Por que cidades como São Paulo e Rio cresceram sem um planejamento adequado ou que agora demandam planos de revitalização urbana? Essa aparente falta de planejamento não se deve, paradoxalmente, à ausência de projetos.
No século passado e no atual, arquitetos, urbanistas, engenheiros, economistas e pesquisadores de diversas áreas dedicaram tempo considerável para desenvolver soluções urbanas. Estes são os chamados projetos de "revitalizações".
Embora o poder público tenha investido na concepção desses projetos, muitos foram deixados de lado. Surpreendentemente, mesmo os projetos abandonados tiveram influência em obras subsequentes, deixando uma marca na cidade real. Projetos foram negligenciados ou apenas parcialmente implementados.
O termo "revitalização" é amplamente utilizado em intervenções urbanas, especialmente em áreas aparentemente empobrecidas ou abandonadas pela população residencial, comercial ou industrial.
Essas revitalizações, assim como no passado, sob o pretexto de melhorar a qualidade de vida em uma área por meio de megaequipamentos públicos altamente simbólicos, geralmente resultam em gentrificação, deslocando a população mais pobre e elitizando o território.
Isso beneficia diretamente a indústria da construção civil e o setor imobiliário, muitas vezes em contradição com as intenções declaradas pelas autoridades urbanas, já que muitas iniciativas do plano de revitalização não se concretizam integralmente.
Diante da complexidade das intervenções urbanas "pontuais", é crucial refletir sobre as consequências que ações públicas desse porte podem trazer à cidade e à população local. Isso implica analisar os pontos positivos e negativos, considerando se os objetivos propostos realmente resultarão em melhor qualidade de vida, desenvolvimento local, inclusão da população nos espaços criados e em programas socioculturais, além de contribuir para o resgate da imagem da cidade e da identidade de seus cidadãos.
A história das revitalizações, quando analisada sob uma perspectiva urbanística que vai além do convencional, revela que, sob o prisma da Economia Política, essas intervenções têm como objetivo incorporar uma área ao circuito direto de acumulação de capital e extração de mais-valias extraordinárias com o capital fundiário.
Isso, por sua vez, desencadeia o processo de gentrificação, removendo a população mais pobre e promovendo a elitização do território em prol da indústria da construção civil e do setor imobiliário.
As revitalizações, nesse contexto, formam o que pode ser chamado de "tecido de Penélope", um tecido urbano que se constrói e reconstrói sucessivamente, sem completar plenamente cada ciclo de mudança.
Considerando o tecido urbano como o alicerce da geração, circulação e acumulação de valores de troca na produção capitalista, a referência à lenda grega presente na Odisséia de Homero, conhecida como o "tecido de Penélope", torna-se uma alegoria apropriada para as transformações territoriais no capitalismo.
As revitalizações são vistas como mais um capítulo desse tecido, onde a ação do Estado ou dos agentes econômicos perpetua uma luta constante pela apropriação e necessidade do território.
A revitalização urbana, no âmbito do urbanismo e do planejamento urbano, refere-se à requalificação de áreas abandonadas ou semidestruídas em cidades anteriormente impróprias para ocupação residencial ou comercial.
Os primeiros casos datam do final do século XIX, notavelmente nas reformas de Paris durante o governo de Napoleão III. Essas intervenções, embora de caráter higienista e de controle social, visavam conter os impactos do crescimento populacional e manter a ordem nos espaços públicos.
Ao longo do século XX, o desenvolvimento das sociedades industrializadas trouxe desigualdades sociais para a organização espacial das cidades. A ênfase na logística de transporte, na criação de habitações populares e na qualidade de vida nas áreas privilegiadas resultou na degradação do bem-estar, abandono de áreas históricas e redução de espaços públicos e da paisagem natural.
Em resposta a essas questões, políticas públicas recentes voltadas para a revalorização do patrimônio histórico e ambiental, bem como medidas de recuperação do espaço urbanizado, passaram a incorporar preocupações socioambientais. Esse enfoque tem ganhado destaque nos planos diretores urbanos e nas ações de preservação da paisagem histórica e ambiental.
O conceito contemporâneo de revitalização urbana se baseia na integração de parceiros públicos e privados para garantir recursos às intervenções em áreas degradadas, visando à reocupação econômica e social desses espaços. Atualmente, destaca-se a necessidade de processos sustentáveis e a promoção da ocupação com respeito à diversidade e à coesão sociocultural.
Essa abordagem contrasta com a antiga tendência de expansão urbana, evidente em bairros mais distantes, como Alphaville e Barra da Tijuca. A dificuldade na construção de infraestrutura e o congestionamento de tráfego destacaram as desvantagens desse modelo, impulsionando iniciativas de revitalização urbana. Projetos classificados como bem-sucedidos, como Puerto Madero em Buenos Aires, Argentina, ou região portuária de Barcelona, na Espanha, tornaram-se emblemáticos dessa nova tendência global.
A revitalização urbana, sendo uma política pública complexa, envolve tanto agentes públicos quanto privados, fazendo uso de instrumentos variados, como a outorga onerosa do direito de construir e operações urbanas consorciadas.
Contudo, é importante considerar os efeitos colaterais, como trânsito, gentrificação e especulação imobiliária. Apesar disso, a densificação de regiões centrais proporciona, segundo defensores, um melhor aproveitamento de infraestruturas existentes, gerando benefícios econômicos e aumentando a competitividade da cidade.
O Projeto Praia Grande
O Parque seria construído a partir de um aterro hidráulico sobre a Baía de Guanabara, na orla litorânea dos bairros da zona central da cidade, sobre 1,2 milhões m2 de terreno “conquistado” do mar, com 500 m de largura em sua maior parte (até 600 m, em alguns trechos) e 6 km de extensão de Norte a Sul.
Previa-se nele a construção de um Teatro Grego, Concha Acústica, fontes sonoras e luminosas, playgrounds, restaurantes turísticos, aquários, praças de esporte, planetário, passarelas, auditórios ao ar livre, um bosque com 15.000 espécies, o “Museu Monumento do IV Centenário de Niterói”, uma estação hidroviária, um terminal rodoviário, um centro cultural e um hotel de convenções no Morro do Gragoatá.
O paralelismo óbvio era com o Parque do Flamengo, mas conhecido como Aterro do Flamengo, na vizinha Cidade do Rio de Janeiro (no então Estado da Guanabara), construída pouco tempo antes - início da década de 1960, tão logo que a cidade deixou de ser o Distrito Federal, com a inauguração de Brasília.
O Parque da Praia Grande conjugaria, como o seu homólogo, uma ligação viária de alta velocidade, parque florestal, praças e equipamentos culturais e esportivos, com um projeto paisagístico e de jardinagem, e justificava-se que seu futuro parque, simultaneamente estabeleceria, uma mais que necessária, ligação viária de média e alta velocidade, conectando o Centro de Niterói com os bairros da Zona Sul da cidade, cujo tráfego era saturado à época (e até hoje).
Ao mesmo tempo, resolveria a carência de áreas amplas de lazer, especialmente próximas aos bairros centrais e mais adensados da urbe.
Como também, visava dotar a então capital fluminense, de equipamentos e paisagens que chamassem a atenção de visitantes nacionais e internacionais, um senso de identidade e destaque. E inclusive, ainda fosse integrada a um projeto turístico de grande dimensão, que se estendia por mais municípios litorâneos do antigo Estado do Rio de Janeiro, partindo de Niterói e alcançasse aqueles da Região dos Lagos.
Niterói um pouco antes do seu VI Centenário
O Censo de 1970 registrou 323.471 habitantes em Niterói, dotando a então capital fluminense de ser uma das 20 maiores cidades do Brasil na época. Embora, populosa em termos brasileiro naquele momento, era 10 vezes menor que sua quase vizinha, a Cidade do Rio de Janeiro, então Estado da Guanabara. E menos do que outras cidades no antigo Estado do Rio de Janeiro, como Nova Iguaçu (antes da série de emancipações dos anos 1990), Duque de Caxias e São Gonçalo.
No entanto, a economia niteroiense era uma das mais importantes do país, tendo como auge a década de 1950, mas passava por um crepúsculo. Ainda assim, era além de capital estadual, era um importante polo nacional da indústria naval, de pescado e têxtil.
Sinais desse passado áureo podem ser vistos nas grandes construções de perfil fabril e em centenas de bairros com feição operária concentrados na zona norte de Niterói, e se estendendo para vários bairros da cidade vizinha de São Gonçalo.Niterói até o fim da década de 1960 estava entre as 10 maiores cidades do Brasil segundo o censo.
Contudo, no início dessa mesma década se inicia um processo de esvaziamento econômico.
O movimento portuário de Niterói, por exemplo, diminuiu em 50% no período de 1964-1967, em grande parte em decorrência da fase terminal da economia cafeeira do Norte Fluminense, e, por sua vez, setor têxtil, tradicional na economia fluminense, também foi perdendo a competitividade desde então para outros polos nacionais.
Também nesse contexto, em meados de 1972, Niterói, a então capital fluminense, ainda não tinha nenhuma preocupação direta com a perda dessa condição e a fusão do Estado do Rio com seu vizinho Estado da Guanabara. A cidade estava acostumada a essa condição sui generis.
Niterói gravitava por séculos à Cidade do Rio, tanto por esta ser uma metrópole econômica nacional, como a própria capital política do país, condição essa que apesar de ter perdido para Brasília, ainda naquele tempo, ainda era grande a força no quesito de influência na administração federal. Mesmo hoje apenas o Rio de Janeiro tem o dobro de servidores federais do que Brasília e ainda sedia inúmeros departamentos nacional da União.
A questão “fusão” era uma ameaça desde a transferência da capital federal, mas só se transformaria em rumor e debate político somente dois anos mais tarde, e depois de fato, em 1974-1975.
As elites políticas e econômicas fluminenses preocupavam-se sim, mais diretamente, naquele momento, por estar, tanto há menos de ano das comemorações de seu próprio 4º Centenário, quanto também às vésperas da finalização e inauguração da Ponte Rio-Niterói, aguardada por décadas, mas que por si mesma traria novos desafios.
Os governantes precisavam entregar uma grande obra para brindar os eleitores com marcos simbólicos a ambos marcos históricos, e ainda resolver os velhos e novos problemas urbanos grassavam a capital fluminense.
Também planejam uma forma de servir para constituir um núcleo próprio fluminense para que a vida urbana, econômica e cultural gravitasse, e tanto em nível local, como estadual, independente da Guanabara.
