É o mínimo de justiça fiscal, não bitributação como alega a ultradireita, mídia e mercado
por Almir Cezar Filho, economista
Nas últimas semanas, ganharam força na mídia e nas redes sociais diversas críticas à proposta de tributar lucros e dividendos no Brasil. Argumenta-se, em tom alarmista, que a medida configuraria uma “bitributação”, um ataque ao setor produtivo ou até mesmo uma violação constitucional. Tais posições, no entanto, ignoram aspectos fundamentais da justiça fiscal e da profunda desigualdade que marca o sistema tributário brasileiro. Enquanto trabalhadores e consumidores arcam com pesados impostos sobre salários e consumo, os lucros distribuídos a acionistas seguem isentos há quase 30 anos. Este artigo propõe uma análise crítica sobre o tema, desconstruindo cinco mitos que têm alimentado essa narrativa e defendendo a urgência de um modelo tributário progressivo, capaz de financiar o Estado sem penalizar quem vive do próprio trabalho.
Um dos textos que expressa essa visão crítica à tributação de lucros e dividendos é o artigo de opinião “Desmascarando o absurdo da tributação de lucros e dividendos”, assinado por Ricardo Sayeg e publicado no portal iG. O autor argumenta que as empresas brasileiras já enfrentam uma carga tributária excessiva e que qualquer taxação adicional sobre lucros e dividendos configuraria bitributação, além de ser um obstáculo ao crescimento econômico. Sayeg acusa o governo de utilizar a medida como manobra para cobrir um suposto descontrole fiscal, criticando também a revogação do teto de gastos e defendendo a austeridade e a redução do papel do Estado como alternativas mais responsáveis.
Essa visão, porém, parte de premissas equivocadas e ignora a estrutura regressiva do sistema fiscal brasileiro. Uma abordagem progressista e comprometida com o desenvolvimento econômico e a equidade social permite desmontar, com base em dados e comparações internacionais, os principais argumentos levantados contra a taxação de lucros e dividendos. A seguir, analisamos cinco desses equívocos. Vamos "desmascarar a desmascaração":
1. O Mito da Carga Tributária Excessiva sobre as Empresas
O autor afirma que as empresas no Brasil já enfrentam uma
carga tributária "descomunal" que pode chegar a 40% do faturamento.
Esse número é, no mínimo, controverso. A carga tributária total no Brasil gira
em torno de 32% do PIB, o que nos coloca abaixo da média da OCDE (cerca de
34%). Além disso, grande parte da arrecadação brasileira recai sobre o consumo
e a folha de pagamento, enquanto o capital e a renda dos mais ricos são
relativamente pouco tributados.
No que se refere ao lucro das empresas, o Brasil tem um dos
regimes mais generosos do mundo: não há tributação sobre lucros e dividendos
distribuídos a pessoas físicas desde 1995. Em comparação, países como Estados
Unidos, Alemanha e França taxam dividendos a taxas superiores a 20%. Ou seja, o
Brasil está na contramão da prática internacional, beneficiando especialmente
os mais ricos.
2. O Erro ao Chamar a Tributação de Lucros e Dividendos de "Bitributação"
Sayeg argumenta que tributar dividendos equivaleria a uma
bitributação, pois as empresas já pagam IRPJ e CSLL sobre seus lucros. Esse
argumento ignora um ponto fundamental: lucro e dividendos são coisas distintas.
O IRPJ e a CSLL incidem sobre o lucro da empresa antes da
distribuição aos sócios. A tributação de dividendos recai sobre o rendimento recebido
pelo acionista. Isso não configura bitributação, pois são tributos sobre
sujeitos distintos: a empresa paga sobre seu lucro, e o acionista paga sobre
sua renda. Essa distinção existe em praticamente todas as economias
desenvolvidas.
