sábado, 29 de novembro de 2025

As Cinco Dimensões do Gasto Público e os Fundamentos a uma Teoria Fiscal Moderna

por Almir Cezar Filho 

Introdução

O gasto público é um dos principais instrumentos à disposição do Estado para promover desenvolvimento, garantir direitos e reduzir desigualdades. No entanto, sua análise convencional tende a desconsiderar aspectos mais profundos de sua lógica econômica e política, limitando-se à ótica do controle fiscal e da “responsabilidade” orçamentária imediata.

Este ensaio propõe uma visão alternativa, dividida em duas partes: a primeira explora cinco dimensões fundamentais do gasto público; a segunda avança rumo aos fundamentos para uma Teoria Fiscal Moderna (TFM) — uma abordagem que articula gasto, arrecadação e fundos públicos a partir do princípio da demanda efetiva e da coordenação fiscal intertemporal e interespacial.

I. As Cinco Dimensões do Gasto Público

Para avaliar a qualidade e o impacto de uma política pública, é necessário ir além do montante investido ou do saldo fiscal. As cinco dimensões abaixo oferecem um arcabouço mais robusto:

sábado, 22 de novembro de 2025

Dossiê | Tetralogia de ensaios sobre "Acumulação Coerente"

Ensaios sobre Desenvolvimento, Planejamento e Soberania Social

Por Almir Cezar Filho | Série Limiar e Transformação Econômica

Juntas, quatro dimensões - explicáveis abaixo - compõem o que podemos chamar de "Teorema da Acumulação Coerente", isto é, um sistema econômico é sustentável quando o excedente é gerado de forma produtiva, distribuído de modo planificado e reaplicado socialmente.

Apresentação
A  presente tetralogia de ensaios reúne quatro textos teóricos e críticos que, em conjunto, formulam uma teoria marxista contemporânea do desenvolvimento, articulando macroeconomia, estrutura produtiva, política industrial e transformação social. Inspirada em Evguêni Preobrazhensky, Michał Kalecki, Celso Furtado e Theotonio dos Santos, esta obra desenvolve o conceito de acumulação coerente — uma síntese entre racionalidade planificada, proporcionalidade intersetorial e redistribuição solidária.

Ao longo dos textos, o autor reconstrói, sob novas condições históricas, a tradição do planejamento e da economia política do desenvolvimento no Brasil e na América Latina. Mais que uma teoria da produção ou da política econômica, trata-se de uma teoria da coerência social do desenvolvimento — um esforço de reintegração entre economia, política e ética, num tempo em que a acumulação capitalista global se mostra desordenada, excludente e insustentável.

A Tetralogia propõe, assim, um paradigma alternativo de modernização, no qual o Estado, o trabalho e a comunidade se tornam sujeitos conscientes da acumulação, transformando o excedente em bem comum e o crescimento em soberania.

sábado, 15 de novembro de 2025

Economia Solidária e a Nova Racionalidade do Desenvolvimento: a autogestão como forma social da coerência econômica

Como a organização solidária do trabalho pode transformar o excedente produtivo em soberania social e reconstrução nacional**

Por Almir Cezar Filho*

Resumo
A Economia Solidária é apresentada como dimensão social e territorial da teoria da acumulação coerente, integrando os conceitos de Preobrazhensky, Kalecki e Furtado em uma perspectiva marxista-estrutural contemporânea. Mais que uma política pública ou alternativa de renda, ela constitui um novo paradigma de racionalidade econômica, baseado na autogestão, na propriedade coletiva e na reintegração entre trabalho e comunidade. O artigo analisa suas formas organizacionais, seus instrumentos financeiros (bancos comunitários, moedas sociais, microcrédito orientado), e sua integração com o planejamento estatal e territorial. Defende que a Economia Solidária é o elo que liga a coerência macroeconômica e a redistribuição social, completando o ciclo iniciado nos artigos anteriores sobre crescimento garantido, doença egípcia e acumulação primitiva nacional. Como síntese teórica e prática, propõe que o desenvolvimento brasileiro do século XXI depende da capacidade de transformar solidariedade em estrutura produtiva e excedente em emancipação.

Palavras-chave
Economia solidária; autogestão; desenvolvimento; planejamento econômico; acumulação coerente; Preobrazhensky; Kalecki; Celso Furtado; cooperativismo; economia popular; soberania produtiva; Estado solidário.

