, o lugar da síntese social da coerência econômica.
Se os artigos anteriores examinaram as determinações estruturais do desenvolvimento — o equilíbrio intersetorial do produto, a crise da dependência e o uso racional do excedente —, a Economia Solidária representa o momento em que essa coerência se encarna nas relações sociais e territoriais concretas de produção.
Ela é o elo entre a racionalidade do planejamento e a racionalidade da vida cotidiana; o ponto em que a economia deixa de ser abstração macro e volta a ser prática coletiva, organizada em torno do trabalho e da solidariedade.

No primeiro ensaio, Crescimento Garantido e Não Inflacionário, definimos que a estabilidade macroeconômica decorre da compatibilidade entre os ritmos de expansão dos setores produtivos, e não da austeridade fiscal.
A Economia Solidária atua como mecanismo microeconômico de coerência, pois realinha oferta e demanda dentro dos territórios, internalizando ciclos de produção, consumo e crédito.
Cada banco comunitário, cooperativa de produção ou rede de consumo solidário reduz a desproporção entre setores e regiões, estabilizando o sistema a partir da base — ou seja, transformando o princípio da coerência interdepartamental em prática social descentralizada.

No segundo texto, A Doença Egípcia, mostramos como as economias periféricas sofrem de inflação estrutural e estagnação produtiva não por excesso de gasto público, mas por gargalos internos e dependência tecnológica.
A Economia Solidária se apresenta como antídoto a essa síndrome, pois reconstrói as cadeias produtivas locais, diversifica a oferta e reduz a vulnerabilidade cambial.
Ao fortalecer circuitos curtos de produção e consumo, ela diminui a necessidade de importações e de divisas externas, atacando as causas reais da inflação dependente.
Em termos preobrazhenskianos, ela amplia o “departamento II” da economia (bens de consumo social), equilibrando o sistema e garantindo que o crescimento seja sustentável e não inflacionário.

No terceiro artigo, Do Boom Agrário à Nova Industrialização, formulamos o conceito de Acumulação Primitiva Nacional: a transferência planejada do excedente primário para a expansão dos setores industriais e tecnológicos.
A Economia Solidária completa essa equação ao oferecer o canal social de redistribuição desse excedente, garantindo que os frutos da acumulação produtiva se convertam em desenvolvimento humano.
Se a acumulação primitiva nacional é o motor, a Economia Solidária é o sistema circulatório — o conjunto de instituições, redes e práticas que fazem o excedente retornar às comunidades na forma de investimento, educação, trabalho e cidadania.

Dessa forma, os quatro textos articulam-se como níveis de uma mesma totalidade dialética:
1️⃣ a coerência estrutural (o equilíbrio macroeconômico),
2️⃣ a doença egípcia (o bloqueio dependente),
3️⃣ a acumulação primitiva nacional (a retomada produtiva), e
4️⃣ a economia solidária (a redistribuição social e territorial).
Cada um é uma dimensão de um mesmo processo de desenvolvimento planificado e soberano, que combina produtividade, estabilidade e justiça social em um modelo integrado.

Em suma, a Economia Solidária é a forma social da coerência estrutural, o ponto em que o planejamento econômico encontra o autogoverno dos produtores.
Ela realiza, no plano das relações humanas e territoriais, aquilo que Preobrazhensky teorizou como proporção econômica racional, Kalecki como crescimento garantido, e Furtado como desenvolvimento autêntico.
Assim, ela fecha o círculo iniciado pela trilogia anterior — não como apêndice social, mas como sujeito histórico da transformação econômica, a expressão viva da racionalidade coletiva que substitui o automatismo do capital pela consciência social do desenvolvimento.

VI. Desafios e Potencialidades da Economia Solidária no Brasil

Apesar de seu potencial transformador, a Economia Solidária enfrenta no Brasil desafios estruturais que limitam sua escala e continuidade.
O primeiro é a informalidade: muitos empreendimentos solidários operam à margem da legislação, sem registro adequado, acesso a crédito ou reconhecimento tributário. Essa informalidade, longe de ser uma falha moral, é resultado direto da exclusão econômica e burocrática — um sintoma de que o Estado e o sistema financeiro ainda não foram moldados para acolher formas não capitalistas de organização produtiva.
Enquanto o capital privado dispõe de arcabouço jurídico e incentivos fiscais, a produção autogestionária permanece em um limbo legal e administrativo, sobrevivendo por resistência e solidariedade.

O segundo desafio é a falta de crédito e infraestrutura.
As cooperativas e redes solidárias carecem de capital de giro, equipamentos e canais logísticos. As iniciativas de microcrédito e os bancos comunitários, embora exemplares, ainda são insuficientes diante da magnitude da economia popular brasileira.
Para que a Economia Solidária cumpra sua função estratégica, é necessário um sistema nacional de financiamento solidário, com fundos públicos descentralizados, taxas diferenciadas, assessoria técnica e integração com as políticas de desenvolvimento territorial e de inovação tecnológica.

O terceiro obstáculo é institucional e cultural: a falta de estabilidade política e administrativa.
A Economia Solidária ainda depende excessivamente da vontade de governos ou gestores específicos.
Cada mudança de ciclo político pode interromper programas, dissolver redes e dispersar experiências.
Isso demonstra a urgência de institucionalizar o campo, criando carreiras públicas específicas, marcos legais permanentes e estruturas orçamentárias próprias.
A consolidação da SENAES como secretaria de Estado autônoma, a criação de um Sistema Nacional de Economia Solidária (SINAESOL) e a inclusão da temática nos planos plurianuais seriam passos decisivos nessa direção.

