sábado, 1 de novembro de 2025

Do Boom do Agro à Nova Industrialização: o Agronegócio como Fonte de Acumulação Primitiva Nacional

Como o setor agroexportador pode financiar a reindustrialização, ampliar a complexidade produtiva e consolidar a soberania econômica do Brasil*

Por Almir Cezar Filho**

Resumo
O artigo propõe o conceito de acumulação primitiva nacional, inspirado em Evguêni Preobrazhensky e adaptado à realidade do capitalismo periférico contemporâneo. A partir da análise do boom do agronegócio brasileiro, o texto demonstra que o setor agroexportador, quando articulado a uma política de planejamento e investimento público, pode atuar como fonte de financiamento produtivo e tecnológico da reindustrialização. Diferente da “doença holandesa” e da “doença egípcia”, em que o campo atua como fator de regressão estrutural, a acumulação primitiva nacional propõe a transferência consciente e planejada do excedente agrário para os setores industriais, científicos e de infraestrutura.
Com base nas formulações de Preobrazhensky, Kalecki e Furtado, o artigo articula os conceitos de coerência estrutural, crescimento garantido e soberania produtiva, defendendo a criação de um novo pacto desenvolvimentista entre Estado, agronegócio, indústria e ciência. A tese central é que o Brasil dispõe hoje dos meios materiais para um novo ciclo de industrialização verde e digital — faltando-lhe apenas a consciência da necessidade, isto é, o planejamento econômico como instrumento de transformação nacional.

Palavras-chave
Acumulação primitiva nacional; agronegócio; reindustrialização; desenvolvimento econômico; coerência estrutural; crescimento garantido; Preobrazhensky; Kalecki; Celso Furtado; soberania produtiva; Brasil.


I. Introdução – O Paradoxo do Sucesso Agrário

O Brasil vive um paradoxo estrutural. Enquanto o agronegócio alcança níveis inéditos de produtividade, rentabilidade e inserção internacional, o país como um todo experimenta uma prolongada estagnação industrial e tecnológica. A agricultura, responsável por metade das exportações e por saldos comerciais que sustentam a estabilidade cambial, tornou-se a principal âncora macroeconômica de uma economia que, paradoxalmente, perdeu sua base manufatureira e sua capacidade autônoma de inovação.

A narrativa oficial — de que o sucesso do agronegócio seria suficiente para puxar o crescimento nacional — revela-se incompleta. O setor agroexportador gera riqueza, mas essa riqueza não se converte em desenvolvimento. Gera divisas, mas não acumulação produtiva; gera renda concentrada, mas não difusão tecnológica. A questão essencial, portanto, não é “se” o agronegócio pode contribuir para o desenvolvimento, mas como transformar seu excedente externo em base de reindustrialização interna.

Essa reflexão resgata, sob novas condições históricas, uma ideia seminal de Evguêni Preobrazhensky: a “acumulação socialista primitiva”. Em A Nova Economia, o autor defendia que, nas economias em transição, o Estado devia organizar a transferência do excedente gerado nos setores mais dinâmicos ou rentáveis para financiar a industrialização e a ampliação das forças produtivas. Aqui, reinterpretamos o conceito como acumulação primitiva nacional — um mecanismo de desenvolvimento endógeno no qual o Estado coordena e canaliza os excedentes do agronegócio, da energia e da mineração para a expansão da base produtiva, científica e tecnológica do país.

Trata-se, em essência, de restabelecer a coerência entre os setores da economia — algo que Preobrazhensky via como condição da estabilidade e Kalecki, como base do crescimento garantido. Numa economia periférica como a brasileira, o problema não é a escassez absoluta de recursos, mas sua má alocação estrutural. O excedente gerado pelo campo, em vez de financiar a diversificação produtiva, é drenado pelo rentismo, pela financeirização e pelas importações de bens industriais e tecnológicos. Assim, o que poderia ser um ciclo virtuoso de acumulação torna-se uma dependência reeditada: exporta-se tecnologia incorporada e importa-se a tecnologia essencial.

