terça-feira, 14 de abril de 2020

Como financiar os gastos públicos de combate a pandemia. O velho debate sobre o setor público, o crédito e a moeda

por Almir Cezar Filho*

Com o advento da pandemia de covid-19 causada pelo novo coronavírus há uma gigantesca preocupação com os recursos para custear as ações sanitárias e de saúde, como também para ações para mitigar os impactos na economia, e para retomada econômica posteriormente. 

O discurso dominante é que se precisa manter a estrutura produtiva do país para o momento em que for possível haver a retomada da atividade econômica. E para isso, seria fundamental irrigar o mercado de crédito, mandar dinheiro rápido para os mais pobres e manter as empresas funcionando. Se as empresas quebrarem, quando chegar o momento da retomada não vai ter nem emprego nem empresa. Acaba que a retomada fica muito lenta. O custo de um choque transitório acaba virando permanente. 

Nesse contexto, surgiu um embate,  sobre as formas de financiar os gastos estatais. Esse embate abarca desde gente com longo histórico na atuação no mercado financeiro, participantes da alta cúpula de grandes bancos, até mesmo economistas que se consideram de esquerda. 

Surge a pergunta: de onde virá os recursos econômicos para custear esse conjunto de ações dos Estados? O que os Estados deverão fazer para obtê-los? Como essa conta será paga no futuro? Para cobrir o rombo decorrente, deve-se ampliar o endividamento? Emitir moeda?

Ressurge assim, o velho debate sobre o papel setor público, o crédito e a moeda no sistema capitalista, que são em si, também formas de intervenção do Estado sobre a economia, de comando sobre o mercado.




O tamanho do impacto econômico da pandemia de covid-19

E quanta pobreza a mais será criada com a economia parada? Artigo da United Nations University estima que o lockdown pode aumentar em 420 milhões o número de pessoas em extrema pobreza, que vivem com menos de US$ 1,90 por dia, caso a contração da receita per capita global caia 20%.

Os autores ressaltam que os piores impactos serão em regiões mais carentes, África Subsaariana e sul da Ásia, que acumulariam 85% do total de pobres do planeta. Citam, ainda, que países não desenvolvidos têm menos espaço fiscal e monetário para reagir, reforçando a nossa tese de que países desenvolvidos ficarão ainda mais fortes do que os emergentes.

Mas surge a pergunta: de onde virá os recursos econômicos para custear esse conjunto de ações dos Estados? O que os Estados deverão fazer para obtê-los? Como essa conta será paga no futuro?

A experiência econômica recente diz muito. Alguns economistas durante anos argumentaram que a situação sobre a Europa após a crise de 2008, no qual os assim chamados PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha) estiveram em pior situação, resulta de uma década anterior de endividamento excessivo das famílias e empresas, impulsionada supostamente por políticas keynesianas perseguidas pelos "irresponsáveis" políticos locais e pela complacência dos banqueiros centrais da União Europeia (UE) do período anterior. Recomendaram inclusive a aplicação de uma bateria de políticas corretivas para controlar a dívida pública e de drásticas medidas de austeridade fiscal, com impostos substancialmente mais elevados.

Outros aspecto apontando é que voltar à normalidade não será apenas uma questão de as empresas religarem suas máquinas; o que temos observado é que muitas não estão conseguindo sobreviver à crise. A queda na arrecadação, o aumento do gasto e as desonerações para ajudar as empresas levaram  a um déficit (ou aumentaram) no orçamento dos estados e municípios (no caso do Rio de Janeiro, a Firjan projeta que pode chegar a R$ 27,4 bilhões, mais de 1/3 da receita total estimada para 2020). O RJ, assim como os demais estados, terá dificuldade de se recuperar sem aportes financeiros do governo federal, correndo o risco de ter uma crise ainda mais severa do que a de 2016-2018. Haveria portanto, a necessidade de suporte do governo federal para auxiliar os estados a atravessarem os efeitos econômicos da crise.