I. Introdução – O retorno do trabalho como sujeito do desenvolvimento

A Economia Solidária surge, nas últimas décadas, como uma das expressões mais avançadas da crítica prática ao capitalismo contemporâneo. Ela não é mero programa compensatório de geração de renda nem política pública de combate à pobreza, mas a reemergência da auto-organização dos produtores — trabalhadores que retomam, de forma coletiva e consciente, o controle sobre os meios, os fins e os frutos do seu próprio trabalho. Trata-se de uma racionalidade econômica alternativa, enraizada em valores de cooperação, sustentabilidade e justiça social, que se contrapõe frontalmente à lógica do lucro e da acumulação privada do capital.

Num cenário de crise estrutural da globalização neoliberal, desindustrialização prolongada e precarização do trabalho, a Economia Solidária reaparece como projeto de reconstrução produtiva e social a partir de baixo. Enquanto o capitalismo convencional concentra renda e mercantiliza a vida, a economia solidária descentraliza a produção, redistribui o excedente e restabelece os laços entre economia e comunidade. Ela opera onde o mercado fracassa e o Estado se ausenta — mas vai além da mera substituição: propõe uma nova forma de planejamento democrático da produção e do consumo, em que a finalidade é a reprodução ampliada da vida, não do capital.

Essa perspectiva dialoga com as formulações de Preobrazhensky, que, ao teorizar a acumulação socialista primitiva, identificou o papel histórico das formas não capitalistas na transição ao desenvolvimento planificado. Também se aproxima de Kalecki, para quem a dinâmica macroeconômica só é sustentável quando a distribuição funcional da renda sustenta o investimento produtivo e o pleno emprego. E, ainda, de Celso Furtado, que via na articulação entre estrutura produtiva, cultura e solidariedade social o núcleo do verdadeiro desenvolvimento. A Economia Solidária, nesse sentido, é a tradução microeconômica e territorial dessa coerência macroestrutural — uma forma de desenvolvimento endógeno, inclusivo e socialmente racional.

Diferente de programas assistenciais ou políticas de subsistência, a Economia Solidária se ancora na autonomia dos trabalhadores e no enraizamento comunitário da produção. Suas experiências — cooperativas, empresas recuperadas, redes de produtores, bancos comunitários, moedas sociais e tecnologias sociais — compõem um mosaico de resistência e inovação que desafia a hegemonia da empresa capitalista tradicional. Cada experiência local, por pequena que pareça, representa um ato de reconstrução da economia nacional a partir de suas bases sociais, culturais e ecológicas.

Por fim, a Economia Solidária ocupa um lugar estratégico na nova teoria do desenvolvimento que propomos ao longo desta série. Se o primeiro artigo tratou da coerência macroeconômica entre crescimento e estabilidade, e o segundo diagnosticou a “doença egípcia” como estagnação estrutural das economias dependentes, e o terceiro resgatou a acumulação primitiva nacional como fundamento da reindustrialização soberana, agora a Economia Solidária fecha o ciclo ao apresentar o sujeito social desse processo: o trabalho coletivo, consciente e autogestionário. É nele que o desenvolvimento se reconcilia com o humano — onde a economia volta a servir à sociedade, e não o contrário.

sábado, 8 de novembro de 2025

Dossiê | A Teoria da Acumulação Coerente: Ensaios sobre Desenvolvimento, Planejamento e Soberania Econômica

Por Almir Cezar Filho | Série Limiar e Transformação Econômica

Apresentação Geral
O presente dossiê reúne três ensaios teóricos interligados que propõem uma releitura marxista contemporânea do desenvolvimento econômico brasileiro, articulando as contribuições de Evguêni Preobrazhensky, Michał Kalecki e Celso Furtado à realidade do capitalismo periférico do século XXI.
Os textos exploram, em sequência lógica, três dimensões estruturais do processo de acumulação:
1️⃣ a coerência entre crescimento e estabilidade;
2️⃣ as patologias da dependência e da estagnação; e
3️⃣ a reconstrução produtiva a partir do excedente nacional.
A trilogia forma o núcleo do que pode ser denominado Teoria da Acumulação Coerente, na qual o desenvolvimento não é visto como resultado espontâneo do mercado, mas como processo planejado de compatibilização entre setores, ritmos e proporções.
O Estado aparece, assim, não como mero gestor fiscal, mas como mediador racional da reprodução social, encarregado de alinhar excedente, investimento e capacidade produtiva.