Por sua vez, Niterói, com traçado urbanístico do tempo do Brasil Império, com algumas doses do embelezamento da Belle Époque da República Velha e do art nouveau do pós Revolução de 1930 e do Estado Novo, passava pelas três décadas de aceleração da industrialização e urbanização brasileira, crescendo, atarracada e prensada, entre várzeas, lagoas, enseadas marítimas e muitos morros. E, por isso mesmo, com uma mancha urbana que acaba se dispersando para fora do próprio município capital estadual, esparramando-se principalmente para o vizinho São Gonçalo.
Havia ainda no plano, novas praças e monumentos, como também junto ao mar integrado ao Parque da Praia Grande, mirantes, marinas públicas e espaços para sede de clubes desportivos aquáticos e náuticos (alguns dos quais desalojados pela construção do aterro.
Essa “nova orla” substituiria assim os trechos de orla da Baía de Guanabara mais perto do Centro. Mudaria uma feição, que segundo os contemporâneos, era “sem fachada” ou que parecia um “quintal”.
Ao contrário do que engana a memória nostálgica de niteroiense mais velhos, a orla do Centro, no início da década de 1970, eram repleta de muradas e muretas antigas do final do século XIX e início do XX, calçadas estreitas, áreas assoreadas, praias fragmentadas e sujas, mar fétido, galerias despejando águas poluídas, palafitas e pontes de atracação confusas e pequenos aterros desconexos.
A rua Visconde do Rio Branco, antigamente conhecida como “Rua da Praia”, que margeia a costa do Centro na época (contínua a tal Praia Grande propriamente dita), era então apontada como a porta de entrada da cidade por localizar as estação de navegação e por ser vista pelos viajantes no mar, e ainda era uma das principais da cidade para comércio e serviço.
Encontrava-se engarrafada e com calçadas estreitas para transeuntes, sem espaço para alargamento e também era limitada pelo sujo e lotado Mercado do Peixe, pelas feias e confusas estações do transporte de navegação, inclusive pelo terminal das barcaças de travessia de carros e caminhões, que alimentava ainda mais o complicado trânsito. Portanto, era fácil argumentar pela necessidade de um novo “cartão de visita” e “porta de entrada” para a cidade.
O Projeto Praia Grande mudaria ainda o formato das raras enseadas existentes entre o Centro e Zona Sul, lindas, bucólicas e cheias de recantos,mas com péssimo acesso aos banhistas, e que junto de promontórios rochosos, eram então graves bloqueios viários entre o Centro e o bairro de Icaraí e restante da zona sul.
Atrapalhavam o “progresso”, juntamente no momento a Zona Sul deixava de ser mero balneário para um forte atrativo ao mercado imobiliário residencial. E em sequência, permitiriam alcançar novas áreas de expansão urbana e turística na orla oceânica da cidade.
Na visão dos poderosos da época e da opinião pública influenciada por eles, o conjunto do Projeto Praia Grande, era uma grande solução.
Falava-se que com o Parque da Praia Grande se constituiria uma “fachada bela” para quem chegasse à cidade, tanto pelo novo grande terminal hidroviário, como pelas novas vias de conexão à Ponte, além daquelas vindo dos municípios vizinhos da Grande Niterói e do interior.
Além disso, a cidade de Niterói, apesar de cidade relativamente grande em termos populacionais ao Brasil da época e de ser capital de estado, carecia de equipamentos públicos de lazer, esporte e cultura. Gozava de poucos teatros e museus e nenhum complexo cultural, apesar de alguns espaços culturais pequenos.
Niterói não tinha shoppings centers, última novidade no Brasil do “Milagre”, embora um lançamento imobiliário a alguns anos antes havia fracassado, sobrando um prédio pronto mas vazio. Restando uma batalha judicial entre centenas de proprietários lesados e sendo na época aproveitado como centro de convenções (meio improvisado).
E não existia um grande campus universitário em Niterói, apesar de sediar uma das maiores universidades públicas do Brasil (a UFF). E contava apenas com um pequeno complexo esportivo, o Caio Martins, com seu pequeno estádio de futebol.
Apesar de servida de muitas praças e jardins públicos, de origem da belle époque, e ter muitas praias e restingas e contar com muitos remanescentes florestais nos morros, não tinha bosques e parques públicos de grande porte.
Olhava-se para as demais capitais estaduais, com ênfase à vizinha “Guanabara”, e a cidade-sorriso, apesar de industrial e cheia de prédios comerciais altos, sentia-se provinciana e acanhada, ou tomava chacota dos vizinhos assim.
Inevitavelmente, um projeto com tal dimensão, envolvendo aterro hidráulico, parques, equipamentos públicos e vias de rodagem, seria inevitavelmente caro e complexa implantação.
As estimativas excedem à época um custo de 20 milhões de dólares estadunidenses , algo como 300 milhões de cruzeiros (valores da época).
E precisariam ser levados a cabo por uma entidade governamental própria, resultando na criação da empresa estatal de sociedade mista constituída para dar feito ao projeto, a Companhia Fluminense de Desenvolvimento Urbano (DESURJ).
A ideia não era algo original. Ainda nos anos 1940 foi concebido o Aterro da Praia Grande, que modificou toda orla da baía entre a Ponta d'Areia, no limite com o município de São Gonçalo, e o bairro do Gragoatá, com o objetivo de acrescentar espaços para a expansão da capital do estado. Esse aterro era uma solução consorciada público-privada e garantiria áreas edificáveis tanto ao poder público quanto à companhia concessionária.
O aterro só foi iniciado na década de 1960 e após 20 anos a empresa não havia realizado nem 19% da obra, embora o seu virtual loteamento tenha sido registrado em cartório, em seu nome. Porém, tudo ficou no papel e nas disputas. Porém, mudou na década de 1970.
Em 1971 a área é declarada de utilidade pública para fins de desapropriação e o governo Raimundo Padilha inicia o aterro, chegando em 1974 a 70% do projetado. A proposta era converter a área desapropriada seja em terra firme, seja submersa aterrada em parque com edifícios públicos e vias expressas, mas com pequenos trechos retornáveis a iniciativa privada para lançamentos imobiliários de torres residenciais e comerciais
No entanto, questões jurídicas não permitiram a desapropriação de- jure da área, que volta quase totalmente às mãos da iniciativa privada. Situação típica do Brasil. Faz-se um projeto público-privado e que custeia ou mesmo executa é o Poder Público, mas quem se beneficia são os “privados”.
A solução foi considerar a área non-edificandi, situação pacificada apenas em 1977 (história que será contada mais a frente), que acaba por ser desapropriada.
O Aterro
Mas o que justificava expandir a superfície territorial da cidade e fazê-lo sobre um aterro hidráulico sobre o mar?
Apesar de pelo mundo, a questão ecológica está começando seu ascenso, este não era o forte na primeira metade da década de 1970 no Brasil da Ditadura Militar e do Milagre Econômico, sendo também antecedentes de grandes aterros hidráulicos sobre espelhos d’águas de rios, lagoas e baías para projetos urbanos abundavam, inclusive no Rio e mesmo em Niterói.
A cidade em alguma medida já tinha crescido por meio de aterros, pelo menos um ¼ da zona central já era produto do aterro da Enseada de São Lourenço, na década de 1920, onde inclusive a cidade tinha surgido originalmente 4 séculos antes como aldeamento de indígenas cristianizados, com a doação de sesmaria para o cacique Arariboia e sua gente, líder que apoiou os portugueses na guerra contra os franceses e tamoios.
Com isso, surgiu o porto organizado de Niterói e a zona portuária junto ao Centro da cidade, aumentou-se o bairro de São Lourenço, que na época era uma área fabril, e constituiu-se o Ponto Cem Réis, no bairro de Santana (confundido até hoje como um bairro próprio).
O aterro do Porto de Niterói muito lembrava (e inspirava) o que também a República Velha fizera na antiga capital federal construindo a zona portuária anos antes. Obras do presidente Rodrigues Alves e do prefeito Pereira Passos.
Na década anterior (1910s), quase que contemporaneamente as reformas urbanas da capital federal, Niterói desmontou um morro no Centro junto à Rua Doutor Celestino e Rua da Conceição e drenar a sua várzea junto a ele, que funcionavam como lixão, e nesta área abrirá o conjunto mais conhecido como Praça da República: o centro cívico do Estado, repleto de majestosos prédios de arquitetura eclética e uma praça monumental para abrigar os três Poderes estaduais.
Também, existia o fato de que durante décadas a fio, ao menos os últimos 30 anos anteriores, desde o Estado Novo, se discutia na cidade longamente a construção de um novo grande aterro.
Anos mais tarde, com o Projeto Praia Grande, as autoridades da época alegavam que Niterói não teria disponível áreas liberadas para projetos de “impacto”, como tanto gostam governantes, principalmente nas zonas mais centrais da cidade ou juntos a elas.
Por sua vez, a cidade necessitaria implantar de um escoamento viário urgente para a Ponte Rio-Niterói, que seria inaugurada em breve (em 1974). Havia um desespero com o certo aumento repentino do tráfego.
Em pleno auge do rodoviarismo, a cidade padecia de carros de passeio e ônibus engarrafados, por vias estreitas de traçado projetados originalmente no tempo dos coches, carruagens e carroças, com tráfego já saturado, e cercado de quadras densamente edificadas, com poucas margens para duplicação e alargamento, ou pior, construção de novas vias, que escoasse esse fluxo.
As vias expressas do Parque, suas avenidas e terminais, por “fora” do miolo da urbe, comporiam um anel viário da cidade, porém, construir essas necessárias vias expressas, tal como os grandes parques urbanos e para complexos culturais tão desejados à cidade, implicaria demolição de áreas já ocupadas.
A alegação, portanto, é que com o aterro se “ganharia” terra, não se “consumiria” terra já ocupada,e se evitaria uma nefasta interferência nos bairros tranquilos e bucólicos da cidade, adjacentes ao Centro.
Como também (essa era uma promessa) as famigeradas desapropriações, remoções, demolições e mexidas traumáticas em traçados urbanos consolidados. Fora os transtornos pelos bairros residenciais e comerciais com obras de grandes obras (era outra promessa).
As áreas livres mais distantes seriam então preparadas para projetos residenciais tanto para expansão imobiliária urbana e/ou como para habitação social, com deslocamento de favelas. Enquanto as áreas centrais e mais consolidadas, receberiam como vizinho um gigantesco e lindo parque, fora melhoria de sua estrutura viária, sem sofrer interferência direta. Isso tudo sem utilizar alternativamente da derrubada de áreas em zonas industriais e portuárias decadentes, como naquela época o Urbanismo pelo mundo já estava acostumado a fazer.