Este artigo propõe que o boom agrário, longe de ser um obstáculo, pode se tornar o motor de uma nova industrialização, desde que inserido em um projeto nacional de planejamento e de investimento coordenado. Reindustrializar, aqui, não significa negar o agronegócio, mas transformar sua força de geração de divisas e inovação em base material para a reconstrução industrial, tecnológica e científica do Brasil.

O desafio é político e estrutural: como organizar, no século XXI, uma estratégia de acumulação que não reproduza a dependência, mas a supere. A resposta não está no retorno ao modelo primário-exportador, nem na simples substituição de importações; está em criar uma economia complexa, verde e digital, capaz de converter a riqueza setorial em desenvolvimento nacional.

II. O Conceito de Acumulação Primitiva Nacional

O conceito de acumulação primitiva socialista, formulado por Evguêni Preobrazhensky na década de 1920, partia de uma constatação estrutural: economias em transição ao socialismo precisavam criar, dentro de si mesmas, mecanismos de transferência de excedente dos setores mais dinâmicos e rentáveis — muitas vezes ainda de base primária — para aqueles de produtividade socialmente mais elevada, sobretudo a indústria e a infraestrutura. Era um processo de transferência intersetorial planejada, comandado pelo Estado, que visava acelerar a formação de capital produtivo e tecnológico em uma economia que, de outro modo, permaneceria aprisionada à sua base atrasada.

Transportada para o capitalismo periférico contemporâneo, essa ideia ganha nova relevância. O que chamamos aqui de acumulação primitiva nacional não é a socialização forçada da renda, mas a coordenação política do excedente econômico para fins de desenvolvimento. Trata-se de resgatar o princípio de Preobrazhensky — o uso racional e consciente das fontes de acumulação — em um contexto em que o mercado, por si só, não cria as proporções necessárias entre os setores produtivos. O Estado nacional, portanto, deve operar como órgão de coerência econômica, redirecionando o fluxo de renda e crédito do setor primário-exportador para a reconstrução industrial e tecnológica.

Diferentemente da acumulação primitiva clássica, que se baseava na expropriação violenta de camponeses e colônias, a acumulação primitiva nacional seria planejada, distributiva e produtiva.
Não se trata de espoliar o campo, mas de integrar o campo ao projeto nacional — fazer do agronegócio e da agricultura familiar vetores complementares de um ciclo de desenvolvimento endógeno. Enquanto Preobrazhensky visava à formação de capital socialista, nós falamos aqui da formação de capital nacional, de matriz pública, tecnológica e sustentável, capaz de ampliar a autonomia produtiva frente ao capital estrangeiro e à dependência financeira.

Essa leitura converge com a teoria de Michał Kalecki, segundo a qual o crescimento sustentado depende da taxa de investimento garantido — isto é, da capacidade de poupança e do uso eficiente do capital.
No caso brasileiro, o agronegócio gera uma poupança real em divisas e excedente comercial que poderia, sob coordenação estatal, financiar o investimento produtivo interno: inovação industrial, infraestrutura, pesquisa e tecnologia. A dificuldade histórica reside em que essa poupança externa é drenada para o rentismo e o serviço da dívida, e não reinvestida em complexidade produtiva.

A acumulação primitiva nacional seria, portanto, o instrumento de reversão desse fluxo.
Ela implica transformar o Estado em mediador do desenvolvimento, e não apenas em gestor fiscal; em planejador e investidor, e não mero regulador. Nessa perspectiva, políticas como o Novo PAC, o Plano de Transformação Ecológica, o Funcafé, a Nova Indústria Brasil (NIB) e o BNDES Verde devem ser vistas não como gastos, mas como mecanismos contemporâneos de acumulação primitiva nacional — pontes entre o excedente primário e a reindustrialização tecnológica.

Em síntese, o conceito de acumulação primitiva nacional redefine o papel do agronegócio dentro de um projeto de desenvolvimento: ele deixa de ser um fim em si mesmo (um enclave exportador) para se tornar meio de financiar a economia complexa. O excedente que hoje estabiliza o câmbio e acumula reservas deve, no próximo estágio, financiar a infraestrutura, a indústria e a ciência, num movimento circular e virtuoso. Assim, o campo, que historicamente foi a base da dependência, pode se tornar a alavanca da soberania produtiva.