3. A Falácia de que Tributar Dividendos Afugentaria
Investimentos
Outro ponto levantado no artigo é que a tributação de lucros
e dividendos afastaria investidores e sufocaria o setor produtivo. Isso é uma
falácia econômica. Países com tributação de dividendos bem estruturada, como os
EUA e a Alemanha, não sofrem fuga massiva de investimentos. Pelo contrário, a
segurança jurídica e a previsibilidade fiscal são fatores muito mais relevantes
para o investimento do que a isenção sobre dividendos.
Além disso, no Brasil, a isenção de dividendos não se traduz
em maior investimento produtivo. Em vez disso, estimula a distribuição de
lucros em detrimento do reinvestimento nas empresas, beneficiando acionistas em
detrimento da geração de empregos e do crescimento econômico.
4. O Verdadeiro Impacto da Isenção de Dividendos
O artigo ignora um dado crucial: quem mais se beneficia da
isenção de dividendos são os super-ricos. Estima-se que os 0,1% mais ricos do
Brasil detêm 70% dos rendimentos isentos de tributação. Enquanto trabalhadores
assalariados pagam até 27,5% de Imposto de Renda, empresários e investidores
recebem dividendos sem qualquer tributação, aprofundando a desigualdade.
Se o Brasil adotasse uma alíquota moderada sobre dividendos,
seria possível arrecadar mais de R$ 100 bilhões por ano, aliviando a carga
sobre o consumo e o trabalho, que hoje sustentam o sistema tributário.
5. O Verdadeiro Problema Fiscal
Sayeg acusa o governo de descontrole fiscal e
irresponsabilidade, mas ignora que a verdadeira distorção está na falta de
progressividade do sistema tributário. O tal Novo Arcabouço Fiscal, de Lula e Haddad, não revogou a
responsabilidade fiscal, apenas substituiu o teto de gastos, que se mostrou
ineficaz e socialmente perverso por um outro mecanismo - que não verdade é alvo de críticas justamente por talvez repetir essa mesma consequência. "Reduzir o tamanho do Estado", como propõe o
autor, significaria menos serviços públicos, mais desigualdade e menor
capacidade de indução ao crescimento econômico.
Conclusão
A defesa da isenção sobre lucros e dividendos, como apresentada por Sayeg, apoia-se em premissas frágeis e falácias econômicas que não resistem ao escrutínio de uma análise séria. Tributar dividendos não é bitributação, tampouco um ataque ao setor produtivo — trata-se, antes, de uma medida de justiça fiscal amplamente adotada em economias desenvolvidas, essencial para combater a concentração de renda e tornar o sistema tributário brasileiro mais equitativo. Se o país almeja um modelo econômico mais justo e sustentável, precisa urgentemente reequilibrar sua estrutura tributária, aliviando o peso sobre o consumo e os trabalhadores, e cobrando mais de quem realmente pode pagar: o topo da pirâmide, hoje ainda amplamente poupado.
Importa destacar, contudo, que por trás dos argumentos técnicos circula uma visão de mundo marcada por interesses de classe. A retórica dramatizada e o uso de jargões jurídicos servem mais para blindar privilégios do que para propor soluções efetivas. Trata-se de uma perspectiva típica da direita ultraliberal, que, sob o verniz da racionalidade econômica, opera como linha auxiliar do capital rentista e concentrador. Ao ignorar os efeitos sociais da desigualdade e defender a austeridade como panaceia, essa posição se recusa a reconhecer o papel redistributivo do Estado num país ainda marcado por desigualdades brutais.
Em vez de contribuir para um debate honesto sobre justiça tributária, esse discurso atua como trincheira ideológica contra qualquer avanço civilizatório na taxação do capital. No fim, o que se revela é menos uma preocupação com o desenvolvimento nacional e mais a defesa cega de um sistema que perpetua os privilégios de poucos às custas da maioria.
Vamos ver se o presidente Lula e o ministro da Fazenda terão coragem para tentar aprovar a medida.
Artigo revisado em: 03/04/2024
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