Pretendia-se ao contrário, preservá-los, no discurso, até mesmo, dinamizar essas áreas. A partir de investimentos públicos complementares, e do diagnóstico que as novas vias resolveriam problemas, como a concorrência logística das atividades dessas zonas com as atividades realizadas pelas zonas residenciais e comerciais da cidade. Tendo o Parque da Praia Grande inclusive como “cartão de visita” para atrair novos investimentos privados nacionais e internacionais, para incrementar até mesmo a atividade industrial.
O plano e o Projeto
Após década de espera, em 2 de setembro de 1972 a população pode ver pela primeira, com a exposição em um estande instalado na Praça Arariboia (à época Praça Martim Afonso), o que seria o projeto de reurbanização da cidade, anunciado oficialmente como “Plano Diretor da Nova Niterói”, sob a forma de uma maquete, com o aterro sobre a orla marítima entre o Arsenal da Marinha e o Forte Gragoatá.
O Projeto contemplava, além da construção do aterro hidráulico em si e projeto urbanístico, com novo parque público com bosques, playgrounds e quadras desportivas e das vias expressas de rodagem, também uma nova hidroviária de grande porte, conectada por grandes passarelas de pedestres sobre as novas avenidas.
O projeto de novo terminal hidroviário, que se dizia ser inspirado em aeroportos, substituiria as “feias” e velhas, e meio improvisadas, estações e pontes de embarques das empresas de ligação por navegação com a Cidade do Rio, as então STBG, das barcas, e Transtur, para os aerobarcos. Nesse terminal hidroviário haveria muitas lojas, restaurantes e serviços de utilidade pública.
O terminal hidroviário ficaria na nova orla, mas exatamente entre as ruas Marquês de Caxias e Marechal Deodoro, teria 150m de extensão e 75m de largura para receber as barcas e os aerobarcos. A promessa era que após iniciada a sua obra, seria entregue em 15 meses à população.
Por sua vez, junto à hidroviária, haveria também um terminal rodoviário urbano (ou dois) para os ônibus municipais que atendiam a ligação com os bairros das Zonas Norte e Sul e as linhas metropolitanas (de São Gonçalo, Maricá e Itaboraí). Retiraria das ruas do Centro, as centenas de pontos finais e os pequenos terminais improvisados de ônibus, que circulavam pelas vias estreitas, e permitindo neste terminal, novas baldeações planejadas, possibilitando racionalização das linhas.
Ao longo das avenidas do aterro, haveria a instalação complementar de centros comerciais de alto padrão, serviços de utilidade pública, além dos equipamentos culturais, como teatro, anfiteatro, monumentos-museu do IV Centenários, e as quadras poliesportivas abertas e cobertas.
Falava-se ainda de edificações para receber uma futura linha do metrô, que uniria essa banda da Região Metropolitana com a Cidade do Rio e um para linha de aerotrem (expressão da época, provavelmente para um monotrilho ou metrô elevado) para ligar Niterói com Alcântara, em São Gonçalo.
Complementar e integrado ao projeto do Parque da Praia Grande, compondo um mais amplo projeto turístico, haveria ainda na região a construção de um grande hotel de padrão internacional com centro de convenções.
Seria no alto de uma colina e com vista panorâmica à Baía. Teria acesso também por mar, por atracadouro com condições para iates, lanchas e veleiros e por uma eventual ligação através aerobarcos vindos do aeroporto de Galeão (principal porta de viagem de turistas nacionais e internacionais) e do Santos Dumont (responsável pela ponte aérea e porta principal de chegada de viajantes de negócio).
Haveria também na área uma grande autoestrada, dita Rodovia Litorânea, que se estenderia da Zona Sul de Niterói na sequência das vias do Parque, conectando às cidades com potenciais balneários praiano, então subaproveitados do Leste Fluminense e Região dos Lagos, a Costa do Sol fluminense.
A nova rodovia seria inspirada na Rio-Santos, e/ou cumpriria papel equivalente, agora no outro eixo do estado,seriam 150 km de vias de rodagem duplicadas entre o bairro de Jurujuba, no final da Zona Sul de Niterói, até a cidade de Rio das Ostras bem rente ao litoral oceânico e servindo de via alternativa às duas importantes existentes na época (a BR-101/trecho Norte e a RJ-106/Rodovia Amaral Peixoto).
Haveria no Parque ainda um projeto de saneamento com rede de esgoto e galerias pluviais, que se estenderia pela maior parte urbe niteroiense, completando o saneamento total da cidade haveria a construção de emissário oceânico para atender a cidade.
Projetava-se também o desmonte parcial dos morros da Boa Viagem e do Gragoatá, que naquela época eram ambos apontados por autoridades aeroportuárias e aeronáuticas de então como interferências às rotas de aviação dos aeroportos do Rio. E ainda serviriam para fornecer material para o aterro hidráulico.
Ao final, a parte restante dos morros seriam reaproveitados para construção de mirantes panorâmicos em seu cume rebaixado e receber dois equipamentos: no do Gragoatá, o hotel internacional; e no da Boa Viagem, um centro de lazer.
O desmonte dos dois morros e aterro no sopé desses também permitiria que a via expressa alcançasse as praias das Flexas, no bairro do Ingá, e de Icaraí, no bairro de mesmo nome.
Com a duplicação das avenidas praianas já nesses bairros, carros e ônibus seguiriam aos bairros subsequentes, de São Francisco, Charitas e Jurujuba, margeando também por suas praias, em seguida rodando pela nova Rodovia Litorânea, se alcançaria os bairros de Niterói de sua região oceânica, como Piratininga e Itaipu.
Depois, prosseguindo na via, chegaria às cidades vizinhas e turísticas, sucessivamente, de Maricá, Saquarema, Araruama, Arraial do Cabo e Cabo Frio, e por fim, alcançando o ponto final em Rio das Ostras.
A expansão da superfície territorial do centro da cidade
Para além da suposta necessidade de grande parque florestal e de lazer e as novas vias expressas de alta rodagem urbana e intercidades, haveria uma série de razões econômicas mais fortes que justificaram sua construção.
Eram sinceras a vontade - bem na verdade, elitista e calcada no higienismo - de dar “condições salutares de vida” (palavra deles) para uma população que cresceu espremida entre morros e o mar, e que especificamente no Centro, alcançava números flutuantes, em 1972, de quase 1 milhão de pessoas circulando por suas ruas, tanto para acessar o comércio e serviços ali existente, como também para se deslocar indo e vindo à Cidade do Rio, inclusive a trabalho.
Não apenas de niteroienses, mas também dos municípios do entorno, como São Gonçalo, Itaboraí, etc., como o é até hoje.
Apesar da ausência na perspectiva direta na sua elaboração da fusão política entre o Estado da Guanabara e o antigo Estado do Rio, como também da transferência da capital estadual (arranjo inevitável com a fusão), a questão em si do peso e do poder econômico e político emanado daquela cidade sobre toda a região, apesar de separada fisicamente de Niterói.
E ainda, situar-se formalmente em outra unidade federativa, era central para o planejamento urbano para a então capital fluminense. Principalmente à véspera da inauguração da Ponte Rio-Niterói.
As elites e as autoridades de Niterói, como o governo do Estado do Rio, temiam que a cidade (e capital fluminense) se convertesse em uma espécie virtual de “subúrbio da Cidade do Rio” após a inauguração da Ponte, arrastando consigo todo o estado, até as regiões do seu interior mais distante. Não limitando mais essa influência os municípios da Baixada Fluminense, mesmo estando no Estado do Rio, mas que até para vários fins, integravam o que se chamava então de “Grande Rio”.
O medo tinha razões de ser: lançamentos imobiliários abundavam em Niterói já naquele tempo, voltados a moradores especialmente cariocas, que se transfeririam para residir em seus bairros, principalmente da Zona Sul, enquanto mantinham seus negócios e empregos na “Guanabara”. Ou mesmo seguindo para buscar lá na outra cidade, lazer e compras, se aproveitando da proximidade e transporte facilitado, antes apenas marítimo.
Em suma, se sempre houve o movimento pendular entre Rio e Niterói, e certo perfil “dormitório”, mais destacável ainda nas cidades vizinhas da Grande Niterói, como São Gonçalo, por exemplo, essa perspectiva de um acesso rodoviário melhor a partir do advento da Ponte, se agravaria.
As supostas vantagens das grandes mudanças urbanas
Além disso, os políticos, planejadores, burocratas, pesquisadores e empresários queriam ver aproveitados em termos de negócios privados o entorno da Baía de Guanabara, por seu grande potencial turístico internacional, imobiliário de alto padrão e lazer de alto rendimento, que eram mais desenvolvidas apenas na margem carioca da Baía.
O grande polo atrator turístico não podia se limitar à “cidade-estado” (isto é, a Cidade do Rio, então Estado da Guanabara), o objetivo, portanto, era estender para Niterói, e a partir dele até mais além, o litoral fluminense como um todo, especialmente a porção leste e norte, até então muito pequena, essa atratividade carioca não se limitava em termos turísticos, por razões de desporto, paisagem e lazer, mas também de uma vasta rede de estabelecimentos culturais públicos e privados.
Vista como deficiente, em termos relativos, em terras niteroienses do que na ex-capital do país. Servia ainda, como dito antes, por sua vez, como um “cartão de visita” (palavras da época) para atrair investimentos privados, inclusive industriais e internacionais.
Até porque a Cidade do Rio, apesar de um grande esvaziamento econômico que já acontecia desde a saída do Distrito Federal e aceleração da industrialização em São Paulo, Minas Gerais e estados do Sul, seguia sediando grandes empresas e subsidiárias de multinacionais, logo com seus escritórios centrais, e seus respectivos empregos, contratos de fornecedores e prestadores de serviço e sede fiscal.
Apesar de suas operações e plantas estarem frequentemente em terras fluminenses, até pela proximidade física. Em muitos casos, até o escritório da sede regional não ficava no Estado do Rio, mas sim na Guanabara.
O problema não era apenas de disputa ou concorrência, resultava em impostos recolhidos a favor da Guanabara, em uma fuga de divisas que penaliza os cofres do governo do estado do Rio, apesar de não ser uma ilação fiscal proposital das empresas.
Queria-se com o Projeto Praia Grande reforçar a distinção junto à visão e a tomada de decisão do empresariado de fora entre o que era a Cidade do Rio (a Guanabara) e o que era o Estado do Rio, ou ao menos, sua então capital: Niterói.
Por sua vez, era verdade que não havia uma rivalidade de grande monta, entre a Cidade do Rio e o Estado do Rio, ou daquela com Niterói. A rivalidade tradicional dos cariocas era maior com paulistanos e paulistas em geral, e a recíproca era verdadeira, mas sempre houve distensões e divergências, algumas vezes profundas, cuja Ditadura Militar procurava se alimentar.
