por Almir Cezar Filho
A investigação* sobre a realidade agrária e do meio rural identificou particularidades na estrutura agrária do território fluminense, com necessárias implicações na formatação das políticas públicas de desenvolvimento agrário. A Agricultura regional é pautada pela “não convencionalidade” dos atores agrários, especialmente os agricultores familiares, o que explica a baixa eficiência das políticas agrárias e agrícolas, que não vem impedindo o declínio do peso do setor agrícola e do espaço rural no cenário econômico e social fluminense. Diante da peculiaridade é preciso ajustar as políticas agrárias, sendo que os estímulos à produção agroecológica e de orgânicos pode contribuir para ampliar a eficácia, a eficiência e a efetividade dessas políticas públicas.
O Censo Agropecuário 2006 recenseou no Rio de Janeiro meros 58.482 estabelecimentos agropecuários e apurando que 75% (44.145) deles estavam nos critérios de Agricultura Familiar (Lei 11.326/2006). O grande volume da Agricultura Familiar não se reverte em riqueza. O RJo respondeu em 2014 por 11,6% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, mas os baixos números oficiais da população rural (5%), resultam num PIB regional Agrícola menor que 1% (na verdade 0,5%). Representando 3/4 do total de estabelecimentos, a agricultura familiar fluminense ocupa uma área de apenas 470.221 ha, cerca de 23% da área total de estabelecimentos do estado. Apesar disso, responde por cerca de 50% do valor da produção, com particular importância na produção de alimentos, e é responsável por 58% do total de pessoas ocupadas no setor.
Tomando como aproximação esse mesmo quantitativo do Censo Agropecuário 2006 e comparando com o número atualizado de Declarações de Aptidão ao PRONAF (DAPs) de abril de 2017 de 14.471 declarações do tipo Pessoa Física (PF) válidas, tem-se que, no máximo, apenas 33% dos agricultores familiares são “dapiados”. O pior percentual de cobertura do Brasil. Atrás do Nordeste e de estados dominados pelo agronegócio de grande escala como São Paulo e Mato Grosso.
Com base ao número de estabelecimentos agropecuários (EAP) familiares (com até 4 módulos fiscais) e supondo que pelo menos cada um tenha direito a pelo menos um DAP-Pessoa Física, ao comparar com o número total DAP-PF no Rio de Janeiro, o número de dapiados se limita a apenas 1/3 do público elegível. Por sua vez, o número de contratos de crédito rural PRONAF celebrados limita-se a apenas 22% das dapiados, sendo que mais de 70% dos contratos e mais de 80% dos valores referem-se a dapiados com 4 módulos fiscais. Essa desigualdade, como também a própria fragilidade da Agricultura Familiar pode ter origem no perfil não convencional.
A despeito do problema da limitação aparente dadas pela dimensão do PIB Agrícola Regional e do número de Declarações de Aptidão ao PRONAF (DAPs) emitidos e de contratos de crédito rural celebrados, esconde-se, no Rio de Janeiro, um potencial invisível, mas mensurável a essa Agricultura Familiar. Os números de agricultores familiares e empreendedores rurais familiares são muito superiores ao número de beneficiários atuais das políticas agrárias. Porém esse potencial não se efetiva em razão de características peculiares. Observando-se que a Agricultura fluminense tem em sua composição um considerável peso de agricultores familiares “não convencionais”. Esse perfil dificultaria o reconhecimento desses como sujeitos potencialmente beneficiários. O caso mais sintomático pode ser mensurado desde o percentual de cobertura de DAPs, o que por sua vez, complicaria desde a celebração de contratos de Programa Nacional de Apoio a Agricultura Familiar (PRONAF) como o acesso a outras políticas agrárias, ou mesmo de atendimento dos agricultores familiares, cuja identificação exige-se esta declaração.
Essa não-convencionalidade manifesta-se, entre outras formas, pelo perfil pela excessivamente minifundista dos agricultores familiares fluminense. Para o Censo Agropecuário 2006, no Rio de Janeiro, 56% dos estabelecimentos agropecuários têm menos de 10 hectares, enquanto no Rio Grande do Sul são 38,6% dos totais. Por outro lado, 32,6% têm entre 10 a menos de 100 hectares, enquanto no RS são 52,69%. Um pouco mais de 7% estabelecimentos no RJ tem entre 100 a menos de 1.000 ha, mas ocupam 50% das área total; no RS esses mesmos representam um pouco mais de 6%, mas ocupam um pouco menos de 40%. No RJ, 0,2% dos estabelecimentos tem mais 100 ha, mas ocupam mais de 14% da área; no RS esses mesmos representam quase 0,7%, mas ocupam 24,9% da área total. Esses imóveis rurais passam por dificuldade de alcançar uma produtividade que lhes garanta autossustentabilidade, como também a competitividade, forçando uma pressão à pluriatividade das respectivas famílias.
