quinta-feira, 11 de setembro de 2014

90 anos da Lei da Acumulação Socialista Primitiva

por Almir Cezar

Edição anglófona do livro A Nova Econômica
Completou-se em agosto os 90 anos de um texto clássico da Economia Política Marxista: o artigo A Lei da Acumulação Socialista Primitiva, do economista russo e líder bolchevique Eugeni Preobrazhenski. Publicado pela primeira vez em agosto de 1924, no periódico "O Mensageiro", editado pela Academia Socialista da URSS, o artigo viraria o Capítulo 2º do livro A Nova Econômicauma das mais audaciosas e mais profundas obras de análise teórica da economia soviética dos anos de 1920, época pautada pelos primeiros passos da transição da economia russa ao socialismo (para ler o livro clique AQUI).

O livro Nova econômica: uma tentativa de uma análise teórica da economia soviética  (em russo: Novaia ekonomika: Opy t teoreticheskogo analiza sovetskogo khoziaistva) ou "A Nova Econômica"como mais é conhecido, foi publicado em 1926. Ganhou esse título porque o autor associa a ideia de que era preciso para a jovem URSS uma nova teoria econômica, própria aos dilemas particulares que essa economia de transição ao socialismo vivia, cuja a Economia tradicional não ofereceria respostas, e que, por sua vez, o Marxismo também não. Também para Preobrazhenski, até a Revolução Russa, o Marxismo só havia se debruçado principalmente sobre a gênese, o funcionamento e o caráter crítico do Capitalismo e a deflagração das revoluções proletárias socialistas, ignorado as leis da economia imediatamente posterior à própria revolução.

Portanto, aos marxistas precisariam desenvolver novas formulações teóricas (a dita "nova econômica"), embora recorrendo as bases metodológicas da Economia Política marxista. Assim, empregando a metodologia do livro O Capital, Preobrazhenski busca apreender na economia soviética as leis que regeriam o desenvolvimento de uma economia socialista em transição, ou melhor pós-capitalista, mas na situação em que a agricultura e o pequeno comércio continuavam a guiar-se pelas leis do mercado, mas com a presença de grandes empresas industriais nacionalizadas e certo planejamento estatal.

Cartaz durante a NEP
O capítulo segundo, ainda como o artigo A Lei da Acumulação Socialista Primitiva, foi publicado pela primeira vez em agosto de 1924, constituiu um dos principais textos do período, no auge da NEP (Nova Política Economia), política econômica em vigor desde 1921, que permitiu uma abertura parcial da economia soviética às atividades capitalistas privadas, tendo em vista o isolamento internacional após a revolução, a condição econômica subdesenvolvida herdada e a necessidade de recuperar o parque produtivo após as três guerras pelo que havia em pouco tempo passado a jovem URSS (a Grande Guerra, a intervenção estrangeira pós-revolução e a Guerra Civil).

Tanto o artigo, como posteriormente o livro, refletem as elaborações teóricas de Preobrazhenski enquanto principal líder da Oposição de Esquerda, grupo político existente entre 1923 e 1928 dentro do Partido Comunista, que reuniu Leon Trótski e grande parte da velha guarda do partido e que se opôs a política autoritária de Josef Stálin e de Nikolai Bukharin (então aliado do futuro ditador) e a política pró-burocracia, nepmens e kulaks (os três grupos sociais que ascenderam econômico e politicamente nos anos da NEP). A Oposição de Esquerda se desenvolveu posteriormente, em sequência, na Oposição Unificada (1926), com a adesão de lideranças como Zinoviev, Kamenev e Kruspakaia, e na Oposição de Esquerda Internacional (pós 1928) e na Quarta Internacional (1938) fundadas por Trótski no exílio.

Contrapondo-se a tese stalinista-bukharinista de "socialismo em um só país", a teoria da acumulação socialista primitiva desenrolava que o desenvolvimento socialista de uma economia pós-capitalista isolada se faria pela expansão industrial e da mecanização da produção garantida pela acumulação feita da transferência de recursos para o setor estatal dos capitais excedentários do setor camponês (e da pequena propriedade em geral), acumulação essa sob o controle estatal exercido pelo planejamento democrático centralizado dos preços e pela própria implantação de novas empresas e fábricas estatais.

Essa teoria surgia em meio a chamada "crise das tesoura de preços" de 1923. Durante quase 3 anos de NEP a jovem economia soviética passou sem problemas, com um mercado parcialmente livre, especialmente de gêneros agrícolas. De repente, os preços agrícolas despencam e os manufaturados passam por uma inflação, e mesmo um desabastecimento de certos produtos. O setor agrícola estava sob a produção dos camponeses, enquanto a produção industrial parcialmente estatizada ou sob alguns oligopólios privados recém restaurados pela autorização do capital particular.