Rio e Niterói: As duas cidades irmãs e concorrentes
Para contar a história do Projeto Praia Grande é preciso também de uma pequena digressão sobre a centralidade da relação Guanabara e Estado do Rio no Projeto.
O Estado do Rio de Janeiro e a Cidade do Rio de Janeiro eram distintas. Até hoje muitas pessoas fazem confusão. Até hoje temos a confusão entre “carioca” e “fluminense”. Hoje a Cidade do Rio de Janeiro, mas conhecida de “Rio” é capital do Estado homônimo, porém antes de 1975 não era assim. Niterói era a capital do Estado do Rio de Janeiro desde 1832. O Estado da Guanabara foi criado apenas para elevar a Cidade do Rio de Janeiro à condição de unidade federativa da República, após a saída do Distrito Federal para Brasília com sua inauguração.
Mas em termos gerais até que eram menos distintas do que seus congêneres pelo mundo. Por exemplo, a Cidade de Buenos Aires-Capital Federal da República da Argentina e a Província de Buenos Aires, cuja capital fica na cidade de La Plata.
Nos EUA, há um Estado de Washington e a cidade de Washington/Distrito de Colúmbia, capital federal (bem verdade, em lados opostos do país continental). No México, um exemplo melhor, há tanto um Estado de México, como a Cidade do México/Distrito Federal, distintos um do outro.
Porém, a Cidade do Rio e o Estado do Rio, desconectados um do outro, nem sempre foi assim. Durante séculos e séculos, a Cidade do Rio foi a capital da Capitania e depois da Província do Rio de Janeiro.
Separou-se apenas como parte dos grandes acordos da burguesia agrária e escravagista do período regencial no século XIX. Com isso, a Cidade do Rio virava Município Neutro, sede da corte, e se escolheu Niterói como capital fluminense.
Essa separação tem um “quê” de tentativa das demais províncias de diminuir o poder da elite fluminense, a mais poderosa da época. E, por sua vez, tinha como contrapartida evitar a interferência do governo central no restante da província.
Niterói tornou-se inclusive na época uma escolha óbvia, não por rivalizar ou por ser distante geograficamente, mas justamente por ser quase uma extensão física, e ainda centralizar o tráfego intermediário de mercadorias entre uma grande parcela do interior fluminense e o porto do Rio.
Já na República, quando a capital estadual acabou temporariamente em Petrópolis, nos anos tumultuando do início do novo regime, logo a elite resolveu novamente trazer para Niterói.
Por sua vez, seu poder político de Niterói reside, portanto, na proximidade da Cidade do Rio e de sua posição geográfica privilegiada na Baía de Guanabara. Explicando também não ter se tornado durante décadas a cidade mais rica porque não concentrava uma atividade agrícola forte, nem era a mais populosa do Estado.
Inclusive quando pela urbanização e industrialização levou ao crescimento vertiginoso da sua população, os governantes resolveram dividir o município criando seu vizinho, São Gonçalo, que ficou com a maioria das sua terras aptas à expansão habitacional (o que resultou hoje que seja o município mais populoso do RJ depois da Cidade do Rio).
Vale lembrar que, mesmo atualmente em muitos estados brasileiros sua capital não necessariamente é o seu município mais populoso. Temos os exemplos de Espírito Santo e Vitória, e de Santa Catarina e Florianópolis.
Com a transferência da capital federal para Brasília, o Estado do Rio resistiu à proposta de fusão, porém com menos ênfase do que os próprios cariocas.
A transferência permitiu pela primeira vez que a cidade do Rio seria autogovernada, deixando de ter o chefe de seu Executivo local nomeado pelo Presidente da República, como era a regra à época e o foi para Brasília até a Constituição de 1988.
O Projeto da Praia Grande nasce nesse contexto: de que a Cidade do Rio e Niterói e o Estado do Rio seguiriam separados e que se precisaria e podia elevar Niterói à condição de metrópole.
Apesar da inauguração de Brasília, os cariocas apostavam que o novo Estado da Guanabara seguiria tendo algumas prerrogativas federais.
A sede da maioria dos Ministérios, das autarquias federais e empresas estatais e até de tribunais superiores continuava lá. Por exemplo, as embaixadas e escritórios diplomáticos também, apenas transferidas enfim com a ida do Ministério das Relações Exterior e do corpo do Itamarati para Brasília a partir de 1972.
No edital do concurso do projeto do Plano Piloto de Brasília não se falava na transferência total da administração pública federal para nova cidade, muito pelo contrário. Vale lembrar que, até hoje a Cidade do Rio possui um efetivo de servidores federais que é mais que o dobro que todo o DF, segue sediando grande volume de autarquias e estatais.
E também, por um lado, no início dos anos 1960, os cariocas viam o Estado do Rio como uma “província”, enquanto a Cidade do Rio era “cosmopolita” (a menos se achava assim).
Por outro lado, os cidadãos do ex-Estado Rio (ou melhor, sua elite política, econômica e intelectual) também não queriam a fusão, pois viam o Rio perdendo dinamismo econômico e como uma terra de “excentricidades” e “modismos” (nas palavras da época).
Seria muito mais focada, segundo os fluminenses de então (e mesmo de hoje), nos temas nacionais, ignorando a importância do regionalismo, como viam que faziam os paulistas, mineiros, gaúchos, etc.
A lógica de separação entre cariocas e fluminenses mudaria à medida que a década de 1970 avançava. Ao contrário do senso comum atual, a elite carioca paulatinamente começou a se interessar pela fusão.
Não à toa que o projeto de lei da fusão adveio de um “deputado federal carioca” e houve estudos encomendados pelas entidades industriais da Guanabara.
Por sua vez, a Fusão era vista com uma conveniência dupla por parte da Ditadura e de seus acólitos.
Mas, um pouco antes disso, ao longo da primeira metade da década de 1970, época da elaboração e do começo das obras do Projeto Praia Grande, a questão política da rivalidade tinha ainda outros contornos.
No ex-Estado do Rio, o partido adesista aos governos militares, a ARENA, governava, apesar de dificuldades em várias regiões do estado e, principalmente, nos municípios muito urbanizados. Enquanto o MDB, o partido formalmente oposicionista (mas, frequentemente não na prática) tinha alguns de seus grandes quadros nacionais (como Amaral Peixoto) ou mesmo estava à frente de prefeituras e com maioria de cadeiras nas Câmaras Municipais.
Boa parte do MDB adveio do antigo PSD, que era o principal partido do país e muito forte no interior do estado. E outra importante parcela do MDB provinha do PTB, que era forte no Grande Rio fluminense (os municípios da Baixada Fluminense) e na Grande Niterói.
Niterói, votava-se em massa no MDB, apenas não se elegia a Prefeitura Municipal, pois durante a Ditadura, os prefeitos de capitais e vários tipos de municípios eram nomeados pelo governador (capitais e certos tipos de cidades) e o restante eleitos indiretamente pelas câmaras municipais.
Já no Estado da Guanabara, o MDB era o governo, mesmo que apenas moderadamente oposicionista à Ditadura.
A propósito, a Ditadura naquele momento viu com bons olhos um megaprojeto no coração da então capital fluminense (Niterói) que garantisse a possibilidade dela vir a tornar-se um eventual polo de atração econômica que pudesse até rivalizar com a urbe carioca. Ou pelo menos, equilibrar a balança urbana de interação.
Além disso, apoiar o Projeto era apoiar uma grande iniciativa de um fiel governador da ARENA, e que serviria de vitrine à disputa com o MDB carioca, e se fazendo uma grande obra em um reduto do MDB fluminense (Niterói) a fim de que se pudesse reverter votos nas próximas eleições.
Como o Projeto Praia Grande também continha, apesar de criar uma imagem própria para capital fluminense, certa sinergia e vasta complementaridade com as cadeias produtivas do Estado da Guanabara, não haveria portanto, perdas econômicas nessa empreitada, logo a elite carioca aliada do regime também sairia ganhando enormemente.
Assim, o governo federal deu todas garantias financeiras aos empréstimos para a obras junto aos bancos privados nacionais e internacionais, intermediou com potenciais investidores privados de outros estados, de multinacionais e de delegações estrangeiras. E ainda prometeu futuros investimentos orçamentários da União e das estatais para iniciativas que complementariam o Projeto Praia Grande.
Isso tudo mudaria em 1974, com advento do Choque do Petróleo e o fim do Milagre, e chegada de Geisel à presidência, mas o projeto foi elaborado dois anos antes disso (1972).
A Ponte Rio-Niterói
O Projeto Praia Grande atendia também uma “corrida contra o tempo” em Niterói. A história do projeto Ponte Rio-Niterói precisaria de muitas linhas de história, mas é preciso dizer que, apesar do desejo secular de ligação direta entre as duas importantes cidades, essa conexão traria na sequência graves problemas de ordem prática, inclusive viária, à vida urbana de ambas urbes.
Ao longo da primeira metade da década de 1970 e com a inauguração da Ponte a cada dia mais próxima também servia como mecanismo de pressão que justificaria o Projeto Praia Grande. A burocracia do Governo Federal (logo a serviço da cúpula do regime) tinha pressa com alguma solução urbana para Niterói.
Os estudos do Departamento Nacional de Estrada de Rodagem (DNER), gigantesca autarquia federal responsável pela rede de rodovias nacionais, apontavam que novo tráfego implicavam na necessidade de intervenções drásticas na Cidade do Rio em pelo menos 6 acessos rodoviários para servir Ponte, enquanto em Niterói, muito menor em habitantes e em extensão territorial, em no mínimo 18 acessos para dar vazão ao impacto no trânsito.
Se estrangularia bairros, ruas e avenidas, mas também as rodovias da cidade que serviam de conexão ao porto e às estradas de ferro, afetando a mobilidade urbana e a logística, prejudicando empresas e o próprio abastecimento.
Contudo, como já dito antes, Niterói não tinha espaço, em razão da densidade da ocupação das suas quadras, e ser espremida entre o mar e os morros, para fáceis intervenções viárias, abertura de novas avenidas e construção de viadutos, além dos de acesso diretamente a Ponte, que já afetavam a circulação da cidade.
Com o tempo correndo facilitava a adoção de medidas que antes poderiam ser consideradas exóticas ou megalômanas, ao invés de duplicação de vias e abertura de novas avenidas, especialmente de alto rolamento, como era o modelo urbanístico da época.
É preciso dizer que, passados quase 50 anos da inauguração da Ponte, das 18 intervenções viárias estimadas necessárias, a maioria das 12 delas estão incompletas ou não foram feitas até hoje.
Além das vias internas da urbe de Niterói, uma das duas pontas da Ponte, afetaria as rodovias do Estado do Rio que partiam desta cidade - algumas das quais estaduais, diferente da Ponte que era não apenas uma construção federal, mas viria seguir sendo da União após sua inauguração.
