Como o setor agroexportador pode financiar a reindustrialização, ampliar a complexidade produtiva e consolidar a soberania econômica do Brasil*
Por Almir Cezar Filho**
ResumoO artigo propõe o conceito de acumulação primitiva nacional, inspirado em Evguêni Preobrazhensky e adaptado à realidade do capitalismo periférico contemporâneo. A partir da análise do boom do agronegócio brasileiro, o texto demonstra que o setor agroexportador, quando articulado a uma política de planejamento e investimento público, pode atuar como fonte de financiamento produtivo e tecnológico da reindustrialização. Diferente da “doença holandesa” e da “doença egípcia”, em que o campo atua como fator de regressão estrutural, a acumulação primitiva nacional propõe a transferência consciente e planejada do excedente agrário para os setores industriais, científicos e de infraestrutura.Com base nas formulações de Preobrazhensky, Kalecki e Furtado, o artigo articula os conceitos de coerência estrutural, crescimento garantido e soberania produtiva, defendendo a criação de um novo pacto desenvolvimentista entre Estado, agronegócio, indústria e ciência. A tese central é que o Brasil dispõe hoje dos meios materiais para um novo ciclo de industrialização verde e digital — faltando-lhe apenas a consciência da necessidade, isto é, o planejamento econômico como instrumento de transformação nacional.
Palavras-chave
Acumulação primitiva nacional; agronegócio; reindustrialização; desenvolvimento econômico; coerência estrutural; crescimento garantido; Preobrazhensky; Kalecki; Celso Furtado; soberania produtiva; Brasil.
I. Introdução – O Paradoxo do Sucesso Agrário
O Brasil vive um paradoxo estrutural. Enquanto o agronegócio alcança níveis inéditos de produtividade, rentabilidade e inserção internacional, o país como um todo experimenta uma prolongada estagnação industrial e tecnológica. A agricultura, responsável por metade das exportações e por saldos comerciais que sustentam a estabilidade cambial, tornou-se a principal âncora macroeconômica de uma economia que, paradoxalmente, perdeu sua base manufatureira e sua capacidade autônoma de inovação.
A narrativa oficial — de que o sucesso do agronegócio seria suficiente para puxar o crescimento nacional — revela-se incompleta. O setor agroexportador gera riqueza, mas essa riqueza não se converte em desenvolvimento. Gera divisas, mas não acumulação produtiva; gera renda concentrada, mas não difusão tecnológica. A questão essencial, portanto, não é “se” o agronegócio pode contribuir para o desenvolvimento, mas como transformar seu excedente externo em base de reindustrialização interna.
Essa reflexão resgata, sob novas condições históricas, uma ideia seminal de Evguêni Preobrazhensky: a “acumulação socialista primitiva”. Em A Nova Economia, o autor defendia que, nas economias em transição, o Estado devia organizar a transferência do excedente gerado nos setores mais dinâmicos ou rentáveis para financiar a industrialização e a ampliação das forças produtivas. Aqui, reinterpretamos o conceito como acumulação primitiva nacional — um mecanismo de desenvolvimento endógeno no qual o Estado coordena e canaliza os excedentes do agronegócio, da energia e da mineração para a expansão da base produtiva, científica e tecnológica do país.
Trata-se, em essência, de restabelecer a coerência entre os setores da economia — algo que Preobrazhensky via como condição da estabilidade e Kalecki, como base do crescimento garantido. Numa economia periférica como a brasileira, o problema não é a escassez absoluta de recursos, mas sua má alocação estrutural. O excedente gerado pelo campo, em vez de financiar a diversificação produtiva, é drenado pelo rentismo, pela financeirização e pelas importações de bens industriais e tecnológicos. Assim, o que poderia ser um ciclo virtuoso de acumulação torna-se uma dependência reeditada: exporta-se tecnologia incorporada e importa-se a tecnologia essencial.
Este artigo propõe que o boom agrário, longe de ser um obstáculo, pode se tornar o motor de uma nova industrialização, desde que inserido em um projeto nacional de planejamento e de investimento coordenado. Reindustrializar, aqui, não significa negar o agronegócio, mas transformar sua força de geração de divisas e inovação em base material para a reconstrução industrial, tecnológica e científica do Brasil.
O desafio é político e estrutural: como organizar, no século XXI, uma estratégia de acumulação que não reproduza a dependência, mas a supere. A resposta não está no retorno ao modelo primário-exportador, nem na simples substituição de importações; está em criar uma economia complexa, verde e digital, capaz de converter a riqueza setorial em desenvolvimento nacional.