Da reprimarização impossível à estagnação dependente: uma teoria estrutural do subdesenvolvimento e da inflação crônica nas economias periféricas*
Resumo
O artigo apresenta o conceito de Doença Egípcia, uma categoria teórica proposta como inversão da clássica Doença Holandesa. Enquanto esta descreve o retrocesso industrial de economias que prosperam graças ao sucesso de seu setor primário, a Doença Egípcia caracteriza países que nunca completaram o processo de industrialização, mas permanecem presos à dependência de exportações primárias frágeis e instáveis. O texto demonstra que, nesses casos, a escassez de divisas, e não a abundância, desencadeia um ciclo de desvalorização cambial, inflação de custos, desinvestimento e estagnação produtiva. Inspirado nas formulações de Preobrazhensky e Kalecki, o modelo expõe como o desequilíbrio entre setores e a ausência de planejamento convertem a economia periférica em um sistema de reprodução sem acumulação, no qual o Estado administra a escassez em vez de superá-la. Aplicado ao Brasil e a outras nações do Sul Global, o conceito propõe uma releitura estrutural da inflação e do subdesenvolvimento, recolocando o planejamento, a reindustrialização e a soberania cambial como fundamentos da estabilidade e do crescimento de longo prazo.
Palavras-chave:
Doença Egípcia; Doença Holandesa; subdesenvolvimento estrutural; inflação de custos; dependência; planejamento econômico; industrialização tardia; Preobrazhensky; Kalecki.
I. Introdução – O Paradoxo da Periferia e a Inversão da Doença Holandesa
A expressão “Doença Holandesa” tornou-se, nas últimas décadas, um dos conceitos mais difundidos para descrever o dilema de países que, após descobertas ou valorização de recursos naturais, sofrem os efeitos colaterais de seu próprio sucesso. O boom das exportações de commodities provoca a valorização cambial, reduz a competitividade das manufaturas e leva à reprimarização da estrutura produtiva. Em essência, trata-se de uma patologia do êxito: o país industrializado é traído por seu setor primário pujante.
Entretanto, nas economias periféricas e dependentes, o fenômeno assume contornos inversos. O problema não é o “excesso de sucesso” das exportações, mas sua fragilidade estrutural. Aqui surge o que denominamos Doença Egípcia — uma versão invertida da Doença Holandesa. Não se trata de uma regressão a partir de uma base industrial consolidada, mas de um bloqueio histórico que impede a industrialização de se completar. A “doença”, portanto, nasce não do apogeu, mas da insuficiência.
A metáfora egípcia é reveladora. O Egito antigo foi uma das civilizações mais sofisticadas do ponto de vista agrário, mas cuja produtividade agrícola sustentava um Estado extrativo e elites improdutivas, incapazes de converter o excedente social em acumulação produtiva. A abundância relativa não se transformava em progresso técnico, mas em monumentos e privilégios. Da mesma forma, nas economias periféricas contemporâneas, o excedente proveniente do setor primário — mesmo modesto — é canalizado para o consumo das elites, a especulação financeira e o serviço da dívida, não para a transformação estrutural da base produtiva.
Enquanto na Doença Holandesa o câmbio valorizado corrói a competitividade industrial, na Doença Egípcia o câmbio desvalorizado reflete a ausência de base industrial capaz de reagir à desvalorização. O resultado é um círculo vicioso: a queda dos preços das commodities reduz as reservas internacionais e desvaloriza a moeda; a moeda fraca encarece importações de insumos e maquinário; os custos industriais sobem e o investimento declina. Surge, assim, uma inflação estrutural de custos, não compensada por expansão produtiva — uma estagnação inflacionária de natureza dependente.
A Doença Egípcia é, portanto, a patologia da periferia que nunca se industrializou plenamente, mas que experimenta as desvantagens cambiais e estruturais da dependência primário-exportadora. Ao contrário da doença holandesa, que se manifesta como uma perda de complexidade após um ciclo virtuoso, a egípcia é o sintoma de uma ausência estrutural de complexidade. É a doença de economias onde o Estado arrecada sobre a base agrária ou mineral, o capital lucra pela intermediação financeira e a sociedade paga o preço da desindustrialização sem jamais ter vivido seu auge.