I. O vazio monumental no coração da cidade
No coração histórico de Niterói, um terreno vazio atravessa gerações como cicatriz aberta. Murado, transformado em estacionamento privado, ele marca a ausência de um edifício que deveria ter completado o centro cívico mais ambicioso da antiga capital do Estado do Rio de Janeiro: o Palácio da Secretaria-Geral do Governo do Estado. Projetado em 1911 por Heitor de Mello, em estilo eclético com traços neoclássicos, o edifício seria o símbolo do Poder Executivo fluminense, lado a lado ao já erguido Palácio da Justiça, à Assembleia Legislativa e à antiga Chefatura de Polícia.
O não cumprimento dessa etapa não é só uma falha arquitetônica ou administrativa: é um trauma urbanístico. O que era para ser um conjunto harmônico de prédios públicos de inspiração europeia — nos moldes dos centros cívicos de Washington, Viena ou Paris — tornou-se um monumento à incompletude, à descontinuidade política e à falta de visão urbanística que assola o planejamento das cidades brasileiras. Niterói, infelizmente, é um exemplo emblemático desse ciclo de promessas quebradas.
II. Projetos pela metade, urbanismo pela exceção
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Projeto original de Heitor de Mello - Planta do arquivo do CREA-RJ |
A não construção do Palácio da Secretaria-Geral insere-se numa lógica persistente: a dos projetos urbanos pela metade. Iniciado com entusiasmo pela gestão republicana do início do século XX, o Centro Cívico da Praça da República previa uma praça monumental ladeada por edifícios públicos de função e simbolismo. Ainda na década de 1910, foram erguidos os prédios da Escola Normal, Assembleia Legislativa, Chefatura de Polícia e Palácio da Justiça. Mas a crise econômica pós-Primeira Guerra Mundial, as mudanças de governos e as disputas políticas adiaram indefinidamente a construção do palácio do Executivo e da praça ajardinada em seu centro.
O terreno permaneceu vazio por décadas, enquanto a cidade mudava ao seu redor. Tentativas de "revitalização" urbana — como o Aterro da Praia Grande, o Caminho Niemeyer e, mais recentemente, o programa “Niterói 450” — seguiram a mesma sina: obras inacabadas, mudanças de rumo e zonas centrais transformadas em áreas degradadas ou subutilizadas. Terrenos viram estacionamentos, quadras viram depósitos improvisados, espaços públicos tornam-se privados pela inércia do Estado. Esse padrão parece estrutural, repetindo-se em outras cidades, como no Porto Maravilha, no Rio de Janeiro.
III. O que poderia ter sido: palácio, museu, centro cultural
Caso tivesse sido erguido, o Palácio da Secretaria-Geral teria hoje múltiplas possibilidades de uso. Como sede administrativa, reforçaria a presença do Estado no Centro de Niterói, descentralizando a burocracia da capital fluminense. Como museu da República ou centro de interpretação da memória urbana, poderia reunir e valorizar a história político-arquitetônica da cidade. E como centro cultural, ampliaria o circuito Niemeyer de equipamentos simbólicos, ajudando a consolidar Niterói como polo de turismo histórico e artístico.
Na Europa, projetos arquitetônicos apagados pela história vêm sendo recuperados como forma de reconciliação simbólica e urbanística. Em Berlim, o antigo Palácio Real dos Hohenzollern, demolido no período comunista, foi reconstruído sob a forma do moderno Humboldt Forum. Em Varsóvia, diversos prédios históricos foram reerguidos no pós-guerra com base em registros iconográficos e documentação histórica. Essas experiências mostram que reerguer o que não foi construído pode ser um gesto de recuperação cívica, não um saudosismo anacrônico.
IV. Urbanismo como política, memória como estratégia
Mais do que nostalgia arquitetônica, discutir o Palácio nunca construído é tratar da memória urbana como projeto político. O vazio deixado pela sua ausência é também a ausência de uma ideia de cidade. Em lugar do centro cívico planejado, temos um amontoado de funções desarticuladas: tribunais cedidos, escolas sob pressão, estacionamentos informais, ausência de um marco simbólico da administração estadual.
A reconstrução — ou mesmo a construção ex novo — do Palácio da Secretaria-Geral do Estado poderia ser um projeto piloto de ressignificação do Centro de Niterói. Respeitando o estilo eclético original, atualizado às demandas contemporâneas de sustentabilidade, acessibilidade e multifuncionalidade, o novo edifício poderia reintegrar o Centro ao imaginário da cidadania fluminense. E dar novo fôlego a uma cidade que sempre oscilou entre o vanguardismo cultural e o abandono de seus próprios projetos.
V. O passado como semente do futuro
A história do Palácio não construído revela o quanto o Brasil, e Niterói em particular, são marcados por rupturas de continuidade, descompromissos institucionais e políticas urbanas voltadas mais para o capital fundiário do que para a cidadania. Mas esse passado também é um convite à retomada de projetos com profundidade histórica e ambição cívica.
Construir (ou reconstruir) o Palácio da Secretaria-Geral do Estado pode parecer um gesto simbólico. E é. Mas símbolos importam. Especialmente quando ajudam a articular espaço, memória e função pública. O vazio urbano da Praça da República não precisa ser permanente. Ele pode, sim, ser preenchido com dignidade, história e sentido republicano.