terça-feira, 25 de novembro de 2008

Teoria da Crise no Marxismo (8) - A teoria da crise, o dogmatismo e o revisionismo

Capítulo 8
A TEORIA DA CRISE, O DOGMATISMO E O REVISIONISMO

O Marxismo sistematizou-se e consolidou-se através da análise da realidade e da crítica aos produtos teóricos de outras correntes epistemológicas e políticas. De tal modo que o acervo das obras marxistas principais constituiu-se ao sabor e como resultado de uma incessante polêmica no terreno da luta teórica. Mas, convém lembrar, o debate não se limitou apenas ao choque entre correntes de pensamento antagónicas. Ele se verificou no interior do próprio marxismo, como luta de opiniões no esforço coletivo de interpretação e transformação da realidade. Esse esforço, só é possível enquanto perdurar nas fileiras marxistas uma rigorosa coerência com as categorias básicas do materialismo dialético[1].

No entanto, o crescente, e já longo, processo de dogmatização do marxismo vem obstruindo seriamente a sua evolução enquanto ciência. A cedência ao dogmatismo sedimentou a crença de que o conjunto das obras de Marx, Engels, Lênin, ou mesmo Stálin e depois Mao, ou Trotski, tinham acumulado um máximo de conhecimento possível, a propósito tanto do método científico quanto da realidade capitalista e da revolução socialista. De maneira que a epistemologia marxista foi sendo encarcerada nos marcos de um sistema fechado, ao estilo metafísico, povoado de verdades eternas e absolutas.

O primeiro resultado foi o desabrochar de um desprezo pelo emprego dinâmico do método materialista dialético como ferramenta apropriada à análise da realidade e a sua substituição por uma prática "teórica" limitada às repetições mecânicas e estéreis das verdades descobertas a seu tempo pelos clássicos. Levados às últimas consequências, o dogmatismo provocou toda a gama de distorções que atrofiaram o conteúdo científico e revolucionário do marxismo. A concepção do marxismo como sistema fechado, esgotado pelos clássicos, reservava a cada nova geração de teóricos a função menor de meros propagandistas, quando não de vulgarizadores.

A grande maioria das tentativas de novas contribuições à luz do marxismo passaram a ser encaradas aprioristieamente como manifestações revisionistas ou se fizeram nesses marcos. Por outro lado, a absolutização da contribuição dos clássicos produziu um desinteresse pela continuidade da polémica com as novas correntes do pensamento burguês e pequeno-burguês surgidas no período pós Lênin, como o keynesianismo, o schumpeterianismo, o neoricadianismo e o novo classicismo liberal. O dogmatismo, a propósito de defender a pureza do marxismo, afastou-o da luta ideológica e do extraordinário desenvolvimento científico dos últimos sessenta anos. A polémica, quando existia, era remetida basicamente aos clássicos, ainda que se tratasse de questões inteiramente novas.

A subordinação subserviente do marxismo internacional a um centro dirigente da revolução mundial indevidamente transformado numa entidade infalível e incontestável, influi profundamente no processo de dogmatização do marxismo. Primeiro porque a submissão a um centro dirigente deificado vibrava um golpe mortal sobre o espírito crítico na órbita do próprio marxismo e ainda facilitava a influência pequeno-burguesa.

Assim sendo, as sucessivas gerações tanto pós-Engels como posteriormente as pós-Lênin, alienado sua própria consciência crítica à fé na infalibilidade do centro dirigente, foram formadas (ou deformadas) na exaltação de um praticismo combativo mas desorientado, entorpecido pelas certezas grandiloquentes e triunfaíistas.

Por seu turno, o praticismo provocou uma verdadeira subversão entre as categorias do materialismo dialético. Foi assim que a ciência acabou subordinada aos interesses políticos imediatos, de tal modo que se comprometeu seriamente a ação recíproca dinâmica que a prática política e a atividade científica exercem uma sobre a outra: a primeira fornecendo subsídios em forma de questões, objetos de pesquisa, estímulos concretos; a segunda respondendo com a descoberta das leis do desenvolvimento histórico, com a interpretação da realidade em todos os seus níveis, com a constatação das novas tendências na evolução do mundo real, com a sistematização da prática em geral.