III. O Boom do Agronegócio e a Nova Base de Acumulação

O boom do agronegócio brasileiro das duas últimas décadas não é apenas uma história de sucesso setorial; é o espelho de uma transformação estrutural da economia nacional e global. A agricultura e a pecuária modernas deixaram de ser atividades exclusivamente extrativas e passaram a incorporar tecnologias de ponta, algoritmos de previsão climática, mecanização de precisão e integração digital em tempo real. O campo brasileiro, antes símbolo do atraso, converteu-se em laboratório de inovação aplicada, com produtividade crescente e margens exportadoras sem precedentes.

No entanto, essa revolução silenciosa ainda não se traduziu em reindustrialização. O setor agroexportador expandiu-se como uma “ilha de eficiência” cercada por uma economia de baixa complexidade. O desafio, portanto, é transformar o boom agrário em vetor de acumulação produtiva nacional. Para isso, é necessário compreender que o agronegócio não é apenas gerador de inovações, mas também demandante de inovações — em máquinas, insumos, softwares, energia e logística.
A reindustrialização brasileira pode e deve começar exatamente aí: nas fronteiras industriais do campo, onde as cadeias de valor agrícola e manufatureira se encontram.

Cada colheitadeira automatizada, cada sensor climático, cada biotecnologia desenvolvida representa um elo potencial entre agricultura e indústria. O investimento público e a política industrial podem, nesse contexto, operar como ponte entre as missões agrícolas e tecnológicas, integrando o Brasil à “quarta revolução industrial” em bases tropicais e sustentáveis. A meta não é reproduzir o padrão das economias centrais, mas construir um modelo próprio de complexidade produtiva, no qual a transição verde e digital se articule com a vocação agroenergética nacional.

O Estado deve assumir o papel de indutor da integração produtiva entre o agronegócio e os setores industriais de média e alta intensidade tecnológica — maquinário agrícola, bioinsumos, energia renovável, nanotecnologia, satélites, logística, defesa e inteligência artificial. O que hoje se manifesta como cadeia agroexportadora pode se converter, sob coordenação e investimento, em sistema industrial-agro-tecnológico integrado. O desafio não é extrair mais do campo, mas reinvestir melhor o que o campo já gera — transferir parte do excedente cambial e fiscal para pesquisa, inovação e manufatura nacional.

A chamada “Nova Indústria Brasil” (NIB) surge nesse contexto como instrumento de planejamento setorial: suas “missões” — de transformação ecológica, transição energética e digitalização — oferecem um quadro institucional para a acumulação primitiva nacional em escala contemporânea. O agronegócio, ao demandar maquinário avançado, software e infraestrutura, pode impulsionar a produção nacional de bens de capital, serviços técnicos e insumos estratégicos. A agricultura de precisão, por exemplo, é um espaço privilegiado para a industrialização verde e digital: cada avanço nesse segmento pode irradiar efeitos multiplicadores sobre a cadeia industrial e tecnológica.

Porém, esse movimento exige política pública ativa. Não há automatismo entre crescimento agrário e reindustrialização; há uma distância que apenas o Estado pode preencher. Os ganhos do boom agroexportador precisam ser convertidos em investimentos de longo prazo, coordenados, estáveis e produtivos. Do contrário, o país continuará exportando commodities sofisticadas e importando tecnologia básica, perpetuando a assimetria entre renda e desenvolvimento.

Em síntese, o agronegócio brasileiro reúne, pela primeira vez, as condições objetivas de um processo de acumulação primitiva nacional. Possui capital, produtividade, mercado e divisas — falta-lhe, apenas, um projeto de integração estratégica com a indústria, a ciência e a infraestrutura. Quando articulado a um plano nacional de reindustrialização, o campo pode tornar-se a alavanca da transformação produtiva brasileira: um novo pacto entre o agro e a indústria, entre a riqueza e o desenvolvimento, entre o excedente e a soberania.