Da onde tirar os recursos para os gastos públicos

Nesse contexto, surgiu um embate,  sobre as formas de financiar os gastos federais Esse embate abarca desde gente com longo histórico na atuação no mercado financeiro, participantes da alta cúpula de grandes bancos, até mesmo economistas que se consideram de esquerda

Curiosamente, o debate é alimentado, mas em alguma medida segue à margem da tramitação do Projeto de Emenda Constitucional chamado de "Orçamento de Guerra" (PEC 10/2020). Desvia-se o foco das imensuráveis armadilhas fiscais escondidas no seu texto, que dá liberdades inéditas ao Banco Central em compras títulos podres privados, injetar crédito aos bancos e emprestar ao Tesouro Nacional (desde que direto aos bancos estatais para esses emprestarem à empresas privadas).

O secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, já declarou que o governo aumentará o endividamento, vendendo títulos. Esse papéis são comprados por investidores (como no caso do Tesouro Direto). É uma espécie de empréstimo feito ao governo, em troca de ganhos financeiros. Para convencer os deputados e senadores, Paulo Guedes passou a pregar a venda de reservas internacionais para aplicar os recursos nos gastos com a pandemia.

Uma ideia alternativa que circula como uma das soluções para a atual crise é a impressão de dinheiro para ter recursos para combater a pandemia. A proposta, que está sendo adotada por alguns países, entre eles os Estados Unidos, foi reforçada nesta semana pelo ex-presidente do BC (Governo Lula) e ex-ministro da Fazenda (Governo Temer), atual secretário de Fazenda e Planejamento de São Paulo, Henrique Meirelles.

Em entrevista à BBC News Brasil, ele disse que é hora de o Governo Federal aumentar fortemente suas despesas para conter o impacto do coronavírus sobre a saúde e a economia. Isso deve ser feito inclusive com a criação de moeda pelo Banco Central (BC) e com a captação de recursos pelo Tesouro Nacional por meio da emissão de dívida, disse o ex-ministro. “O Banco Central tem grande espaço de expandir a base monetária, ou seja, imprimir dinheiro, na linguagem mais popular, e, com isso, recompor a economia. Não há risco nenhum de inflação nessa situação”, disse à BBC.

Meirelles discorda da proposta de vender parte das reservas internacionais e diz que é melhor deixar o endividamento subir, mesmo que possa sair do atual patamar de 76% do PIB para próximo de 90%. “A alternativa é um colapso econômico”, alerta.

Nas contas do Ministério da Economia, será necessário gastar R$ 419,2 bilhões com a emissão de títulos públicos em 2020 para o governo se manter em funcionamento e cobrir as despesas extras com a pandemia. Só as medidas anunciadas representam mais de metade da necessidade e terão um impacto de R$ 224,6 bilhões. Entre elas, estão os R$ 98,2 bilhões para pagar o auxílio emergencial de R$ 600, os R$ 51,2 bilhões para compensar as reduções de jornadas e salários de trabalhadores e R$ 34 bilhões para empréstimos para empresas pagarem os salários dos trabalhadores. 

Além das despesas extras para combater a pandemia, o governo já estimava um rombo nas contas públicas de R$ 127 bilhões 2020. Soma-se a isso a expectativa de uma perda de arrecadação de R$ 67,6 bilhões com a queda do PIB (Produto Interno Bruto) e do preço do barril do petróleo. Com empresas fechadas e pessoas consumindo menos ou desempregadas, o governo arrecada menos impostos.

Esta semana, o Federal Reserve (Fed, Banco Central norte-americano) anunciou uma nova linha de empréstimos de US$ 2,3 trilhões em apoio às empresas e comunidades afetadas pela pandemia, numa tentativa clara de preservar empregos e criar condições para a retomada econômica. Chama a atenção o período de quatro anos para a utilização do recurso, o que claramente indica que o Federal Reserve prevê uma recuperação pós-pandemia bem mais lenta do que se imaginava inicialmente.

O que diria a Ciência Econômica

Antes de tudo, mais do que a forma de se financiar as ações de socorro econômico, o que está em discussão é a própria intervenção do Estado na economia, não do controle, mas a própria participação do Estado na economia, não como produtor, mas em outros três aspectos: o crédito, a moeda, a dívida pública, o gasto público (e as suas receitas por tributação).