1. Crescimento Garantido e Não Inflacionário (Objeto: Theorem of Structural Coherence)
Síntese: O primeiro ensaio propõe um modelo interdepartamental de crescimento garantido e não inflacionário, unindo Kalecki e Preobrazhensky. Defende que a estabilidade de preços não depende da austeridade fiscal, mas da compatibilidade estrutural entre os ritmos de expansão dos setores da economia. A inflação, nessa ótica, decorre de descompassos intersetoriais, e o crescimento sustentável surge quando o investimento produtivo se mantém proporcional à capacidade instalada.
Tese central: > “A coerência estrutural é a verdadeira âncora da estabilidade macroeconômica. A meta de inflação deve ser substituída pela meta de coerência interdepartamental.”
Conceito-chave: Taxa de crescimento garantido não inflacionário (gⁿᶦ = s / Σβᵢvᵢ)

2. A Doença Egípcia: um Paradigma Invertido da Doença Holandesa (Objeto: Structural Stagnation and Dependent Inflation)
Síntese: O segundo ensaio amplia a análise macroeconômica e introduz o conceito original de Doença Egípcia, definido como a síndrome de economias periféricas que nunca completaram sua industrialização, mas sofrem de estagnação e inflação crônica. Enquanto a Doença Holandesa é uma patologia do sucesso — excesso de divisas e valorização cambial —, a Doença Egípcia é uma patologia da carência, marcada pela dependência cambial e pelos gargalos produtivos.
Tese central: > “O subdesenvolvimento não é a ausência de industrialização, mas sua deformação permanente. A Doença Egípcia é o espelho da dependência: um sistema que vive de crises cambiais e de inflação estrutural.”
Conceito-chave: Ciclo da escassez e da regressão estrutural (queda das commodities → depreciação → inflação de custos → desindustrialização)

3. Do Boom Agrário à Nova Industrialização: o Agronegócio como Fonte de Acumulação Primitiva Nacional (Objeto: National Primitive Accumulation and Productive Reconstruction)
Síntese: O terceiro ensaio propõe o conceito de Acumulação Primitiva Nacional, reinterpretando Preobrazhensky sob as condições do capitalismo dependente atual. Defende que o excedente do agronegócio, quando coordenado por políticas públicas, pode financiar a reindustrialização verde e digital do país, inaugurando um novo ciclo de acumulação produtiva e soberania tecnológica.
Tese central: > “O campo, que historicamente foi a base da dependência, pode tornar-se a alavanca da soberania produtiva — desde que o Estado recupere o papel de mediador da acumulação e articulador da coerência nacional.”
Conceito-chave: Acumulação Primitiva Nacional – transferência planejada do excedente primário para investimento industrial, tecnológico e científico.

Integração Teórica da Trilogia
  • Dimensão Conceito Problema Histórico Solução Proposta
  • Macroeconômica Crescimento Garantido e Não Inflacionário Instabilidade de preços e descoordenação intersetorial Planejamento da coerência estrutural
  • Estrutural Doença Egípcia Estagnação e inflação de custos em economias dependentes Superação dos gargalos produtivos e cambiais
  • Estratégica Acumulação Primitiva Nacional Falta de base produtiva e de coordenação estatal Reindustrialização e investimento produtivo planejado
Em conjunto, os três ensaios formulam uma visão integrada de desenvolvimento, na qual o crescimento, a estabilidade e a soberania deixam de ser objetivos concorrentes e passam a ser dimensões complementares de uma mesma racionalidade econômica. Essa racionalidade — a coerência estrutural — é o que distingue o planejamento do improviso, o desenvolvimento da expansão cíclica e a autonomia da dependência.