Mas há, paralelamente, um conjunto de potencialidades históricas e estratégicas que fazem da Economia Solidária uma das chaves do desenvolvimento brasileiro contemporâneo.
O país reúne um vasto patrimônio de saberes populares, biodiversidade e capital social, que podem se transformar em fontes de inovação, tecnologia e sustentabilidade.
A integração entre economia solidária e bioeconomia, entre produção cooperada e transição energética, e entre agricultura familiar e compras públicas sustentáveis cria um campo de oportunidades inédito — capaz de articular justiça social, reindustrialização verde e soberania alimentar.

Além disso, a Economia Solidária pode cumprir papel central na reconfiguração territorial do desenvolvimento.
Ao contrário dos grandes polos industriais ou agronegócios concentrados, ela se enraíza em redes locais de produção e consumo, que irradiam dinamismo para periferias urbanas, regiões rurais e comunidades tradicionais.
Essa descentralização é, ao mesmo tempo, econômica e política: ela democratiza a base produtiva, redistribui poder e reverte o processo histórico de concentração geográfica da riqueza.

A conexão entre a Economia Solidária e o planejamento nacional deve, portanto, ser compreendida como condição de coerência entre o desenvolvimento econômico e a reprodução social.
Ao vincular programas de industrialização, transição ecológica e crédito verde à base popular da produção cooperada, o Estado pode criar um circuito virtuoso de acumulação solidária, no qual o excedente retorna às comunidades como investimento produtivo e bem-estar coletivo.
Em termos kaleckianos, trata-se de garantir uma taxa de investimento socialmente sustentada; em termos preobrazhenskianos, de planejar a proporção entre acumulação e consumo social; em termos furtadianos, de afirmar a autonomia do desenvolvimento como ato criativo e coletivo.

Por fim, a Economia Solidária é também um projeto cultural.
Ela exige uma nova ética econômica, baseada na reciprocidade, no valor de uso e na sustentabilidade.
Mais do que um modelo alternativo, ela propõe uma nova consciência econômica, na qual o desenvolvimento não se mede pelo PIB, mas pela capacidade da sociedade de se autogovernar, se reproduzir e se reconhecer no próprio trabalho.
Nesse sentido, a economia solidária não é apenas uma política, mas uma pedagogia da emancipação, a formação prática de um novo tipo de sujeito histórico — o trabalhador-coletivo, que une produção, cidadania e solidariedade.


VII. Conclusão – A Economia Solidária como Síntese da Coerência Social

A Economia Solidária representa, em sua essência, a reintegração entre economia, sociedade e política — aquilo que o desenvolvimento capitalista, em sua forma dependente e financeirizada, desagregou.
Ela é o contraponto prático à fragmentação contemporânea da vida econômica, em que o trabalho é reduzido a custo, a natureza a insumo e o Estado a gestor fiscal.
Ao recolocar a produção sob controle social e comunitário, a Economia Solidária restabelece o princípio fundamental da economia política: o de que toda riqueza tem origem no trabalho e deve retornar à sociedade como bem comum.

Do ponto de vista teórico, ela é o fechamento orgânico da Teoria da Acumulação Coerente que vimos construindo.
Se Preobrazhensky formulou o problema da transferência racional do excedente, se Kalecki definiu a compatibilidade macroeconômica do investimento e do consumo, e se Furtado compreendeu o desenvolvimento como processo criativo e coletivo, a Economia Solidária realiza a síntese social desses três movimentos.
É a forma pela qual o excedente produtivo retorna à sociedade não como redistribuição passiva, mas como acumulação social consciente — investimento coletivo em trabalho, saber, território e sustentabilidade.

Enquanto o capitalismo financeiro opera por extração e concentração, a economia solidária opera por retroalimentação e difusão.
Cada empreendimento autogestionário, cada banco comunitário e cada rede cooperada transforma a lógica da acumulação: o valor deixa de subir à pirâmide da concentração e passa a circular horizontalmente, fortalecendo laços sociais e multiplicando capacidades produtivas.
É um processo lento, descentralizado e cumulativo, mas profundamente revolucionário: nele, a eficiência não é a maximização do lucro, e sim a maximização da autonomia coletiva.

A Economia Solidária é também a expressão moral do planejamento econômico.
Ela demonstra que o planejamento não é sinônimo de coerção, mas de consciência social; não é o monopólio do Estado, mas a prática democrática da sociedade organizada.
Em cada cooperativa, em cada rede solidária, existe uma microforma de planificação — um exercício cotidiano de coordenação, partilha e decisão coletiva.
Essas experiências locais, quando articuladas e apoiadas por políticas públicas, configuram uma verdadeira infraestrutura social do desenvolvimento nacional.

O futuro do desenvolvimento brasileiro dependerá da capacidade de articular três dimensões complementares:
a produção de excedente (na economia real e agroindustrial),
a distribuição planificada desse excedente (via Estado e políticas de investimento),
e a reapropriação social da riqueza (pela economia solidária e comunitária).
Essa tríade — acumulação, coerência e solidariedade — constitui o esqueleto de um projeto de reconstrução nacional capaz de unir eficiência econômica, justiça social e sustentabilidade ambiental.

Em última instância, a Economia Solidária não é o “setor pobre” da economia, mas a semente do novo modo de produção, onde o valor social substitui o valor de troca, e o trabalho associado supera a forma mercantil.
Ela representa o momento em que o desenvolvimento deixa de ser promessa e torna-se prática — a materialização da solidariedade como princípio econômico.
Quando o Brasil compreender que o planejamento econômico e a autogestão popular são partes de um mesmo processo histórico, a solidariedade deixará de ser remendo e se tornará fundamento da soberania.


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