As atuais rodovias estaduais RJ-104 e 106 com uma sobrecarga de carros, ônibus e caminhões, interligando a Cidade do Rio com a porção Norte do interior do Estado e as cidades da margem leste da Região Metropolitana, passam por dentro de Niterói. A atual RJ-100 seria uma alternativa, servindo como conexão para a Rodovia BR-101. Porém, os técnicos do Projeto Praia Grande apontaram como alternativa a construção de uma grande via alternativa, a tal “Rodovia Litorânea”.
O fluxo da Ponte Rio-Niterói não seguiria pela Zona Norte de Niterói, especialmente pela Alameda São Boaventura, iria acessar o interior pela Zona Sul da cidade, contornando o litoral pelas vias expressas do Parque Praia Grande e avenidas das praias da Zona Sul e depois seguiria pela Rodovia Litorânea, que margeando as praias da Costa do Sol até Rio das Ostras.
Complementando o projeto turístico que a rodovia fomentaria, integradamente havia um projeto de lançamentos imobiliários às suas margens, financiando as obras e operações do Projeto, e abrindo o acesso público a centenas de praias então pouco frequentadas por visitantes.
Para conhecer sua localização, basta ver os resquícios do que viria a ser essa rodovia na hoje precária rodovia RJ-102 e suas centenas de loteamentos mal urbanizados que vão de Maricá até Arraial do Cabo, que de fato, serviu para acelerar a urbanização desses municípios como nunca antes, especialmente não apenas para o veraneio, mas para atividades residenciais.
Contudo, tal como no caso do Aterro, ao não ser finalizado, não atendeu os seus objetivos originários, inclusive rodoviários,sendo o turismo muito aquém do que poderia ser, e contribuindo para a poluição de rios, canais e das lagoas (não por menos chamada de Região dos Lagos).
Após os anúncios dos projetos que compunham o Projeto Praia Grandes e as operações de empréstimos realizadas para financiadas, deu-se um frenesi para construção do aterro hidráulico e desbaste dos morros.
A Obra de Raymundo Padilha
Anunciada na metade do ano de 1922, em meio ao ufanismo do Seisquecentenário da Independência, a promessa era que as obras do Projeto Praia Grande durariam apenas 18 meses, especialmente a parte do aterro hidráulico, item mais importante em termos de engenharia do projeto, e que mais poderia incomodar a população dos bairros vizinhos.
Já se sabia que a obra não seria entregue no ano do 4º centenário de Niterói (1973), mas no ano seguinte. Porém antes do fim do mandato do governador estadual Raimundo Padilha, 1974, cuja efemérides era os 10 anos do golpe e da implantação da Ditadura Militar, ou melhor, da assim chamada pelos seus defensores da “Revolução”, e de eleição para governador e deputados estaduais.
Na imprensa se falava abertamente que o Projeto atendia o espírito nobre da “Revolução” de “progresso ordeiro”, “desenvolvimento amplo” e de “conquistas dos homens sobre a natureza” (blá-blá-blá típico da época).
Por sua vez, o cronograma era propositalmente feito a coincidir com a grande inauguração da Ponte Rio-Niterói, considerada também obras complementares entre si. A Ponte era a maior obra de engenharia do país até então, e símbolo do “Brasil Grande” que a Ditadura queria exibir do país.
O aterro hidráulico em si tinha sido projetado em três partes, em sua extensão.
Uma primeira parte entre a Ponta da Armação até a Rua Marechal Deodoro, uma segunda entre essa rua e o Morro São João Batista, que era ocupada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e que lhe dada inteiramente para construir um de seus campi. E a terceira, até o Gragoatá, mas de fato alcançando até a praia da Boa Viagem.
O trecho 2 acabou tendo adiado seu início porque cobriria a beira-mar da frente da Praça Arariboia, fechando as pontes de atracação das estações de navegação de passageiros com as linhas para o Rio. A linha de barcaças de veículos, que em frente a Rua Marechal Deodoro, foi transferida para o Porto de Niterói (sendo encerrado posteriormente antes do final dessa década).
O plano original era que as estações seriam provisoriamente alocadas no Gragoatá, mas houve resistência das empresas hidroviárias e das de linhas de ônibus que faziam baldeação com as barcas e aerobarcos. As empresas queriam se mudar apenas para um terminal definitivo. E houve um jogo de empurra que acabou na justiça.
Assim, deixou-se no Trecho 2, uma enseada para manobra de atracação (que existe até hoje), enquanto a obra do terminal hidroviário era supostamente acelerado.
O trecho 1 avançou sobre uma parte do que seria o trecho 2, à medida que a parte que ficaria em frente da ponte de atracação das balsas e barcaças de veículos acabou liberada. Contudo, após várias sentenças judiciais desfavoráveis e os atrasos em geral da obra que acabaram ocorrendo a partir de 1974, restou do terminal hidroviário apenas o canal dragado, os alicerces do prédio e as pontes de atracação, que podem ser vistas hoje ao se visitar o Caminho Niemeyer.
Duas outras transferências aconteceram diferente do prometido: dos clubes desportivos com sede na antiga orla e o tradicional mercado de peixe de palafitas e sobre pequeno aterro.
Com os atrasos das obras e sem um plano de transferência dos clubes à beira-mar, esses acabaram fechados ou ficaram sem sua transferência para nova orla como previa o Projeto.
Já o mercado de peixe, seus comerciantes chegaram a ser transferidos para boxes em um galpão da CEASA vizinho do Mercado Municipal de Niterói.
Uma boa parcela deles comprou um terreno vazio na Ponta D’Areia próximo da Avenida Rio Branco e construíram um novo mercado que viria a ser o atual Mercado São Pedro, que acabou abrigando depois mesmo aqueles que tinham ido para o galpão da CEASA.
Outra diferença que a população niteroiense notou foi que, ao contrário do anunciado, o transporte de pedras do desbaste dos morros do Gragoatá e Boa Viagem para o aterramento não era por balsas, mas por caminhões, trafegando por dentro das vias da cidade.
As casas e ruas ficavam sujas de poeira, e com o peso do ir e vir dos caminhões, o piso das ruas cedia e o asfalto começava a se esburacar. E os encanamentos de água, esgoto e fluviais/pluviais começaram a se romper.
Para piorar, as dragas do aterramento despejam pedras no mar sem cuidado com o meio ambiente, prejudicando mesmo com a poluição da época, a então rica pesca e cata de marisco.
A poluição em si se intensificava. Não houve uma preocupação com as saídas das galerias fluviais e pluviais e de esgoto. Simplesmente acabaram bloqueadas com o aterro hidráulico, sem que se fizesse conexões com novas saídas na nova linha de beira mar.
Apesar disso, a opinião pública era muito favorável ao andamento do Projeto Praia Grande até aquele momento. Em grande parte por obra e graça da mídia, tanto local quanto nacional.
As matérias de jornal em 1972 (lançamento do Projeto), especialmente 1973 e parte de 1974, tinham um tom muito favoráveis, até mesmo ufanistas, sem nenhuma análise crítica e exigência de detalhamento, nem mesmo transparência.
As autoridades aproveitavam-se ao mesmo tempo, do auge da repressão da Ditadura Militar (sob vigência do AI-5), do clima do Milagre Econômico e do “Brasil Grande” e do entusiasmo pela celebração do IV Centenário de Niterói. Também havia o fato de que durante décadas a fio, ao menos os últimos 30 anos anteriores, se discutia na cidade longamente a construção do aterro.
Além da rivalidade e ressentimentos com o Estado da Guanabara, e a fascinação pela ideia de criar um poderoso polo identitário e modernizante para vida social urbana e atrator de novos negócios.
Os transtornos se avolumam e a opinião pública muda de tom
Contudo, ao longo de 1974, o discurso unânime a favor do Projeto, virou. Além dos contratempos e impactos no cotidiano, no primeiro semestre deste ano, as obras já tinham se estendido a mais do que os meros 18 meses que tinham sido prometidos para a população.
A população começa a ver que a obra seguia em um ritmo que não permitiria a conclusão nas datas anunciadas. E a promessa de ausência de transtornos com a obra ou de que seriam pequenos não tinham sido cumpridos, e pior, prosseguiram, sem data factível para terminar.
Também na segunda metade de 1974 surge na classe política e nas elites empresariais a discussão avassaladora sobre a Fusão, transformada rapidamente em decisão pela cúpula do governo federal, desviando a atenção pública e gerando incertezas.
Com o advento da Fusão haveria a troca do centro de poder do Estado se deslocaria naturalmente para a cidade do Rio, e portanto uma mudança das prioridades políticas.
Como consequência um desvio no foco da energia social dedicada até então na implantação do Projeto Praia Grande, como também havia uma incerteza sobre o futuro contido nos próprios planos do Projeto.
Paralelamente a isso, houve ainda uma disparada da inflação no país e dos custos dos combustíveis e dos derivados do petróleo, advindos do Choque do Petróleo de 1973.
Afetando os custos da obra e esvaziando os cofres mais e rápido e montante maior do que a programação inicial. Porém, em plena Ditadura esse tema não podia ser debatido publicamente.
Hoje se sabe que a própria equipe econômica do governo federal estava maquiando as estatísticas oficiais dos preços, mas a realidade se impunha no dia a dia das despesas da obra, a despeito se houve ou não estimativas otimistas quanto aos custos programados inicialmente.
Por esses motivos, ainda corria dois problemas não levados em consideração na fase de planejamento do Projeto Praia Grande - especialmente em um planejamento feito de maneira não democrática e sem debate com todos os afetados, mesmo que se pensem serem beneficiários.
O primeiro, os comerciantes do Centro de Niterói reclamavam da mudança do local das estações de navegação e das paradas de ônibus para mais distante do miolo do Centro.
Mais do que beneficiados, com a melhora dos seus negócios com o ordenamento das ruas da cidade e a constituição de um polo promotor de novos investimentos privados, preocupavam-se com as perdas no ir-e-vir futuro de transeuntes e potenciais consumidores perto de seus estabelecimentos.
As entidades empresariais locais niteroienses logo começaram a exigir, ao menos reclamar, por via da grande mídia, por mudanças drásticas do plano, mesmo com as obras já em andamento.
E havia a questão do terminal hidroviário e a confusão sobre o local de sua transferência, especialmente a contestação feita pela empresa Serviço de Transporte da Baía de Guanabara (STBG), estatal federal na época.
A série de divergências, pitorescamente se dando entre entidades estatais, evoluíram para uma disputa judicial, e que avançou na imprensa, e acabara de envolver os comerciantes locais e as empresas de ônibus.