Outra não convencionalidade desses agricultores familiares fluminense é a forte presença de estabelecimentos agrários em meio urbano. No perímetro do município da Cidade do Rio de Janeiro registra-se pelo INCRA mais de 3 mil imóveis rurais junto ao Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) e o apurados mais de 2 mil EAP familiares pelo IBGE, cuja superfície territorial é fixada pelo Plano Diretor Municipal como exclusivamente urbana, à despeito da fisionomia local ser marcada por um mosaico sucessiva que em nada confirma essa exclusividade. Amplas áreas possuem perfil rurbano ou dominados por paisagem com antropomorfização condicionada a uma vida natural. Em uma sucessão de diversos perfis de paisagem em poucos quilômetros de distância, e alternando-se, compondo um amplo mosaico de tipos de territórios.
Em resumo são sete características principais:
a) território em mosaico: alternando-se sucessivamente ao longo do espaço e em curta distância zonas rurais, urbanas e áreas de conservação ambiental.
b) forte desruralização relativa e zoneamento legal que não corresponde a variedade de tipos de espaços territoriais: o grosso da população migrou às cidades ou zonas inteiras acabaram convertidas em urbanas. A metade da população se encontra na região metropolitana e com municípios nominalmente sem nenhuma zona rural. Temos localidades classificadas legalmente como em zona urbana apesar de intensa presença de características rurais ou rurbanas.
c) forte desagriculturalização relativa: o peso no PIB Estadual do setor agrícola é muito pequeno (o RJ é o 2º maior PIB do país, a Agricultura representa meros 0,5% dele). Entre as possíveis causas estão o colapso da agricultura patronal centrada no modelo de plantation e na debilidade secular da agricultura familiar regional. Os imóveis agrários patronais se converteram em empreendimentos imobiliários urbanos ou para pecuária pouco intensiva. Os familiares em moradia, sítios de recreação ou pequenos negócios, porém uma parte se mantém praticando inclusive uma agricultura urbana ou agroindústria rudimentar.
d) imóveis agrários familiares muito pequeno ou minifúndio:
e) pluriatividade intensa das famílias: as limitações econômicas dos estabelecimentos agrários são compensados com parte da renda das famílias obtidas com atividades não agrícolas ou mesmo não agrárias que podem vir de fora do estabelecimento, favorecidas com a vizinhança urbana.
f) foco no beneficiamento, processamento ou comercialização: a atividade econômica principal do estabelecimento, a fim de agregar valor aos produtos ou ampliar a renda, passa a ser não a exploração agrícola direta, mas a transformação, o comércio direto ao consumidor ou atividades rurais complementares.
g) concorrência de terras: entre agricultura com áreas de conservação ou fronteira imobiliária urbana ou grande projetos industriais
Essa fisionomia não se limita a capital fluminense, sendo o padrão não mesmo apenas dos demais municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, mas ao conjunto do estado. Há também a correlação de forças locais, que tensionam a declarar em zoneamento a maior extensão possível do território municipal como urbana, para fins tributários e liberações imobiliárias. A proximidade da zona urbana reforça a pressão pluriativa familiar em razão da opção de vagas de empregos e de fontes de geração de renda e debilita a atividade agrícola a ser desenvolvida pelos estabelecimentos, tanto pela oferta de terras agricultáveis, extensão dos lotes e práticas e técnicas possíveis a ser empregadas.