Não há consenso na Economia de vertente burguesa sobre a participação do Estado na economia. Há uma defesa, em amplas parcelas, de que o investimento do Estado gera aumento de renda - demanda - produto - investimento (aparentemente algo keynesiano); mas há também a defesa de que deve haver sim influência do Estado na economia regulando e monitorando as atividades os diversos setores, investindo em áreas estratégicas, mas tudo com observação de limites, à medida que, o gasto público expansionista geraria inflação.

Por sua vez, no mundo econômico, segundo a Economia Neoclássica, os bancos são meros repassadores de recursos das unidades superavitárias (famílias consumidoras e empresas) para as unidades deficitárias, à taxa de juros que ajusta desejos de poupar e investir. Em outras palavras, a poupança financia e é condição sine qua non para a compra de bens de capital na teoria neoclássica. O Setor Público seria o mesmo. Repassaria recursos superavitários, sob forma de impostos arrecadados, que custeariam os serviços públicos, os "bens públicos".

Os economistas liberais assim ignoram a moeda como capital fictício. Isto é, capital, e portanto, uma mercadoria que produz outra mercadoria, mas que não foi produzido por outra mercadoria, como os demais capitais. E, reserva valor e que permite antecipar uma acumulação de capitais, antecedendo temporalmente a produção e geração de mais-valia, que será revertida para custeá-la na sequência. 

Os bancos e o Estado é que criam a moeda. Os primeiros sob forma de empréstimos sem lastro em depósitos de correntistas ou mesmo do capital do banco. Os segundos sob emissão dos Bancos Centrais, que emprestam aos bancos ou pagam de maneira deficitária as despesas públicas que excedem as receitas em tributos. Sendo que o Estado, é o garantidor e avalista permanente dos bancos.

O Setor Externo, age como bancos, quando realizam investimentos e inversões financeiras sobre a economia doméstica. Mas também, o saldo líquido das exportações, como lucro que valida créditos e financia a atividade do Estado.

Ignoram os economistas neoclássicos, portanto, que é os setores Público, Externo e Financeiro funcionam como setores "extras" ao circuito de acumulação de capitais, ao setor de "produção". Podem induzir e acelerar a acumulação e a geração de mais-valia. Garantem a expansão da economia. Mas ao externalizar a acumulação de capitais para além do setor de produção, logo então, ao autonomizarem uma parte da economia do circuito, adicionam maior instabilidade, aumentam a complexidade. Se, por um lado, ampliam a capacidade dinâmica da economia, sujeitam-na a maiores problemas, para além da acumulação regular doméstica.

O capital fictício

O capital, em Marx, é um relação social (e não apenas um fator de produção ou uma soma de ativos). Em uma análise lógica, Marx desenvolve categorias e formas sociais que se desdobram em formas mais complexas, como o capital a juros e o capital fictício. Esse desdobramento das formas universaliza o modo de produção capitalista e difunde a sede de acumulação de riqueza abstrata. Nesse contexto, o capitalismo não é um sistema cujo objetivo é satisfazer necessidades de consumo, mas um modo de produção cuja a finalidade é a acumulação da riqueza em dinheiro e outras formas financeiras.

O conceito de capital fictício é pouco e, por vezes, mal tratado na literatura econômica, mas pode ser simplificadamente definido como “direitos contratuais sobre um fluxo de renda futuro”. Para ser mais preciso, pode-se definir o capital fictício com base em três propriedades:
1) é um ativo que está associado a uma renda futura, portanto seu valor depende da capitalização de recebimentos futuros trazidos a valor presente por uma taxa de juros; 
2) é um ativo transferível, portanto depende da existência de um mercado secundário onde ele pode expressar o seu valor; 
3) ele não existe como capital efetivo, ou é duplicado (esta última propriedade, um tanto fantasmagórica, destaca a natureza financeira do capital, que não existe como capital real). 