IV. "Neorindustrialização" e Complexidade Econômica

A reindustrialização do século XXI não se fará pela repetição dos modelos fordistas ou substitucionistas do passado. O que hoje se anuncia sob o nome de neorindustrialização é, antes de tudo, uma recomposição qualitativa da base produtiva, em que indústria, agricultura e serviços passam a formar um continuum tecnológico articulado por informação, energia e sustentabilidade. Não se trata mais de fabricar apenas bens materiais, mas de produzir sistemas complexos de inovação — máquinas que pensam, redes que produzem, ecossistemas produtivos que aprendem.

Nesse contexto, a agricultura moderna e o agronegócio de alta produtividade constituem não um setor externo à industrialização, mas seu novo terreno histórico. A maquinaria agrícola digital, os bioinsumos, a biotecnologia e as plataformas logísticas inteligentes configuram uma fronteira industrial ampliada, na qual o campo e a cidade, o produto e o dado, o físico e o informacional se fundem. O desenvolvimento das cadeias agroindustriais de quarta geração — baseadas em dados, genética, nanotecnologia e energia limpa — pode redefinir o núcleo tecnológico da economia brasileira e permitir um salto de complexidade produtiva sem precedentes.

Para isso, é necessário compreender que a complexidade não decorre apenas do número de setores, mas da densidade das interconexões entre eles. Em termos preobrazhenskianos, trata-se de restabelecer a proporcionalidade entre os “departamentos” da economia — garantindo que o crescimento do setor primário e das exportações alimente, e não sufoque, o crescimento dos setores industriais e científicos.
Em termos kaleckianos, isso significa elevar a taxa de investimento produtivo e o grau de utilização da capacidade, transformando o excedente agrário e energético em poupança nacional efetiva, canalizada por instituições financeiras públicas, fundos soberanos e programas de inovação tecnológica.

O projeto da Nova Indústria Brasil (NIB) e o Plano de Transformação Ecológica são expressões ainda embrionárias dessa estratégia. Suas missões — descarbonização, bioeconomia, transição energética, digitalização e segurança alimentar — representam a tentativa de reconstruir o Estado como sujeito do investimento de longo prazo, orientando a acumulação nacional por objetivos estratégicos. Cada missão, se articulada ao agronegócio e à infraestrutura, pode operar como núcleo de uma acumulação primitiva nacional de terceira geração — um ciclo de investimento produtivo e científico autossustentado.

Mas a neorindustrialização não se reduz à tecnologia. Ela depende de política, instituições e cultura produtiva. Depende de economistas, engenheiros, agrônomos e gestores públicos capazes de transformar programas em processos, planos em sistemas, e recursos em resultados. O Brasil não carece de diagnósticos; carece de execução coordenada e tática operacional — de quadros técnicos estáveis que pensem o desenvolvimento como totalidade, e não como soma de setores.

O novo ciclo de industrialização deve, portanto, ser ecológico, digital e socialmente inclusivo. A formação de mão de obra — ausente nas missões da NIB — precisa ser incorporada como eixo estruturante: a "indústria 4.0 requer trabalhadores 4.0". A expansão da complexidade produtiva não se dá sem educação técnica, redes de ciência e inovação, nem sem reforma do Estado que garanta capacidade de planejamento e continuidade.

A neorindustrialização, nessa perspectiva, é o estágio superior da acumulação primitiva nacional: a transição de uma economia primário-exportadora para uma economia de conhecimento e de valor agregado. Quando o excedente do campo retroalimenta a fábrica, a universidade e o laboratório, o ciclo da dependência se inverte: o país deixa de ser importador de tecnologia para se tornar exportador de inteligência aplicada, capaz de gerar, reter e multiplicar valor.

V. Gargalos, Limites e a Questão Regional

Nenhum projeto de reindustrialização será duradouro se não enfrentar as restrições estruturais que comprimem a expansão produtiva brasileira. A neorindustrialização, por mais promissora que seja no plano tecnológico, esbarra em um conjunto de limites físicos, institucionais e territoriais que definem a dinâmica desigual do desenvolvimento nacional. A infraestrutura, a integração regional e a capacidade administrativa do Estado são, hoje, os verdadeiros “gargalos de acumulação” que condicionam o sucesso ou o fracasso de qualquer estratégia de transformação produtiva.