Os estabelecimentos agrários urbanos, em muitos casos, desenvolvem-se não apenas em territórios periurbanos, mas em intraurbanos, pela própria pressão sob os solos agricultáveis e a concorrência com as atividades urbanas, fixam-se em terras circunvizinhas ou mesmo no limite de áreas ambientalmente conservadas. Nesses casos, a sobrevivência dessas áreas de proteção em muito se deve a própria agricultura, especialmente a familiar, pois nesses territórios se desenvolve uma agricultura em base a procedimentos tradicionais, não agrointensiva ou de baixa impacto ambiental. Vale lembrar que, coube a essa mesma agricultura a preservação dessas áreas, tendo em vista, a servir de barreira espontânea a ameaça exercida pela especulação imobiliária, favelização ou implantação grandes projetos industriais ou comerciais, como também pela pouco desmate ocasionado pelo padrão produtivo. Porém, a dupla proximidade Unidades de Conservação-Zona Urbana, em sua maioria, reserva à atividade agrícola a descapitalização e a limitação de opção técnicas. Esses estabelecimentos, por outro lado, têm dificuldade de serem reconhecidos pelas autoridades públicas, pelo tipo de operação, em muitos casos não se assemelha ou está no limite da agricultura de fins comerciais e de autossuficiência.
A pequena dimensão do imóvel e as restrições externas no espaço urbano ou misto, que comprometem escala ou escopo da produção ou as técnicas produtivas, exigem para sobrevivência econômica, o foco na agregação de valor. Logo, um outro traço muito comum na não-convencionalidade é a ênfase da produção nos estabelecimentos agrários ser voltado não a venda de produtos in natura a atacadistas ou distribuidores, mas para a comercialização direta em feiras especiais ou mercados próprios ou parceiros, com igual perfil, de produtos agroecológicos ou orgânico. Ou mesmo o foco no processamento e beneficiamento no próprio estabelecimento ou empreendimento coligado ou cooperativo. Em muitos casos, a agroindústrias, mesmo do tipo artesanal ou rudimentar, tornam-se portanto, a atividade principal em si do agricultor e do seu estabelecimento. Destacam-se assim 5 tipos de produção, nesses casos: compotas e conservas, queijarias, cervejarias, cachaçarias e artefatos de cerâmica. Todos com perfil artesanal ou gourmet.
O fomento a Agricultura Urbana (AU) deve desenvolver-se de forma a não desgastar os recursos naturais e de maneira agroecológica. Por sua vez, a AU é diversificada, não limitada aos agricultores convencionais e tradicionais, sob várias perspectivas incluir os praticantes de hortas comunitárias, quintais produtivos, cultivos em áreas públicas, etc., e que a Política Pública deveria contemplar. Porém, há limites na política agrária do Ministério do Desenvolvimento Agrário- MDA (atual Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário da Presidência da República -SEAD tendo em vista seu alcance nacional, as finalidades ao que os programas foram desenvolvidos e a paradigmática de referência na formulação.
Assim, a Agroecologia e a produção de orgânicos, já incorporado a matriz das políticas agrárias federais - combinadas com outros princípios, como a valorização da produção de âmbito local, os circuitos curtos (compra direta do produtor) - pode contribuir para agregação de valor, e como alternativa de padrão operacional produtivo praticado pelos estabelecimentos agrários em âmbito urbano e os agricultores familiares não convencional.
Portanto, não apenas ao desenvolvimento rural, mas ao urbano, a agricultura familiar torna-se importante ao planejador. Questões como não separar o “morar” do “trabalhar” e/ou “produzir”, nesse caso plantar, como também, a ligação entre produção de alimentos, suas distribuição e consumo, dentro do mesmo espaço urbano. Se para as políticas públicas vêm se tornando categórico a questão da segurança alimentar e nutricional, a agricultura urbana torna-se importante, à medida que “não dá para falar em segurança alimentar sem falar na produção de alimentos”.
Logo, é princípio incorporar o circuito curto de produção e sua vinculação com a agricultura urbana, dos hábitos alimentares saudáveis, do desenvolvimento econômico e geração de renda e preservação do meio ambiente. Portanto, a Agricultura Urbana deve ser preservada, fomentada e estimulada, em especial, a de recorte familiar, como fator de relevância da relação na melhora do desenvolvimento humano, como parâmetro na relação com o restante da Região Metropolitana e as no fomento às cadeias produtivas regionais e aproveitamento dos instrumentos tributários (definição entre o emprego alternativo entre o IPTU e ITR) e creditícios.
A AU é importante como barreira a especulação imobiliária e promoção do desenvolvimento ambientalmente sustentável. As prefeituras municipais deveriam se interessar em resgatar a delimitação das áreas rurais ou de interesse agrícola nos respectivos planos diretores, contemplando a agricultura urbana. Os municípios devem desenvolver igualmente suas próprias políticas de AU, tanto como, em virtude das especificidades locais, pelo fato que as políticas federais não atenderam por sua abrangência nacional a todos os perfis desse público. Há muitos municípios pelo país com política de AU e/ou Agricultura Urbana e Periurbana, mas nenhum no Estado do Rio de Janeiro. Em alguns municípios preponderantemente urbanos, como é o caso de São Paulo (SP), o foco são os “cinturões verdes”, em gerais, zonas agrícolas periurbanas, ou em municípios imediatamente limítrofes ao grande centro urbano, porém este modelo não é possível reproduzir por todo o território nacional.