Por exemplo, a dívida pública não tem nenhuma relação com o dinheiro inicialmente captado pelo Estado. Ela é uma representação fictícia de um capital que não existe mais, mas que dá direito a uma participação sobre as receitas do Estado. Da mesma forma, a emissão primária de uma ação pode financiar a compra de uma máquina, mas o valor da ação convive com o valor máquina e tende a se diferenciar dele. Emitir ações ou títulos cria valor fictício no sistema econômico e a compra e venda desses títulos é a negociação dos direitos sobre os fluxos de renda que serão produzidos no futuro. É, portanto, um mecanismo de distribuição de renda e riqueza, por excelência.

Para Michael Hudson, os fluxos de renda futuros são como uma presa econômica destinada a ser caçada pelo sistema financeiro. Ou seja, o sistema financeiro vê toda e qualquer fonte de renda como possibilidade de constituir capital fictício, e busca formar mercados para transacionar esses direitos sobre a renda futura. 

Nos países centrais, em especial nos Estados Unidos, o processo de securitização se difundiu por várias esferas da vida social. As dívidas dos estudantes universitários (student loans), por exemplo, foram securitizadas, assim como as hipotecas e dívidas de cartão de crédito, que são empacotadas e revendidas em mercados secundários. Esse processo, assim como o mercado de crédito, submete parte da renda futura dos estudantes e das famílias às transferências ao mercado financeiro.

Contudo, diferentemente do crédito, cujo valor é pré-fixado por contratos bilaterais, o capital fictício constitui uma massa de riqueza cujo valor está sendo constantemente avaliado e reavaliado pelos mercados financeiros. Sua precificação obedece a critérios financeiros de avaliação e depende do arbítrio, das expectativas, das convenções e das taxas de juros. A forma como essa massa de direitos financeiros é avaliada afeta não apenas a distribuição da renda e da riqueza financeira, mas também a economia real que se submete aos períodos de expansão e de crise impulsionados pelo movimento do capital fictício.

Não se trata de um descolamento entre a riqueza financeira e a riqueza real, mas de mudanças na avaliação da capacidade futura de geração de renda que provocam bruscas ampliações e interrupções da produção de riqueza no presente. Isso é uma parte importante do que alguns chamam de financeirizacão, capitalismo com dominância financeira ou “finance-led capitalism”.

O papel do Setor Público sobre a reprodução, a circulação e a acumulação de capital

Ideologias burguesas à parte, o gasto público expansionista geraria ou não inflação e/ou endividamento? 


Para isso devemos usar o conceito de "demanda efetiva". 

Mas Não apenas os keynesianos, os marxistas também trataram do princípio da Demanda Efetiva ou em termo de, vinculando-a às crises capitalistas e ao caráter cíclico que estas assumem nesse sistema. Em suas análises à ótica do capitalismo sob a perspectiva dos esquemas de reprodução, desenvolvidos como modelo por Marx para explicar o funcionamento da acumulação e circulação do capital entre setores da economia.

Vários autores marxistas, resgatando a pista dada por Rosa Luxemburgo ao estudar os esquemas de reprodução de O Capital, desenvolvem uma explicação sobre flutuações e ciclos econômicos, em termo do chamado princípio da demanda efetiva. A investigação em base a esse princípio não ficou circunscrita a John Maynard Keynes e seus seguidores, que se utilizavam dos trabalhos de Economia Política Clássica, especialmente de Thomas Malthus.

Assim, pela via marxiana, dois autores são mais importantes: o primeiro, e o mais famoso, é o polonês Michael Kalecki, com sua obra de 1933, considerado o cofundador da Macroeconomia, e o segundo é o russo E. Preobrazhenski, com suas obras de uma décadas antes, os anos de 1920. 


Porém a isto se replica de que essa visão se encontra em ceteris paribus (tudo demais constante) e não é intertemporal (apenas um corte de tempo), o que enviesa a questão. Ao se trabalhar com um modelo macroeconômico para simular uma economia nacional não conseguiremos apreender o caráter dinâmico da mesma, como também da interdependência entre as várias apresentadas, a chamada circularidade da renda. 

Então não existe “ceteris paribus”. Mexer um item do problema altera sim todos outros itens, inclusive o resultado final do problema. Se seguirmos uma visão estática típica do pensamento Novo Clássico não conseguiremos visualizar isso. Contudo, é essa visão que infelizmente parece que se espalhou na Mídia e em parte da formação acadêmica dos economistas brasileiros.