O Brasil é um país de contrastes logísticos. Enquanto o Centro-Oeste consolidou-se como o coração do agronegócio e das exportações, regiões inteiras permanecem desconectadas das cadeias produtivas nacionais e internacionais. Em quinze anos, a região centro-oestina passou de 1% a 15% das exportações brasileiras, impulsionada pelo avanço agroindustrial. Entretanto, a infraestrutura de transporte, energia e comunicação ainda opera sob uma lógica fragmentada, que reflete o subdesenvolvimento do planejamento territorial. A integração dos eixos Norte–Sul e Leste–Oeste, a ampliação da capacidade portuária e a eficiência dos corredores de exportação não são apenas obras logísticas: são instrumentos de coerência nacional da acumulação.

Nesse sentido, o desafio da reindustrialização é também um desafio geoeconômico. A concentração produtiva no Sudeste e a dependência de insumos importados criaram uma economia regionalmente desequilibrada e funcionalmente vulnerável. O Distrito Federal, que deveria ser o centro de planejamento, convive com 14% de desemprego e uma periferia metropolitana de economia informal.
Em contraste, estados amazônicos e fronteiriços, como Roraima e Amapá, orientam suas exportações quase exclusivamente para países vizinhos — Venezuela, Guiana, Bolívia e Peru —, configurando micro-regiões de integração espontânea, sem coordenação estratégica com o restante do país.

A retomada do planejamento territorial e da integração continental é condição indispensável para transformar o boom agrário em acumulação nacional. Não se trata apenas de exportar soja e milho, mas de articular cadeias produtivas e logísticas com os vizinhos sul-americanos, fortalecendo um mercado ampliado que permita economias de escala e complementariedade industrial. Hoje, apenas 1% dos CNPJs brasileiros exportam, e um quarto deles o faz exclusivamente para países vizinhos.
Isso mostra o potencial subutilizado da integração regional como política de desenvolvimento, e não como mera diplomacia comercial.

Outro obstáculo estrutural é a fragilidade operacional do Estado. A descontinuidade de planos e programas, a fragmentação orçamentária e a ausência de quadros técnicos estáveis minam a capacidade de execução. O Brasil dispõe de instituições de planejamento — Ipea, BNDES, Finep, Casa Civil, ministérios e autarquias setoriais —, mas carece de coordenação tática e visão de totalidade.
Há economistas e engenheiros formulando boas políticas, mas faltam economistas operadores da política pública, capazes de articular a execução interministerial, acompanhar resultados e ajustar metas em tempo real. É essa “economia de execução” que distingue países que planejam dos que apenas anunciam.

Os gargalos da reindustrialização, portanto, não são apenas financeiros — são organizacionais e territoriais. O investimento público, quando existe, ainda se dispersa em editais descontinuados e cronogramas rígidos. Mecanismos como o Financiamento Sustentável Direto (FINIS), concebido para permitir submissões contínuas de projetos de infraestrutura verde, precisam ser expandidos e articulados em rede. A lógica de “arranjos simples e descentralizados” pode multiplicar o alcance das políticas de desenvolvimento, desde que haja um centro de coordenação estatal que assegure coerência estratégica.

O caminho para a acumulação primitiva nacional passa, assim, pela reforma do Estado desenvolvimentista: um Estado que planeje, execute e aprenda — que supere o formalismo da gestão orçamentária e recupere a capacidade de conduzir o desenvolvimento como totalidade econômica e territorial. Sem essa reorganização institucional, a abundância agrária continuará convivendo com a pobreza urbana, e a modernização do campo seguirá contrastando com a fragilidade estrutural das cidades e das indústrias.