Referência Geral do Dossiê
  • CEZAR FILHO, Almir. A Teoria da Acumulação Coerente: Ensaios sobre Desenvolvimento, Planejamento e Soberania Econômica. Série Limiar e Transformação Econômica. Niterói–Brasília, 2025.

sábado, 1 de novembro de 2025

Do Boom do Agro à Nova Industrialização: o Agronegócio como Fonte de Acumulação Primitiva Nacional

Como o setor agroexportador pode financiar a reindustrialização, ampliar a complexidade produtiva e consolidar a soberania econômica do Brasil*

Por Almir Cezar Filho**

Resumo
O artigo propõe o conceito de acumulação primitiva nacional, inspirado em Evguêni Preobrazhensky e adaptado à realidade do capitalismo periférico contemporâneo. A partir da análise do boom do agronegócio brasileiro, o texto demonstra que o setor agroexportador, quando articulado a uma política de planejamento e investimento público, pode atuar como fonte de financiamento produtivo e tecnológico da reindustrialização. Diferente da “doença holandesa” e da “doença egípcia”, em que o campo atua como fator de regressão estrutural, a acumulação primitiva nacional propõe a transferência consciente e planejada do excedente agrário para os setores industriais, científicos e de infraestrutura.
Com base nas formulações de Preobrazhensky, Kalecki e Furtado, o artigo articula os conceitos de coerência estrutural, crescimento garantido e soberania produtiva, defendendo a criação de um novo pacto desenvolvimentista entre Estado, agronegócio, indústria e ciência. A tese central é que o Brasil dispõe hoje dos meios materiais para um novo ciclo de industrialização verde e digital — faltando-lhe apenas a consciência da necessidade, isto é, o planejamento econômico como instrumento de transformação nacional.

Palavras-chave
Acumulação primitiva nacional; agronegócio; reindustrialização; desenvolvimento econômico; coerência estrutural; crescimento garantido; Preobrazhensky; Kalecki; Celso Furtado; soberania produtiva; Brasil.


I. Introdução – O Paradoxo do Sucesso Agrário

O Brasil vive um paradoxo estrutural. Enquanto o agronegócio alcança níveis inéditos de produtividade, rentabilidade e inserção internacional, o país como um todo experimenta uma prolongada estagnação industrial e tecnológica. A agricultura, responsável por metade das exportações e por saldos comerciais que sustentam a estabilidade cambial, tornou-se a principal âncora macroeconômica de uma economia que, paradoxalmente, perdeu sua base manufatureira e sua capacidade autônoma de inovação.

A narrativa oficial — de que o sucesso do agronegócio seria suficiente para puxar o crescimento nacional — revela-se incompleta. O setor agroexportador gera riqueza, mas essa riqueza não se converte em desenvolvimento. Gera divisas, mas não acumulação produtiva; gera renda concentrada, mas não difusão tecnológica. A questão essencial, portanto, não é “se” o agronegócio pode contribuir para o desenvolvimento, mas como transformar seu excedente externo em base de reindustrialização interna.

Essa reflexão resgata, sob novas condições históricas, uma ideia seminal de Evguêni Preobrazhensky: a “acumulação socialista primitiva”. Em A Nova Economia, o autor defendia que, nas economias em transição, o Estado devia organizar a transferência do excedente gerado nos setores mais dinâmicos ou rentáveis para financiar a industrialização e a ampliação das forças produtivas. Aqui, reinterpretamos o conceito como acumulação primitiva nacional — um mecanismo de desenvolvimento endógeno no qual o Estado coordena e canaliza os excedentes do agronegócio, da energia e da mineração para a expansão da base produtiva, científica e tecnológica do país.

Trata-se, em essência, de restabelecer a coerência entre os setores da economia — algo que Preobrazhensky via como condição da estabilidade e Kalecki, como base do crescimento garantido. Numa economia periférica como a brasileira, o problema não é a escassez absoluta de recursos, mas sua má alocação estrutural. O excedente gerado pelo campo, em vez de financiar a diversificação produtiva, é drenado pelo rentismo, pela financeirização e pelas importações de bens industriais e tecnológicos. Assim, o que poderia ser um ciclo virtuoso de acumulação torna-se uma dependência reeditada: exporta-se tecnologia incorporada e importa-se a tecnologia essencial.

Este artigo propõe que o boom agrário, longe de ser um obstáculo, pode se tornar o motor de uma nova industrialização, desde que inserido em um projeto nacional de planejamento e de investimento coordenado. Reindustrializar, aqui, não significa negar o agronegócio, mas transformar sua força de geração de divisas e inovação em base material para a reconstrução industrial, tecnológica e científica do Brasil.

O desafio é político e estrutural: como organizar, no século XXI, uma estratégia de acumulação que não reproduza a dependência, mas a supere. A resposta não está no retorno ao modelo primário-exportador, nem na simples substituição de importações; está em criar uma economia complexa, verde e digital, capaz de converter a riqueza setorial em desenvolvimento nacional.