Tomando a metodologia e a teoria marxista, em particular de Preobrazhenski, uma variação do gasto público não leva a uma diminuição da parcela do investimento privado, mas ao contrário, uma expansão. E mesmo que haja um aumento dos impostos para financiar essa expansão do gasto público não implica necessariamente também em redução da parcela de Investimento no total no produto agregado.

Os economistas sabem que há as chamadas “sensibilidades”, isto é, a renda agregada não é determinada pelo mera soma linear dos outros agregados, como, por exemplo, o consumo. Existe peso entre vários agregados na determinação da renda nacional. Sabemos que há economias nacionais onde o Setor Externo (Exportações Líquidas) é maior e tem maior reação sobre o Produto Nacional do que outras, onde por sua vez, é Investimento com maior peso. 

Sabemos também que o consumo agregado também é determinado pela renda total da economia, isto é, uma variação na renda nacional pode incrementar o consumo nacional. Portanto, há uma sensibilidade do Consumo frente a Renda, um coeficiente, índice de sensibilidade, fruto da relação que as várias forças da economia nacional desenvolveram histórico e socialmente.

Então um aumento no Consumo não implica necessariamente em uma diminuição do Investimento Agregado (I) ou das Exportações Líquidas (X-T), mas o aumento no Produto Agregado ou Renda Agregada (Y). O que chamamos de efeito acelerador. E inclusive pode levar um aumento no restante nos outros agregados - Gasto Público (G), I, (X-T) -, o que chamamos de efeito multiplicador, em vista que aumenta a Renda Agregada, e à medida que cada agregado é sensível a variação da renda. Isso explica como uma redução da capacidade de Exportação (X) leve a um redução do investimento privado I ou do consumo das famílias C, como vimos no fim do ano 2008.

Contudo, há sempre em cada agregado, uma parcela que é sensível a variações da renda agregado total, e outra mais autônoma. Sabemos por exemplo também, que há parcelas dos consumidores que não possuem rendas diretamente vinculadas a variação da renda nacional temporal, possuem ativos que lhes garantem rendas intertemporalmente. 

Temos portanto, que o Consumo Agregado, C = C* + yC, sendo C* parcela autônoma e yC a parcela sensível, ou mesmo, que uma parcela é determinado pelo próprio agregado, o que teríamos então cC, resultando no seguinte: C = C*+yC+cC, ou mesmo, C=C*+ycC, ou, C = y(C*+cC). Ou mesmo há iC, isto é, uma parcela do Consumo determinado pela variação do Investimento (é sabido que aumento dos investimentos de empresas leva a novas contratações ou aumento de salários).

O mesmo acontece com o gasto público. Os primeiros macroeconomistas entendiam G como um agregado mais autônomo se comparado aos demais, e portanto, propunham que em momentos de compressão do produto, isto é, quando em geral e/ou I, C, (X-T) diminuem, G deveria aumentar para compensar na mesma proporção para evitar queda de Y.

Contudo, alguns macroeconomistas questionam se não diminuiria num período seguinte o investimento, a medida que haveria um aumento dos impostos ou de dívida pública ou emissão monetária inflacionária para financiar essa expansão dos gastos públicos. A preocupação é correta no aspecto da necessidade de financiamento da expansão do gasto público, que levaria a esterilização dos benefícios dessa mesma expansão.

Porém, essa conclusão é equivocada visto que, primeiramente, o aumento do G não apenas aumenta Y mas todos os demais, reativando a atividade econômica, o que por sua vez, já financia a expansão de G pois gera aumento na arrecadação. Em segundo lugar,visto que sabemos que G não diminui I, a preocupação dos operadores da políticas econômicas deve sempre residir na necessidade de financiamento da expansão do gasto público, já resolvido com a próprio aumento na arrecadação. Vimos que apesar da forte expansão do gasto público brasileiro em 2009, tivemos em janeiro de 2010, como consequência direta a mais alta arrecadação fiscal para um mês de janeiro da história.