Houve também problemas na desapropriação do shopping center. O espólio contestou valores como também o responsável por representar os cotistas proprietários, com um contencioso judicial que se acumulou ao que já havia antes. Sem uma outra abordagem para se relacionar com o problema.
Por fim, o imperativo ecológico também começou a se tornar evidente. A obra em si, com seu ir e vir de caminhões pesados pelas ruas da cidade, trouxe problemas nas redes de esgoto e drenagem, acrescido pelo bloqueio das saídas das galerias de águas, sem preocupação de instalação de interligação com as novas redes, mesmo que provisórias.
O resultado era ruas sujas e fedidas, especialmente nas áreas do aterro e adjacentes,( fora o problema sobre as águas da própria Baía de Guanabara). Não só pelo lançamento de águas sujas, mas com o aterro em si e seu volume de pedras e terras sendo despejado no leito marinho e reduzindo o espelho d’água.
Prejuízo especialmente a pescadores e maricultores, um segmento historicamente ignorado e precarizado, mas ainda grande e tradicional da cidade, especialmente naquela época. Como também os prejuízos aos banhistas e esportistas praieiros e náuticos, entre os quais oriundos da classe média e alta.
Os crescentes questionamentos, muitos dos quais sem respostas efetivas, nem anúncios de ajustes no cronograma e planos, punham na berlinda às entidades encarregadas do projeto, especialmente a DESURJ.
Um dos mais graves questionamentos era quanto à execução orçamentária e financeira do projeto, diante a rumores de superfaturamento, adoção de técnicas inadequadas ou dispendiosas e mesmo de saldo na tesouraria estadual para arcar com restos a pagar e com despesas futuras.
Tornou-se claro que a DESURJ, apesar de ter gasto uma “boa bolada” com arquitetos e engenheiros na fase de elaboração (palavra da imprensa da época), mas talvez houve pouco planejamento, e com grandiosos contratos de empreiteiras privadas em curso, não tinha uma equipe técnica de servidores efetivos estáveis.
Limitava-se a um pequeno escritório administrativo apesar de manipular um orçamento gigantesco. E faltava a mais simples transparência na prestação de contas, como sessões legalmente obrigatórias de assembleias de acionistas e reuniões do conselho administrativo.
O anúncio da Fusão, a desaceleração das obras e a volubilidade da mídia
No segundo semestre de 1974 a grande imprensa muda de vez sua postura, retroalimentando o clima crítico com o megaempreendimento, pondo pressões que contribuem para a crise nas obras.
Essa virada da postura era tanto pelo fim do governo Médici e início do Geisel, e o advento da política de transição “lenta, gradual e tranquila” por parte do regime, e a redução da intensidade da censura,Mas também pelo evidente cansaço com os erros crassos ou mesmo pela perda de apoio ao projeto devido aos estragos da obra (poeira, etc) pelos bairros afetados, a cada dia pior.
Ainda pela troca do eixo político a partir do processo de Fusão, nesse meio tempo, em julho de 1974, atropelando o debate do projeto da Fusão e a tramitação natural no Congresso Nacional (controlado de uma ou outra forma pela Ditadura), o presidente Geisel a decretou por Ato Complementar nº 20, usando seus poderes anormais dados pelo regime.
Para evitar maior desagrado junto à classe política, nomeou um governador supostamente neutro, o vice-almirante Faria Lima, que tomaria posse apenas meses depois quando encerrasse o mandato dos então governadores da Guanabara, Chagas Freitas (do MDB), e do ex-Estado do Rio, em 15 de março de 1975, o que iniciaria de fato a existência de fato do novo Estado do Rio de Janeiro.
A partir do anúncio, entre esses meses, só se falava na Fusão, na transição para esse novo ente político governamental e na transferência da capital para a Cidade do Rio.
E assim também, com a Fusão, sepultava-se a possibilidade de Raimundo Padilha fazer seu sucessor, e pelo andamento atrasado, sem que o Projeto pudesse ser inaugurado em seu mandato - mesmo com sinais de algumas partes tendo sido aceleradas, com ainda mais dispêndio de recursos. As obras ganham certo desinteresse do então governador.
Durante o tempo de discussão sobre a Fusão e com a sua decisão, enfim, diminuiu o ímpeto de apoio do governo federal e o aporte de suas emendas para ações complementares essenciais, que o plano de obras não atenderia inicialmente, mas que tinham sido anunciado originalmente.
Nessa maré contrária, ao final de 1974 e em início de 1975, abunda na imprensa noticiários mais críticos ao Projeto Praia Grande, que com certeza faltaram anos antes. E que contribuia para desacelerar e descontinuar as obras.
Havia nuances entre os veículos de mídia na cobertura e editorias, dependendo a relação do seu dono e sua relação com o regime e com os grupos políticos e econômicos, mas o tom em geral havia mudado, ao menos, passou a reportar os questionamentos e exibir as contestações, muitas óbvias desde o início e que com passar dos meses tornaram-se ainda mais graves.
A imprensa passou a referir-se ao Projeto Praia Grande com frases duras como, “tão controvertido quanto dispendioso”, esquecendo as longas elegias, textos bajuladores e pautados pelas unanimidades. Muitos dos quais que se lia meses antes no mesmo veículo que passará a criticar o Projeto.
Ou empregando palavras como, “uma espécie de enigma”, estampando uma memória seletiva, de não ter exigido mais transparência sobre o Projeto desde viabilidades técnicas e econômicas, estudos de impacto de vizinhança e ambiental e econômico, os planos financeiros propriamente ditos, e principalmente uma controladoria dos gastos desde o início.
A Fusão no meio do caminho…
Em 1975, o futuro governador Faria Lima, antes mesmo de tomar posse, durante os longos meses de transição, disse que não daria prosseguimento a “obras suntuosas”. Por coincidência ou por consequência as obras, que vinham em um processo de desaceleração, simplesmente param antes mesmo da troca do comando estadual.
Um pouco antes, as obras complementares ao Projeto Praia Grande e que lhe formavam um complexo, a do interceptor oceânico da SANERJ e a da Rodovia Litorânea, paralisaram.
O primeiro megaprojeto, continha duas partes, o interceptor oceânico em si e a rede de saneamento, que ao paralisar estavam pela metade, especialmente a parte do emissário submarino.
O outro megaprojeto, as obras que resultaram na atual RJ-102, paralisam, em seus vários trechos desconectados em si no trajeto, e começaram vendas ilegais de loteamentos planejados na faixa de domínio e adjacências ao longo da rodovia, em áreas sem o mínimo urbanismo necessário e sem remunerar o Estado com a venda de lotes e taxa de licenciamento, como era o previsto.
Em dados expressos em matéria de jornais de 1975, o Projeto Praia Grande havia levantado junto a um consórcio bancário ítalo-suíco-brasileiro US$ 30 milhões, em 1972 (valor da época), para o projeto do interceptor oceânico de Niterói, mais US$ 15 milhões.
Do Projeto Praia Grande, havia uma previsão orçamentária de Cr$ 300 milhões iniciais. Antes da paralisação, o governo alegava ter gastado por volta de mais de Cr$ 250 milhões.
Havia um bate-boca durante a transição e que avançou durante o primeiro ano pós-Fusão, entre o governador em fim de mandato, e logo depois ex, Raimundo Padilha, e a equipe do novo governador Faria Lima, sobre haver ou na tesouraria do Estado e em bancos os recursos não gastos reservados exclusivamente do Projeto para pagamento de restos a pagar e das etapas à conclusão.
No começo do novo estado, não apenas os três projetos estavam com obras paradas, aumentando o conflito entre o velho e novo governo, havia ainda a falta de prestação de contas da DESURJ e o aparecimento a cada dia a mais por parte de empresas prestadoras de serviços na obra de notas fiscais não pagas, fora os rumores crescentes de superfaturamento e de autorização para serviços desnecessários.
Na imprensa o novo governo, pitorescamente nomeado pela Ditadura, explícita se queixava que não recebia nenhuma prestação de contas da DESURJ, e as petições enviadas pelo governo à direção da empresa não eram respondidas. Mas recebia cobranças das empreiteiras com pagamentos atrasados.
Bem verdade que, os recursos privativos para a implantação do Projeto não ficavam com a DESURJ, que apenas recebia desde sua criação quantia ano a ano por parte do governo do estado, e que ficou sem recebê-lo desde a posse do novo governador.
Nada se falava dos recursos restantes dos empréstimos, ou se haviam sido esgotados, ou se encontravam em uso para outras finalidades, ou se estariam apenas bloqueados em contas correntes.
Para complicar, a Prefeitura de Niterói e o Governo do Estado tinham dificuldades em empregar os recursos regulares para prosseguir com as obras se assim desejassem, no caso da prefeitura era ainda maior.
O Projeto Praia Grande foi planejado financeiramente pelo governo estadual e com recursos obtidos por ele. Por sua vez, o primeiro ano da Fusão foi um duplo desastre para Niterói. A paralisação da implantação do Projeto afetava objetiva e subjetivamente a cidade.
As obras inconclusas, inacabadas, interferem e atrapalham no cotidiano urbano e nos negócios. A partir daí centenas de ruas estavam prejudicadas fisicamente, gerando quebras no comércio local e gastos extras particulares de moradores. E haviam trabalhadores e empresas não pagas ou com programação financeira incerta.
Além disso, Niterói sofreu, de uma hora para outra, um esvaziamento econômico de 40% em seu PIB, segundo anunciou a Associação Comercial e Industrial da cidade, dita na imprensa, em razão da transferência da sede do governo do estado para a Cidade do Rio, em decorrência da saída das repartições com seus funcionários e prestadores de serviço não mais circulando pela cidade, e o fechamento de sedes e escritórios regionais de empresas na ex-capital estadual.
Outra razão da falta de reação para superar a paralisação das obras, era o acordo durante a transição para Fusão sobre o emprego das receitas tributárias, e o funcionamento da tesouraria do novo estado durante um tempo.
Ao contrário, do que alegam os cariocas defensores atuais da tese da “desfusão”, foi acordado que a tesouraria do recém extinto Estado da Guanabara, durante os anos iniciais da pós-Fusão, ficaria integralmente com o novo Município da Cidade do Rio de Janeiro, enquanto a do antigo Estado do Rio passaria a custear exclusivamente a do novo Estado do Rio, inclusive nas despesas com a transferência de repartições para a nova capital.
Isso explica porque nos primeiros anos da fusão a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro tenha conseguido concluir importantes obras de infraestrutura iniciadas pelo governo da Guanabara e ainda realizado tantas outras, sem o mesmo com o restante. Com maior prejuízo para Niterói.