VI Coerência Estrutural, Acumulação e o Enlace entre Crescimento e Inflação

A proposta da acumulação primitiva nacional encontra sua fundamentação mais profunda nos conceitos que desenvolvemos anteriormente: a Doença Egípcia e o modelo de crescimento garantido e não inflacionário. Ambos descrevem, sob ângulos distintos, a mesma contradição central do capitalismo periférico: a incapacidade de converter riqueza setorial em desenvolvimento sistêmico, seja pela dependência externa, seja pela desproporção interna entre setores. A acumulação primitiva nacional, nesse sentido, é a resposta planejada à desproporcionalidade estrutural — o instrumento capaz de restabelecer a coerência entre os ritmos de crescimento do campo, da indústria e dos serviços, criando as bases materiais da estabilidade macroeconômica e da soberania produtiva.

A Doença Egípcia mostrou que a inflação e a estagnação nas economias periféricas não resultam de políticas fiscais expansionistas, mas de gargalos produtivos e descompassos intersetoriais. A desvalorização cambial, nesses contextos, encarece insumos e interrompe o ciclo de investimento, criando inflação de custos e queda do produto. Ora, a acumulação primitiva nacional é precisamente o mecanismo inverso: a transferência deliberada de excedente do setor primário para a expansão dos setores de maior produtividade e elasticidade de oferta. Em lugar de inflação de custos, gera expansão de capacidade; em lugar de dependência cambial, promove autonomia tecnológica.

Do mesmo modo, o modelo de crescimento garantido e não inflacionário — inspirado em Kalecki e reinterpretado sob uma ótica preobrazhenskiana — define que a taxa de crescimento sustentável é aquela em que o investimento e a poupança se mantêm compatíveis com a capacidade produtiva (). A acumulação primitiva nacional fornece, justamente, o meio institucional e político para alinhar essas variáveis: ela cria a poupança pública e direciona o investimento para os setores estratégicos, restabelecendo o equilíbrio entre produto efetivo e produto potencial.

Em termos concretos, o boom do agronegócio, se canalizado por uma política de acumulação primitiva nacional, pode resolver o paradoxo brasileiro do crescimento inflacionário. Ao transferir parte de seu excedente cambial e tecnológico para a indústria e os serviços complexos, o país não apenas amplia o investimento produtivo, mas ataca a raiz estrutural da inflação — a insuficiência de capacidade e de oferta de bens industriais e de infraestrutura. Assim, o campo torna-se o remédio da doença egípcia, e a coerência interdepartamental, o antídoto à estagnação inflacionária.

Em suma, o tripé teórico — acumulação primitiva nacional, coerência estrutural e crescimento garantido — forma o núcleo de uma nova teoria marxista do desenvolvimento brasileiro contemporâneo. A primeira fornece a fonte material do investimento; a segunda, a condição de estabilidade intersetorial; a terceira, o critério macroeconômico de sustentabilidade. Juntas, compõem o que poderíamos chamar de teorema da acumulação coerente: um modelo em que o Estado, o campo e a indústria se articulam para transformar o excedente em progresso, e o crescimento em estabilidade.

Conclusão – Da Riqueza Setorial ao Desenvolvimento Nacional

O Brasil vive um momento em que o sucesso setorial contrasta com a fragilidade estrutural.
O agronegócio produz, inova, exporta e acumula, mas o país como um todo permanece prisioneiro de uma economia de baixa complexidade, vulnerável a choques externos e a ciclos de estagnação e inflação. O desafio histórico é transformar essa riqueza concentrada e setorial em desenvolvimento distribuído e nacional — isto é, converter o excedente do campo em base material para a reconstrução da indústria, da infraestrutura e da ciência.

A teoria da acumulação primitiva nacional, inspirada em Preobrazhensky, propõe exatamente esse movimento: fazer do Estado o mediador consciente da transferência intersetorial de excedente, reconstituindo as proporções da economia e restabelecendo o elo entre o investimento público e a capacidade produtiva. Não se trata de estatizar o campo, mas de planejar o fluxo da acumulação; não de punir a produtividade, mas de canalizá-la para a formação de capital tecnológico e social.
A reindustrialização, neste século, não será a repetição da substituição de importações, mas a síntese entre agricultura, energia e tecnologia — o salto de uma economia de recursos para uma economia de conhecimento.