Essa arrecadação não necessariamente esteriliza a expansão da renda, ao subtrair recursos da economia que seriam aplicados como C ou I, pois depende da proporção e medida de aumento de G empregado e se a expansão da capacidade arrecadatória é mais que proporcional que o incremento de Y. Claro é preciso, calibrar G para aumentar Y e no momento seguinte captar o parcela de Y necessária ao financiamento de G. 

Resolvido essa questão, desloca-se para outra. Um aumento de gasto público gera inflação?

Não. Primeiro, porque não há expansão monetária para financiar a expansão do G. E mesmo que o fosse, nem toda expansão da oferta monetária gera inflação. Isso só acontece se houver um oferta monetária superior a demanda monetária nova criada com a expansão da atividade econômica. Por outro lado, uma inflação criada pela expansão da atividade econômica, só é possível, se a demanda agregada for maior que a oferta agregada. 

Um aumento de G que geraria inflação seria se houvesse uma expansão da renda agregada acima do produto potencial, mesmo sabendo que, o produto potencial (capacidade total de produção da economia) se expande com a expansão da economia, já que G aumenta, aumenta I, isto é, a capacidade da economia em produzir. Logo o produto potencial está sempre em expansão, desde que haja expansão da demanda agregada.

O desafio da macroeconomia diante da crise econômica mundial, a qual os pós-keynesianos se debruçaram ainda na década de 1980 era de como financiar uma política anticiclíca ou diminuir a dependência da economia a esse tipo de política

Extração de mais-valia pelo sistema financeiro e a Inflação

Dito isso, respondemos o que os bancos centrais não precisam estar preocupado, em aumentar os juros para segurar uma possível futura expansão da inflação. Na verdade, os bancos centrais camuflam suas verdadeiras intenções: como ocorre com as demais agências regulatórias, os Bancos Centrais acabam por defender os interesses daqueles que deveria fiscalizar, os bancos. Visam garantir a lucratividade dos bancos, que diminuiu no último período. Remunerando-os com o aumento da taxa de juros básica. 

As crises inflacionárias e deflacionárias não são provocadas pelas variações do gasto público, mas pelas flutuações cíclicas e naturais da dinâmica econômica capitalista, que apesar do desejo em contrário da burguesia, sempre em algum momento vem à tona, apesar da intervenção estatal. O gasto público apenas, acertando ou errando a dose, acelera ou freia esse processo.

Assim, pode-se verificar que a inflação alta no Brasil não é causada por uma pressão de alto consumo e/ou baixo investimento (sendo que esse último é causado pelas ações visando o combate  a inflação). Na prática, devido a padrão de desenvolvimento brasileiro, a alta taxa de juros está retroalimentando e, portanto, mantendo em patamar elevado a taxa de inflação.

Dessa maneira, a taxa de juros não deveria ser usada como ferramenta de combate a inflação. O que mais impressiona, não é após quase duas décadas do Plano Real, o Banco Central, os acadêmicos e os analistas financeiros não perceberem essa "armadilha às avessas", mas, pelo contrário, sabedores disso ou não, em ignorância ou cumplicidade silenciosa, beneficiaram ainda mais desde então a alta burguesia financeira.

Na verdade, a alta da taxa de juros é usada via câmbio e juros como instrumento da alta burguesia para coordenar e ampliar extração de excedente cada vez maiores do Estado, dos trabalhadores e mesmo da baixa burguesia.

Somente o enfrentamento ao padrão de desenvolvimento dependente brasileiro engendrado pelo capitalismo mundial - superexplorador, oligopolizante, financerista e desnacionalizador/desindustrializador - é a maneira correta de combater a inflação. Sua derrota é a derrota do tripé que o gera no Brasil, por exemplo: os oligopólios/transnacionais, os financistas/rentistas e os latifundiários/agronegócios. 

O combate a inflação efetiva deve ser feito com ampliação da capacidade produtiva, menor dependência financeira e tecnológica do exterior, reforma agrária e fim das dívidas públicas.

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(*) o presente artigo é adaptação de trecho do artigo Dinâmica e desenvolvimento no teorema de Preobrazhenski (2ª parte)

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