Com o mercado livre, os preços agrícolas recuperam preços e logo a produção se ampliou em muito, levando a queda nos preços. O incremento da renda da população resultante a estabilização econômica, expansão das atividades privadas e melhora das vendas no comércio de gêneros agrícolas faz com que o consumo de produtos manufaturados também aumentasse, contudo sem a devida expansão da oferta, diante de um parque industrial especialmente de bens de consumo duráveis, de maquinários e gêneros de base limitados pelo subdesenvolvimento industrial capitalista pré-revolução e os sucessivos anos de destruição das guerras e conflitos. Além disso, apesar da melhorara da situação externa e diminuição do boicote internacional, as importações continuavam limitadas, inclusive devido a falta de reservas de moeda estrangeira.

Essa situação será conhecida posteriormente para os economistas do Desenvolvimento, como "teorema de Preobrazhenski", quando economia nacionais subdesenvolvidas capitalistas ou mistas passam por períodos de fortes de crescimento econômico, que lhe impõe inflação e crise das contas externas. Um dilema entre crescimento e inflação, que só poderia ser revolvido com planificação da economia, industrialização e estatização. A manutenção da NEP, portanto estava colocada em dúvida.

Surge assim, a teoria da lei da acumulação socialista primitiva da necessidade de elaborar uma teoria para entender os dilemas da economia em transição ao socialismo e tentar resolver essa crise. A teoria buscava apreender quais as leis que regeriam o desenvolvimento de uma economia pós-revolução socialista em uma situação em que a agricultura e o pequeno comércio continuavam a guiar-se pelas leis do mercado, quer dizer, numa situação de economia mista, meio estatal socialista e meio privada capitalista, e o desenvolvimento capitalista ulterior era pouco avançado.

Portanto, a teoria da acumulação socialista primitiva se apresenta, segundo a formulação teórica de seus defensores, como a "lei fundamental da transição ao socialismo", e remonta na própria teoria marxista da acumulação primitiva capitalista, segundo o qual, o processo de desenvolvimento nos países capitalistas avançados se deu espontaneamente pela acumulação originária, extraindo capitais dos setores primários e por trocas desiguais entre o setor industrial com a agricultura, o extrativismo mineral e florestal e o comércio externo. Por sua vez, essa acumulação se dá na regulação econômica.

No Capitalismo a regulação econômica, o  funcionamento do sistema econômico, dá-se através da regularidade de preços e de quantidades produzidas, ofertadas e demandadas através da interação econômica entre as respectivas partes do sistema econômico: o Estado, as empresas, os credores, os trabalhadores, os consumidores e os fornecedores, e é feita natural e centralmente pelo valor-trabalho e pela acumulação de capital e a expropriação da mais-valia do trabalho.

A grande indústria capitalista foi desenvolvida primitivamente pelos capitais apropriados pelos burgueses industriais, por meio das próprias trocas desiguais entre a grande indústria com a economia agrária, o comércio colonial e a pequena economia privada urbana mercantil e artesanal. Acabou levando à progressiva industrialização e a expropriação e desaparecimento da economia tradicional e artesanal, embora não se tenha dado totalmente com os países capitalistas atrasados, como era o caso da Rússia pré-Revolução de 1917.

Em uma economia sob a "ditadura do proletariado" (o governo de organismos políticos operários implantando pela vitória revolução proletária socialista), haveria  uma regulação dual sobre essa economia mista na fase de transição para o Socialismo: uma regulação parcial efetuada pela  lei do valor e outra operada pelos organismos de planejamento governamental do Estado Proletário e apoiada pelas empresas estatizadas. Essa dualidade deveria ser progressivamente ser eliminada pelo próprio Estado, pois senão levaria à recorrentes crises na economia de transição (desabastecimento ou inflação), e por fim ao próprio retorno do Capitalismo.

Para a jovem URSS da NEP, Preobrazhenski, Trótski e as centenas de militantes da Oposição defendiam como programa econômico a aceleração da industrialização através de empreendimentos estatais e de infraestrutura, financiados pela transferência de capitais do setor privado, o controle de preços a favor da industrialização, a ampliação das estatizações e do planejamento central, a coletivização e mecanização da agropecuária e a restauração da plena democracia operária nos organismos do Estado e do Partido. Um verdadeiro ataque aos três grupos sociais que estavam se beneficiando daquela conjunta histórica: a burocracia estatal e partidária (os aparatiniks), os nepmens (os empresários e executivos ressurgidos pela NEP) e os kulaks (os médios produtores rurais enriquecidos), que sob a liderança da camarilha stalinista.

Contudo, sob controle da burocracia, o Partido, e o Estado, se fecharam e reprimiram duramente a Oposição, entre 1927-28. Trótski acabou exilado e demais militantes em gulags (campos de trabalhos forçados). Ironicamente, a contraditória economia da NEP tornou-se insustentável: em 1928-29 irrompe uma nova crise econômica, que rapidamente se reverte de crise política, no qual os nepmens e os kulaks ameaçam o poder da burocracia e de Stálin.