A resposta de Lênin aos revisionista de sua época aponta num sentido oposto. Além de que o revisionismo em voga atualmente apenas há muito pouco tempo fala em "inovação". Durante várias décadas ele se apresentou como o fiel depositário da herança leninista. Na verdade, o combate ao revisionismo e a luta de classes em geral exigem imperiosamente uma renovação, ou seja, uma constante atualização do marxismo diante das peculiaridades de cada período histórico. E as razões são simples. Historicamente, os surtos revisionistas não são produtos de uma subjerividade arbitrária. Ao contrário. Esses surtos verificam-se no âmago do movimento operário, e representam reflexos distorcidos, ao nível teórico e ideológico, de novas questões postas por modificações que se operam na realidade.

Em nossa época, novas questões da realidade mundial, como a expansão do imperialismo e o seu ingresso em novo ciclo de depressão, a decomposição do projeto socialista na URSS e dos antigos partidos da III Internacional a inegável e persistente influência da social-democracia no seio das massas operárias (sobretudo nos principais centros imperialistas) embora com grande desgaste e o fim do "pacto social-democrata", todas essas questões permanecem ainda precariamente sistematizadas sob uma ótica marxista.

Por outro lado, essa sistematização exige uma tal dimensão teórica, que ela só poderá realizar-se no contexto de um marxismo comprometido com a sua auto-renovação. Isto é, de um marxismo que, seguindo sua tradição mais autêntica, decida-se a enfrentar concretamente, sem dogmas e tabus, as questões candentes de nossa época. Por isso mesmo, uma tal resposta dinamizadora terá de passar, necessariamente, contundentemente, pela superação do dogmatismo, uma outra forma de revisionismo, transfigurada.

Não é difícil perceber a estreita conexão que existe entre essa prática e a chamada "teoria da regulação". Entretanto, indo além dessa percepção, o presente trabalho tem intenção de penetrar na real natureza dessa teoria e desvendou o seu caráter revisionista. Facilitando, assim, a compreensão de que a conduta política-econômica dos PCs convertidos e da social-democracia europeia ocidental é a expressão de uma linha estratégica contrária aos interesses históricos da classe trabalhadora e de seus aliados oprimidos e explorados, como de uma violação a teoria marxista, isto é, às base ontológicas dessa teoria.

O revisionismo encarna as pressões dos sentimentos burgueses no interior do marxismo diante da crise do capitalismo que assim assume a forma de social-reformismo, isto é, mantendo a fachada socialista, serve de esteio às pretensões da burguesia. Assim, é que, em suas primeiras manifestações, o revisionismo germinou durante uma fase crítica do capitalismo internacional e a partir de uma capitulação da "aristocracia operária" e de setores da pequena-burguesia à ideologia burguesa. Esse fenómeno, que parecia enterrado com a II Internacional, reproduz-se nos anos de 1970 na transfiguração dos principais partidos comunistas que rompem abertamente com a sua vinculação ao movimento comunista internacional, ao Leninismo e à defesa da implantação da ditadura do proletariado, dando origem à corrente Eurocomunista, dentro de um contexto de um movimento de meta-marxismo, que dentro dele dará origem em seu interior, posteriormente, a Escola da Regulação.

Sendo a teoria da regulação, como foi demonstrado numa variante do social-reformismo, a crítica a essa teoria assume necessariamente a condição de uma crítica ao social-reformista como um todo, e ao revisionismo contemporâneo, em particular.

Com efeito, um dos derivados do agravamento da crise do capitalismo e 4as alterações políticas que vêm ocorrendo no país e no mundo desde 1974 foi o crescimento da influência de uma perspectiva social-reformista, nas diversos matizes marxistas, mesmo em os mais revolucionários. Um crescimento tal que permite afirmar que a garantia de uma evolução da situação política atual num sentido favorável aos trabalhadores e da solução a grave e crónica crise por que perpassa o capitalismo passa necessariamente pelo aprofundamento da crítica ao social-reformismo.