Com relação aos planos municipais de AU é necessário constarem metas e orçamento e prescrevam o desenvolvimento institucional tanto de marcos legais, como de mecanismos que protejam da descontinuidade dessas políticas específicas. Também se faz necessário compor uma governança territorial. Conjuntamente aos planos municipais de AU se faz preciso a instalação de Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural, que contemplem a Agricultura Urbana (onde não houver zonas rurais, podem ser substituídos por de Desenvolvimento Agrário ou Agrícola).
Em paralelo é importante a promoção de ajustes no Plano Diretor Municipal, à medida que eliminou a zona rural, mesmo que fixando áreas de interesse agrícola, inclusive com condicionantes a fixação desse e demais ocupações do solo. Também haja a elaboração, complementar ao Plano Diretor de Lei de Uso e Ocupação do Solo (LUOS), com as áreas de interesse econômico à agricultura. Essa modelagem governamental e institucional deve ser sempre acompanhada de forte controle social.
Preponderantemente são agricultores familiares os praticantes de AU. A maioria são agricultores tradicionais, não necessariamente de matiz étnico-cultural, mas com vínculo histórico familiar com o território, emprego de técnicas tradicionais e de agricultura de baixa intensidade consorciada com a floresta remanescente, que inclusive preserva a própria floresta. Dessa maneira, as políticas de AU devem levar em consideração a proteção das populações tradicionais. Por sua vez, a AU é importante na preservação dos recursos hídricos locais, e deve ser discutido, combinada a extração de água para outras áreas e finalidades, pois penalizam as atividades agroecológicas. Também é preciso reconhecer a valorização simultaneamente das tecnologias sociais e processos tradicionais.
A AU e a Agroecologia podem ser alvo de demais políticas públicas, como Educação Básica e Técnica. Desde a capacitação e formação dos agricultores e familiares à inclusão nos Planos Políticos Pedagógicos (PPP) de cada escola dessas duas temáticas, inclusive da questão da alimentação saudável e sustentável, e o fomento da integração com a comunidade do entorno da unidade escolar, como também com os fornecedores locais. Por sua vez, suspender o encerramento das escolas rurais, revocacionando-as para a condição de escola técnica agrícola de matriz agroecológica.
Deve-se ainda enfrentar a questão do abastecimento e logística, como também o combate aos “desertos alimentares”. Como ainda integrar outros serviços urbanos, como a mobilidade urbana, coleta de lixo, etc. Sobre a coleta de lixo, não apenas na questão do saneamento ambiental, mas inclusive para a compostagem e geração de adubo.
Por parte da SEAD deve haver um refinamento nas orientações à rede de entidades emissoras de DAP e de ATER para que se prepare às peculiaridades dos agricultores familiares urbanos em âmbito intraurbano - com perfil que tende a ser menos convencional, se comparado ao periurbano e rural. Como também a própria SEAD deve desenvolver para essas entidades capacitações e procedimentos voltados a promoção à agroecologia e produção orgânica em espaço urbano, inclusive com chamadas públicas de contratação de serviços específicas a esse segmento.
E ainda, que fomente no âmbito estadual e municipal (ou intermunicipal, por meio dos consórcios), com o auxílio de chamadas públicas da própria SEAD como o PROINF, iniciativas de infraestrutura específica às atividades agrícolas urbanas, desde logística e abastecimento, como também de desenvolvimento de cadeias produtivas, tanto de fornecedores de insumos, como de compradores. Por fim, é possível dedicar-se ao desenvolvimento de linhas federais de crédito vocacionado aos agricultores familiares urbanos.
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(*) este artigo é adaptação do mesmo autor da Nota Técnica nº 009/2017/DFDA-RJ/SEAD, com o título de "Agroecologia, agricultura urbana e agricultura familiar no Rio de Janeiro", elaborada pela Delegacia Federal do Desenvolvimento Agrário no Estado do Rio de Janeiro, da Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário, da Casa Civil, da Presidência da República.
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