Obras inconclusas
O governo do novo Estado do Rio passou a depender de recursos federais para obras, que vieram a menos do que o prometido durante a discussão pela Fusão e na transição. Como bem denunciou a imprensa, e inclusive era apontado pelo governador.
O esvaziamento econômico, ao contrário do que era prometido acontecer, e a paisagem “apocalíptica”, tanto pelo aterro inconcluso (ficando em terra e capim alto), como pelas ruas a sua volta esburacadas, deprimira a cidade, que 3 anos antes se entusiasmaram com o Projeto Praia Grande, até mesmo de forma soberba e ufanista.
As chacotas dos cariocas, antes uma histórica brincadeira, similar a que se tem entre times de futebol, tornaram, mais do que nunca, um ataque à autoestima, e dessa vez, eram uma triste realidade.
As contas do encerrado governo Raimundo Padilha, mesmo em meio a Ditadura Militar, chegaram a ser reprovadas pelo Tribunal de Contas do Estado e rejeitadas pela Assembleia Legislativa.
Se não tanto pela falta de transparente e mesmo suspeita de corrupção, mas provavelmente estimuladas pelos adversários políticos, que se aproveitaram da situação.
E, justamente por ser em plena Ditadura, não houve maiores consequências a ele e seus apoiadores diretos, além da aposentadoria política virtual desse político. Apenas lhe restou a Padilha usar a imprensa para se defender e tentar mostrar sua versão dos fatos e denunciar a “injustiça”, o que perdurou após a redemocratização, sem sucesso.
Para a DESURJ ainda durante o governo Faria Lima, restou a sua extinção sumária e suas atribuições, inclusive sobre o Projeto Praia Grande, dispersas entre as diversas secretarias estaduais e autarquias, sem que lhe fizessem uma devida devassa financeira e administrativas.
O governador Faria Lima e a Prefeitura de Niterói anunciavam que só retomariam quaisquer obra do Projeto após novos estudos e em novos objetivos.
Durante 1975 e 1976 a população e a sociedade civil de Niterói fizeram intenso movimentação, apesar da “depressão” que se encontrava a vida social da cidade, para retomada das obras, ou pelo menos que se superasse a situação de abandono dos canteiros a céu aberto que se encontrava parte da cidade.
Se os centros culturais estaduais prometidos no Aterro não vieram, foram paulatinamente constituídos fora dele, por ação da Prefeitura, como o Centro Cultural Paschoal Carlos Magno, e da Universidade Federal Fluminense (UFF), o Espaço de Arte UFF.
Planos para o pós-aterro e novos projetos para seu uso
O estica-e-puxa com as empresas de navegação de passageiros não chegou a um bom termo nesse meio tempo. E com a suspensão do prosseguimento da implantação do Projeto Praia Grande, restou um aterro segmentado em duas partes, em razão daquela enseada provisória para canal de navegação em frente à Praça Arariboia.
Nos novos planos, aproveitava-se o que já tinha resultado, e de maneira mais barata em implantação, mesmo que desviando do projeto original.
O objetivo, tendo em vista que, o aterro acabou segmentado em duas partes, resolver os problemas urgentes e desesperados do trânsito sobrecarregado da cidade. Mas também, a carência de áreas de lazer e a falta de grandes espaços para alocar novas atividades, mesmo que fosse dando finalidades diferentes entre seus trechos.
O primeiro plano era assentar a ampliação do campus da UFF no aterro, no trecho do Gragoatá e dos morros desmontados de Gragoatá e da Boa Viagem, cuja orla também tinha passando por um aterramento menor, especialmente no trecho da hoje extinta Praia Vermelha.
Eram na cercania do que a UFF acabara de constituir um campus unificado no sopé e no morro de São João Batista, área conhecida como Valonguinho, e ampliaria o campus da UFF que tinha erguido na área da Escola de Engenharia na Boa Viagem.
Para isso, o maior interessado e quem de fato tomou a iniciativa, a Reitoria da UFF, aguardava a desapropriação dessa área toda pelo Governo Federal a seu favor e recursos para construção de novos prédios.
Planos viários e na paisagem urbana para mitigar o problema
Nessa retomada, a Prefeitura de Niterói também planejava para ordenamento urbano e trânsito no Centro duas grandes medidas.
Primeiro, usar parte do outro trecho do aterro concluído para grandes estacionamentos para receber os carros dos moradores de Niterói e cidades vizinhas que se deslocam para a Cidade do Rio por barcas ou por ônibus com paradas no Centro da cidade ou mesmo que buscavam o Centro para as compras e serviços.A ideia era diminuir ou mesmo evitar o estacionamento de carros dispersos pelas ruas estreitas do Centro e melhorar o tráfego nesse bairro. O Centro de Niterói, a partir da inauguração dos acessos à Ponte Rio-Niterói, em sua maioria concentrados ali, consolidou-se como principal destino dos moradores da cidade e municípios do entorno, mesmo que intermediário para outro ponto final (a Cidade do Rio).
O segundo agravante: o Centro acabava, inclusive pela confluência de vias em sua direção, também sendo um ponto de tráfego intermediário entre a Zona Sul e a Zona Norte da própria cidade, com poucas conexões diretas entre os bairros dessas duas zonas e a região de orla oceânica.
O segundo plano era construir no trecho de aterro do Centro dois terminais urbanos de ônibus para as linhas intermunicipais e que atendiam a Zona Norte da cidade. E, um outro também, no aterro, para as linhas da Zona Sul e bairros da região oceânica do município, ambos os terminais, implantados entre 1977-1983, liberariam as ruas do Centro dos pontos finais dessas linhas de ônibus.
Esses terminais, contrariavam as intenções presentes no Projeto Praia Grande, cujo plano era que a sua versão de terminal rodoviário fosse integrada à nova hidroviária (que acabou não finalizada) e mais afastada das estreitas e congestionadas ruas de carros e pessoas do miolo do Centro. Dessa vez teriam que ficar nas vizinhanças da estação antiga, na Praça Arariboia. E também não mais em um grande prédio próprio, algo muito mais custoso para se construir.
A ideia era que os terminais fossem erguidos ao longo das vias novas que chegaram a ser finalizadas no aterro, mas como paradas de ônibus em sequência linear, constituídas de abrigos para proteger os passageiros que embarcam e desembarcam. E bem rente às ruas movimentadas do Centro, evitando o medo dos comerciantes da distância entre pontos de ônibus e os seus estabelecimentos.
Com a retirada dos paradas finais das linhas de ônibus e a abertura de estacionamentos no aterro da Praia Grande, os planos da Prefeitura contemplavam ainda converter várias das ruas com comércio mais volumoso em ruas de pedestres, fechando para circulação de veículos, principalmente àquelas no entorno do Jardim São João.
Os terminais, conhecidos posteriormente como terminal Norte e terminal Sul, tão logo construídos, revelaram-se saturados rapidamente em pouquíssimos anos.
E, por serem muito abertos e pouco segregados à circulação em geral de pedestres e veículos do seu entorno, acrescido da carência de uma gestão integrada e a problemas de conservação e zeladoria, acabaram por degradar a paisagem e complicar a vida urbana do Centro, muito mais do que resolver, o que era a sua intenção.
Principalmente, por serem rentes às ruas movimentadas do Centro e sem a devida segregação espacial na circulação de pessoas e veículos, ajudaram paulatinamente a embolar o trânsito nas proximidades.
Ainda ocupavam áreas que serviriam para duplicar a Avenida Visconde do Rio Branco e para implantar as vias previstas no plano no Projeto Praia Grande como alternativa expressa ao tráfego.
Essa foi a razão que, anos depois, na primeira metade da década de 1990 acabaram demolidos e substituídos justamente por um novo Terminal Rodoviário Urbano, atual Terminal Rodoviário João Gourlart, popularmente conhecido como “Terminal de Niterói” (ou simplesmente “O Terminal”) e pela remodelação da Avenida Visconde de Rio Branco, com duplicação da via e construção de com um largo e arborizado canteiro central. Também estendeu ruas e implantou novos quarteirões (que seguem sem edificações).
A Vila Olímpica e os Terminais Norte e Sul
Anos antes, entre 1983-1988, foi paulatinamente implantada a Vila Olímpica, com quadras esportivas (1 coberta e um conjunto de quadras descobertas) e parques infantis. Junto a ele construiu-se também vastos estacionamentos públicos.
O tal shopping center acabou retomado e, por fim, locado para uma grande unidade de uma grande rede de lojas de departamentos (atualmente extinta), a Sandiz. Alguns anos depois, essa unidade encerra as atividades, ficando o prédio ocioso, sendo convertido em uma espécie de depósito por poucos anos. Tempos depois, esse edifício, após reforma, passa a abrigar um shopping center de verdade pela primeira vez, o Bay Market, em funcionamento atualmente.
Ao longo da área aterrada, duas comunidades surgiram nos últimos anos. Uma se consolidou na faixa aterrada da orla, no trecho entre o Caminho Niemeyer e o estaleiro Setal, e a outra, nos fundos do CIEP na Rua Dr. Alexandre Moura, em São Domingos.
Atualmente, a própria imprensa registra que são cerca de 130 famílias vivendo em condições precárias. Espremida num recanto entre o atual Caminho Niemeyer e o Centro de Hidrografia da Marinha, às margens da Baía de Guanabara, paulatinamente a partir de ocupação irregular se ergueu a Vila de Pescadores da Praia Grande, uma pequena e antiga comunidade pesqueira situada em pleno Centro de Niterói.
A vila dos pescadores consegue manter sua rotina de vida tranquila, ainda que o cenário das carcaças de velhas embarcações abandonadas na praia e de uma igreja interditada, contrastem com a vista exuberante do pôr do sol que o local oferece, moradores da vila afirmam que a vida segue tranquila na localidade.
O cais da Praia Grande, único cais público em funcionamento na cidade de Niterói e principal fonte de renda dos habitantes da vila.
O prefeito Moreira Franco (1977-1982), como parte de grandes obras públicas em resultado de vultosos empréstimos disponíveis, implantou os Terminais Urbanos Juscelino Kubitschek de Oliveira e Agenor Barcelos Feio (respectivamente chamados de Terminal Norte e Sul), suprimindo e implantando novas vias e configurando assim, modificação no projeto de arruamento e criando em parte da área gigantescos estacionamentos públicos. Moreira Franco era o herdeiro político de ex-governador e senador Amaral Peixoto.
O prefeito Waldenir Bragança (1983-1988), mesmo assumindo um município quebrado, prosseguiu os planos, implantando a Vila Olímpica, conjunto de quadras descobertas e uma quadra coberta, nos espaços ociosos do aterro onde atualmente é o Caminho Niemeyer. Contudo, ainda no fim de sua administração esse espaço já se encontrava degradado.