Essa tarefa é inseparável da reforma do Estado e da integração territorial. É preciso reconstruir a capacidade de planejamento, dotar o setor público de quadros técnicos permanentes e rearticular o sistema de financiamento do desenvolvimento — do BNDES à Finep, do Funcafé ao Novo PAC.
Cada real de superávit cambial do agronegócio deve se transformar em um real de investimento produtivo nacional; cada política setorial, em um passo coordenado de um projeto de acumulação coerente.

Sob a ótica kaleckiana, isso significa alinhar a taxa de crescimento efetivo à taxa de crescimento garantido — elevar a poupança pública, reduzir a ociosidade industrial e expandir a capacidade produtiva de modo compatível com o produto potencial. Sob a ótica preobrazhenskiana, significa organizar a economia segundo proporções racionais e solidárias, substituindo o automatismo do mercado por uma racionalidade planificadora que transforme o excedente em desenvolvimento. E sob a ótica furtadiana, significa romper o círculo histórico da dependência, afirmando o desenvolvimento como ato de vontade coletiva e projeto civilizacional.

A nova industrialização brasileira só será possível se o país reconhecer o valor estratégico do seu campo — não como enclave exportador, mas como base de acumulação nacional. O agronegócio pode ser simultaneamente o motor da sustentabilidade e o financiador da industrialização verde e digital, desde que inserido em uma estratégia de soberania econômica. A acumulação primitiva nacional, articulada à coerência estrutural e ao crescimento garantido, oferece a base teórica e prática desse caminho: um desenvolvimento com estabilidade, um crescimento com justiça, uma economia com direção.

Mais do que uma agenda econômica, trata-se de uma tarefa histórica: transformar a abundância em autonomia, o excedente em investimento e a renda em futuro. O Brasil possui, pela primeira vez desde a industrialização clássica, os meios materiais para um novo ciclo de ascensão. Falta-lhe apenas o que Preobrazhensky chamava de “a consciência da necessidade” — a decisão de organizar, planificar e coordenar o desenvolvimento nacional. Quando isso ocorrer, o campo deixará de ser o símbolo da dependência e se tornará o alicerce da soberania.

Referências Bibliográficas (Para mais leituras):

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> Fundamenta a leitura histórica das transições hegemônicas e das formas de acumulação mundial, permitindo situar o papel periférico do Brasil na hierarquia global do capital.

BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento. São Paulo: Elsevier, 2016.
> Atualiza a tradição desenvolvimentista brasileira, com foco nas relações entre câmbio, industrialização e política fiscal.

CHANG, Ha-Joon. Chutando a Escada: A Estratégia do Desenvolvimento em Perspectiva Histórica. São Paulo: Unesp, 2004.
> Reforça a tese de que as economias centrais consolidaram-se por meio de políticas industriais ativas — argumento central para justificar a acumulação primitiva nacional planejada.

CHESNAIS, François. A Mundialização do Capital. São Paulo: Xamã, 1996.
> Discute a financeirização e a subordinação produtiva das periferias no capitalismo global, base para compreender a drenagem do excedente agrário.

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> Clássico da interpretação estruturalista; identifica o padrão histórico de dependência entre os setores primário e industrial.

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> Reinterpreta o desenvolvimento como ato de criação histórica e política, essencial à ideia de planejamento consciente da acumulação.

KALECKI, Michał. Teoria da Dinâmica Econômica. São Paulo: Nova Cultural, 1983.
> Apresenta o conceito de taxa de crescimento garantido, utilizado como base teórica para vincular acumulação e estabilidade de preços.

KALECKI, Michał. Ensaios sobre a Teoria Econômica dos Ciclos e do Crescimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
> Fundamenta a abordagem de investimento e poupança efetiva na análise da coerência macroeconômica do crescimento.

MARINI, Ruy Mauro. Dialética da Dependência. Petrópolis: Vozes, 1973.
> Define a superexploração e o subdesenvolvimento como expressões estruturais da dependência latino-americana, fundamentais à leitura da acumulação primitiva nacional.