Nesse momento, o governo do virtual ditador aplica, à seu jeito, o programa da Oposição, sem se proclamar isso, o chamado 1º Plano Quinquenal: expropria à fome os kulaks (conhecido como "colevitização forçada" ou mesmo na Ucrânia como Holodomar), expulsa e persegue os nepmens (e os intelectuais e burocratas que apoiavam esses dois setores, como Bukharin), criação de megaprojetos industriais e de infraestrutura de maneira atabalhoada e centralização do controle da produção por um Plano voluntarista.

Alguns setores da Oposição presos, aplaudem (sem entusiasmo) as medidas, uns por oportunismo da necessidade, outros sabendo dos problemas da saída stalinista para a crise da NEP, acreditando contudo ser um primeiro passo. Rompem publicamente com as lideranças exiladas, especialmente Trótski.

O "aplauso"  e "autocrítica antitrotskista" de Preobrazhenski lhe traz uma semi-reabilitação no Partido, passando a assumir médios cargos na máquina pública e no planejamento. Porém, sempre crítico, Preobrazhenski escreverá o polêmico artigo Sobre a metodologia da elaboração do Plano Geral e o segundo plano quinquenal, porém não-publicado. Nesse artigo ataca a via de direção da industrialização conduzida pelo regime stalinista, criticando tecnicamente o primeiro plano quinquenal. Aqui retoma e aprofunda aspectos presente no livro O Declínio do Capitalismo (1931) e nos artigos da década de 1920 sobre equilíbrio econômico e funcionamento da economia soviética.

Por conta desse artigo e do livro O Declínio do Capitalismo. Preobrazhenki será expulso novamente do partido em 1934. Reabilitado novamente tempo depois, porém, acabará preso outra vez durante os expurgos partidários da década de 1930, conhecidos como "Julgamentos de Moscou", acusado de participar de uma partido clandestino trotskista, caluniados de sabotadores e agentes apoiados pelo nazismo. Diferente de outros grandes quadros da Revolução em mesma situação, como Bukharin, não confessa os seus falsos crimes. Morre fuzilado secretamente em 1938.

Um fato importante sobre A Nova Econômica é que Preobrazhenski anunciara no prefácio de 1926 que seria apenas a primeira parte de uma obra maior, onde abrigaria a extensão das teorias ali apresentadas, tal como as ideias do artigo original foram expandidas no conjunto de capítulos do livro.  Segundo ele, nesta segunda parte se enfatizaria aspectos mais concretos da economia soviética de então, com a formulação de modelos matemáticos a esse respeito, mas também desenvolveria a teoria da crise do capitalismo e outros aspectos não tratados com profundidades na primeira obra.

Contudo, toda tentativa posterior de lançamento de uma nova obra complementar à A Nova Econômica ficou suspensa pela luta política e/ou acabou vetada pela censura da ditadura stalinista que se consolidou nos anos subsequentes. Porém, a publicação fragmentada de várias artigos, entre 1926 a 1931, reunidos no Ocidente décadas depois (1979) sob o nome de Crise da Industrialização Soviética, e o livro publicado quando ainda estava vivo, O Declínio do Capitalismo (1931), podem de certa forma ser considerados como a continuação do trabalho ou mesmo dos volumes não editados de A Nova Econômica.

E ainda, duas outras obras de Preobrazhenski merecem destaque: O ABC do Comunismo, de 1920 e escrito com Bukharin, e Anarquismo e Comunismo, de 1921, recentemente publicado pela primeira vez no Brasil pela Editora José Luiz e Rosa Sundermann.

Referência e mais informações: 
  • BAPTISTA FILHO, Almir Cezar. Preobrazhensky e a "Nova Economia" da Revolução de Outubro: As lições de um economista bolchevique aos marxistas de hoje
  • BROUÉ, Pierre. Los trotskistas en la URSS (1929-1938)
  • GORINOV & TSAKUNOV Life and works of Evgenii Alekseevich Preobrazhenskii
  • DAY, Richard B., "Introduction". In: PREOBRAZHENSKY, E. A.. 'The Decline of Capitalism'. Amonk, New York: M.E.Sharpe, Inc., 1985.
  • FILTZER, Donald A.. "'Introduction' by Donald A. Filtzer". In: PREOBRAZHENSKY, E. A.. The Crisis of Soviet Industrialization (select essays). White Plains, New York: M.E.Sharpe, Inc., 1979.
  • PREOBRAJENSKY, Eugênio. A Nova Econômica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
  • PREOBRAJENSKY, Eugeny. "Correspondencia entre Trotsky y Preobrajensky", In: Trotsky: Teoria e Práctica de la Revolución Permanente. MANDEL, Ernest, introducción, notas y compilación, Mexico, Siglo XXI, 1983.
  • RODRIGUES, Leônico Martins. "Preobrajensky e a "Nova Econômica"". In: A Nova Econômica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
1ª atualização em 15/09/2014 e 2ª em 19/09/2014

Nenhum comentário:

Postar um comentário