Além disso, atualmente, certos segmentos do reformismo e social-reformismo, de expressão antiga[2], procuram ajustar-se às peculiaridades do momento e apresentam uma formulação cujo parentesco e semelhança com a análise e a proposta regulacionista salta aos olhos. Desde que a crise económica se precipitou, a partir da metade da década de 1970, observa-se que a plataforma reformista deixou de representar apenas uma receita específica de correntes representativas da pequena e média burguesia e da burocracia estatal e operária sindical-parlamentar, para se incorporar também ao pensamento político de alguns setores do grande capital.

Numa época marcada, de um lado, pelo ascenso do movimento operário[3] e, de outro, pela dificuldade de emprego, pela reação, da diminuição politico-institucional da sua capacidade de organização (mudança na legislação sindical ou desregulamentação do mercado de trabalho) ou até de métodos puramente repressivos para conter esse movimento (criminalização dos movimentos sociais), além da velha tática de cooptação da lideranças e organizações agora de maneira re-paginada, é compreensível essa propensão de parte da grande burguesia a ver no reformismo o ingrediente ideológico mais adequado à defesa do capitalismo e à preservação da hegemonia do capital monopolista sobre o conjunto da sociedade brasileira, tal como acontece na Europa Ocidental.

Esse fenômeno favorece a caracterização que este trabalho apresenta sobre a teoria da regulação enquanto "expressão ideológica de certas frações da burguesia", fato que fica mais evidente quanto se observa que vários ideólogos reformistas da grande burguesia brasileira apresentam um esquema particularmente semelhante às teses da Escola da Regulação.

Suas teseí são como que a readaptação do velho liberalismo às condições de hoje, mas, no contexto da discussão da teoria da regulação, apresenta aspectos interessantes. A defesa de uma política social focalizada e compensatória, a exemplo da implantação de programas de renda-mínima, e um discurso de cooperação entre as classes, o "aperfeiçoamento" das instituições da democracia burguesa e promoção de uma política exterior de cooperação e interdependência maior entre as nações.

Caracteriza-se assim a teoria da regulação, primeiro como uma estratégia de conciliação de classe; segundo, como uma estratégia de luta das potências imperialista da Europa contra excessos da superpotência Estados Unidos; terceiro, como uma estratégia de luta contra convulsões sociais resultantes de crise econômicas ou dos ataques a rede de proteção social que visa impedir tal situação; quarto, como uma resposta da necessidade de gerir o sistema econômico a fim de evitar o agravamento da crise econômica crônica por que passa às potências imperialista, iniciada nos anos de 1970, ou corrigir os seus fatores geradores, na hipótese de reconstituir as bases sócio-políticas e sócio-econômicas semelhantes da época anterior (as três gloriosas décadas após a Segunda Guerra); e quinto e último, como expressão ideológica da burocracia estatal e sindical e de certas frações das burguesias, dos países europeus ocidentais e dos dependentes que, experimentam um determinado nível de contradições (contudo não-antagônicas) com o capital de operação mundial e o capital financeiro, principais defensores das políticas neoliberais.

NOTAS:

[1] "o erro é um momento da verdade", "toda verdade transforma-se em erro quando transportada para fora dos limites onde ela é uma verdade", "o conhecimento humano é um processo infinito que evolui do inferior para o superior", "toda verdade é ao mesmo tempo absoluta e relativa: absoluta enquanto reflexo fiel da realidade; relativa porque passível de superação no tempo e no espaço", etc, são princípios básicos do materialismo dialético (RAMOS, 2003)
[2] Os partidos social-democratas europeus são um exemplo de mudança político-programática, abandonado recentemente a velha ideologia de cidadania de welfare state e o estatismo.
[3] O que se pode verificar com ondas recorrentes de greves e mobililizações contra demissões em massa ou perda de direitos sociais e trabalhistas, contrariando análise de alguns autores que vêem o movimento operário em descenso ou não mais como protagonista de lutas na atualidade.


Amanhã
Capítulo 9: O SOCIAL-REFORMISMO HISTÓRICO

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