PREOBRAZHENSKY, Evgeni. A Nova Economia. São Paulo: Boitempo, 2022.
> Obra basilar para o conceito de transferência intersetorial planejada de excedente — origem direta da formulação de “acumulação primitiva nacional”.

PREOBRAZHENSKY, Evgeni. O Declínio do Capitalismo. Moscou, 1931 (edição digital: Marxists Internet Archive).
> Discute a contradição entre proporções interdepartamentais e inflação estrutural, ponto de partida para a síntese entre agronegócio e reindustrialização.

SANTOS, Theotonio dos. A Teoria da Dependência: Balanço e Perspectivas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
> Reforça a necessidade de compreender o subdesenvolvimento como forma histórica de reprodução do capital mundial.

SHAIKH, Anwar. Capitalism: Competition, Conflict, Crises. Oxford: Oxford University Press, 2016.
> Oferece a formulação contemporânea mais robusta da teoria marxista das crises e da taxa de lucro, base para compreender o papel do investimento produtivo.

TROTSKI, Leon. A Curva do Desenvolvimento Capitalista (1923). In: Escritos Econômicos 1921–1925. São Paulo: Sundermann, 2010.
> Fundamenta a análise de ritmos desiguais de desenvolvimento e da combinação entre setores, crucial para o conceito de coerência estrutural.

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> Fonte empírica sobre restrições externas, dívida e transição verde em economias periféricas.

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> Dados e estatísticas utilizados como referência para indicadores de produtividade e comércio exterior do agronegócio brasileiro.

(*) Nota bibliográfica e referencial teórico


Este artigo apoia-se na tradição marxista de análise dos ciclos econômicos e das crises, inaugurada por Karl Marx e Friedrich Engels em O Capital, onde a reprodução ampliada do capital e a queda tendencial da taxa de lucro são apresentadas como leis internas da oscilação entre expansão e colapso. A partir de Lênin e Preobrazhensky, essa leitura adquire uma dimensão histórico-política: a crise deixa de ser apenas um evento econômico e passa a representar o terreno material da transição socialista e do planejamento consciente da produção.

As formulações de Trotski e Kondratiev introduzem a noção de sobreposição de ritmos — ciclos curtos, médios e longos —, aprofundada posteriormente por Ernest Mandel, que interpreta as “ondas longas” como expressões das mudanças na base tecnológica e na correlação de forças internacionais. Autores contemporâneos como Anwar Shaikh e François Chesnais atualizam essa abordagem ao situar a financeirização e a globalização como formas atuais da crise de valorização.

No plano histórico-estrutural, Giovanni Arrighi, Theotonio dos Santos e Ruy Mauro Marini contribuem para compreender o caráter desigual e combinado do desenvolvimento mundial, demonstrando que as fases dos ciclos se expressam de maneira distinta entre centro e periferia. Por fim, a reflexão de István Mészáros e David Harvey amplia a perspectiva marxista, revelando a crise contemporânea como crise de civilização — um impasse que exige não apenas a superação do capital, mas a reconstrução do tempo histórico sob o signo da planificação democrática e da emancipação humana.

(**) Sobre o autor

Almir Cezar Filho é economista, mestre pelo Instituto de Economia da Universidade Federal de Uberlândia (IE-UFU), pesquisador em economia política marxista e especialista em desenvolvimento econômico, agricultura e planejamento. Atua no Serviço Público Federal e integra o quadro de servidores da Estrutura dos Cargos Específicos (ERCE) do Poder Executivo Federal.

É editor do blog Limiar e Transformação Econômica, onde publica ensaios de teoria e história econômica com base marxista, explorando temas como ciclos de acumulação, imperialismo, dependência, transição socialista e geoeconomia contemporânea. Também é produtor e apresentador do programa Economia É Fácil, da Rádio Censura Livre, dedicado à popularização crítica do pensamento econômico e à análise conjuntural sob a ótica dos trabalhadores.

Seus escritos buscam articular teoria e prática — entre a crítica da economia política e o horizonte da transformação social —, entendendo a economia como expressão do movimento histórico e a história como terreno da emancipação humana.

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