A crise fiscal e inflacionária do final da Ditadura e com dificuldades orçamentárias, que se estendiam a desordem da paisagem urbana, especialmente do Centro da cidade, legaram a Waldenir o infâme e jocoso apelido de “Waldenir Bagunça”.
No mandato do sucessor, a partir do final dos anos 1980 e início dos 1990, a área central segue na aceleração da degradação. Contraditoriamente, o restante da cidade houve várias iniciativas de revitalização urbana e melhoria na qualidade dos serviços públicos e zeladoria,
O prefeito Jorge Roberto Silveira (1989-1992) - primeiro prefeito governando já sobre o arranjo institucional da Constituição Federal de 1988 e com acesso as novas receitas - grande popularidade e projeção, projeção até mesmo nacional, que se estenderia em compor um grupo político que dirigirá a cidade pelas próximas duas décadas seguintes.
Como resultado, os terminais Norte e Sul ficam bem deteriorados e a Vila Olímpica acaba fechada ao público, aguardando nova revitalização
O Terminal de Niterói e a Cidade “1ª em Qualidade de Vida”
Na prefeitura de João Sampaio (1993-1996), sucessor e aliado de Jorge Roberto e seu ex-secretário mais forte (de obras), deu continuidade ao projeto denominado Plano Urbanístico do Aterro Norte.
No novo plano, a Prefeitura promoveu um reparcelamento da área do aterro, que permitiu a construção do Terminal Rodoviário Urbano de Niterói (Terminal Rodoviário João Goulart, ao lado da Praça Arariboia), do parque da Concha Acústica de Niterói (no bairro de São Domingos) e a duplicação da principal avenida do Centro, a Avenida Visconde do Rio Branco (justamente a via que outrora margeava a orla da extinta Praia Grande).
A decadência das atividades econômicas industriais e navais da cidade prosseguiu nestes anos, contribuindo apenas com uma degradação urbana nos bairros que outrora situava essas fábricas e o entorno do porto de Niterói, com a deterioração e subutilização de muitos imóveis - rebaixando a atratividade desses locais tanto para negócios, como para moradia.
Este cenário acelerou a degradação social espacial em amplas parcelas do município, com a expansão do subemprego e da informalidade (multidão de camelôs), com consequência na favelização e explosão da violência urbana (mesmo que em níveis abaixo da capital fluminense) e na migração de moradores para cidades vizinhas em busca de habitação adequadas a rendas menores - contribuindo para ampliar os problemas urbanos nas cidades vizinhas (Leste Fluminense Metropolitano: São Gonçalo, Itaboraí e Maricá), para a expansão de assentamentos precários e na pressão fundiária entre velhos e novos moradores.
Porém, simultaneamente, a partir do final da década de 1980, a cidade de Niterói começa a recuperar competitividade, por outro viés.
Há uma estratégia do governo municipal de então, aproveitada pelos empresários, de que a cidade se voltaria a uma vocação econômica em torno de atividades de serviços e moradia.
Aproveitava-se da qualidade de vida da cidade - adquirida pela alta renda de seus moradores e pela presença dos equipamentos públicos e privados herdados de ter sido décadas capital estadual - aliada à decorrência de menores custos com terrenos e despesas de localização.
Combinadas ao fato da cidade ter boa logística e mobilidade urbana, ser próxima da Cidade do Rio e polarizar toda a região do Leste Fluminense. Assim, começa a proliferação de lançamentos e empreendimentos imobiliários, de projetos de serviços privados especializados e de comércio de alto padrão, concentrando-se no Centro e principalmente na Zona Sul e bairros da Região Oceânica.
Também contribuiu para essa reversão da dinâmica econômica geral da cidade, vários projetos públicos da administração municipal que mudaram a paisagem urbana, destacando-se melhorias viárias e empreendimentos voltados ao fomento do turismo, ou pelo menos, a melhoria e divulgação da boa imagem da cidade.
Foram os anos da duplicação de avenidas, entre elas a avenida Visconde do Rio Branco (sobre a área do aterro) e a Marquês do Paraná, a restauração do Teatro Municipal e do Solar do Jambeiro, da construção do Terminal Rodoviário João Goulart (o “Terminal”), do Museu de Arte Contemporânea e do “Caminho Niemeyer”.
Houve ainda intensa propaganda, inclusive institucional, em torno à imagem de que a cidade deteria um alto padrão de qualidade de vida, usando para isso inclusive, a divulgação massiva e marqueteira de estatísticas e indicadores sociais e econômicos favoráveis.
A consequência é que as décadas de 1990 e 2000 foram de grande verticalização no perfil da edificação urbana e de multiplicação do lançamento empresarial de estabelecimentos de serviços e comércio, com shopping centers, hospitais e clínicas particulares, colégios e universidades privadas.
Tal situação levou à cidade ao evidente inchaço e saturação no trânsito e serviços públicos e privados.
Caminho Niemeyer, Viva Centro e Masterplan
Após a conclusão da construção do Museu de Arte Contemporânea em 1996, a prefeitura da cidade começou uma campanha para tornar o museu o principal elemento de propaganda da cidade, onde o MAC deveria passar a imagem de cidade moderna, globalizada e de futuro.
A imagem do museu se transforma em símbolo da cidade, essa imagem é utilizada/instrumentalizada para projetar a cidade no Brasil e no mundo.
Este fato foi transformado, pelo grupo no poder, em mote para o marketing político, rapidamente absorvido pelos empreendedores empresariais que acabariam adotando a imagem do MAC como o novo símbolo “oficial” da cidade.
Este novo movimento acabou embalando o inconsciente coletivo da população local e ressignificando a representação dominante da cidade, de signo de marca indígena e funções complementares à cidade do Rio de Janeiro, Niterói se projetaria internacionalmente nos anos de 1990, por meio da obra do premiado arquiteto Oscar Niemeyer.
Na segunda e terceira administração do prefeito Jorge Roberto Silveira (1997-2002) foi concebido o Caminho Niemeyer.
O projeto foi concebido como um conjunto de edifícios perpassando por um trajeto rente a orla marítima da cidade, projetadas pelo arquiteto Oscar Niemeyer, se estenderia desde o Museu de Arte Contemporânea de Niterói no Mirante da Boa Viagem em direção à Praça Arariboia, sobre o Aterro Sul.
Posteriormente, a Prefeitura, diante de dificuldades de obter cessão de terrenos em áreas já ocupadas pelo campus da UFF, optou realocar todo o projeto para ocupar a área do Aterro ocupado pela Vila Olímpica. Combinou-se com a ideia de revitalizar o Centro e o Aterro.
A Vila Olímpica encontrava-se em avançado estado de degradação, abandonado, e a maioria dos seus trechos encontrava-se fechado pela administração municipal desde o fim da gestão Waldenir.
Desde a conclusão dos primeiros prédios, o Caminho Niemeyer vem resultando em um problema para a cidade, muito além do seu custo em si na construção e operação de seus equipamentos culturais,
As obras projetadas por Niemeyer formam um conjunto arquitetônico em si – em tese com funcionalidade entre suas partes e as margens da Baía de Guanabara – estão, assim, mais voltadas para a sua integração com o terminal de barcas e com o Rio de Janeiro e com muito pouca ou nenhuma integração com as demais áreas da cidade, a começar pelo próprio Centro.
O Caminho Niemeyer servia para “esparramar” para demais bairros, especialmente o Centro da Cidade, a atenção e o “magnetismo” exercida pelo MAC e complementar o rol, o portfólio de atrações culturais complementares a este. Falava-se que ele por si revitalizaria a região de seu entorno, mesmo que em nada nos planos se mencionasse como. Ignorando questões básicas, como circulação de pessoas inclusive a pé, atratividade comercial da vizinhança, qualidade de ruas e calçadas em seu acesso.
Encerrava-se a Vila Olímpica, já sucateada seria substituída pela Praça do Povo com equipamentos culturais: o Teatro Popular, a Fundação Oscar Niemeyer (mais conhecida como “Cúpula”) e o Memorial Roberto Silveira, e as catedrais católica e evangélica.
E as quadras do aterro vazias usadas como estacionamento entre o Caminho e a Avenida Visconde do Rio Branco acabariam por ação do mercado sendo ocupadas por empreendimentos imobiliários. Porém não acabou acontecendo.
Os equipamentos públicos culturais projetados demoram a ficar prontos. Além de controvérsia jurídica sobre a necessidade social desses equipamentos públicos e sobre a titularidade dos lotes das quadras, não houve a atratividade sobre os terrenos privados vazios para lançamentos imobiliários.
Também nada se planejou sobre o funcionamento dos equipamentos culturais, quais os tipos de atividades e acervos que os ocupariam e como seriam geridos e mantidos.
Mesmo construídos muitos desses ficaram anos fechados ou com funcionamento parcial. Até mesmo a circulação de visitantes na Praça do Povo era restrita. Por sua vez, não havia até mesmo uma simples entrada de pedestre ou ponto de ônibus. Até a visitação por turistas era difícil.
Assim, tempos depois, motivada por essa falta de integração e o contraste da nova área urbanística valorizada pelo Caminho Niemeyer em relação à visível decadência do Centro, a prefeitura de Niterói chegou a lançar tardiamente, apenas em 2006, o Programa “Viva Centro”, com o objetivo de promover a reabilitação do Centro de Niterói e regulamentar a Área de Especial Interessantes em seu entorno.
O Viva Centro resultou concretamente apenas na retomada do plano de oferecer à iniciativa privada os terrenos vazios dentro do perímetro da área especial (desde sempre usados como estacionamentos particulares improvisados) para construção de torres imobiliárias. Porém, limitando-se a ações pontuais, ao ponto de cair no esquecimento com a mudança da administração municipal em 2008.
E em algumas intervenções públicas nas áreas das quadras do miolo do Centro (remodelamento de praças e reabertura de ruas pedestres para o trânsito), na parte velha da cidade, sem, contudo, integrá-las ao 'Caminho'.
No entanto, esse esforço teve impactos limitados e foi, em grande parte, esquecido após mudanças na administração municipal subsequente e outros interesses.
Um dos poucos resultados sobre a uma grande área dos terrenos vazios, foi a abertura de hipermercado de uma grande rede internacional. O equipamento privado era inadequado ao contexto das atividades típicas daquele território, e apesar de ampliar a circulação de pessoas na área, contraditoriamente atrapalhou ainda mais a mobilidade de pedestre entre a Avenida Visconde Rio Branco e os prédios do Caminho Niemeyer. Acabou funcionando por menos tempo do que ficou fechado, sendo demolido enfim em 2023, para dar lugar a redivisão das quadras e abertura de ruas, propiciando os lançamentos imobiliários que vem ocorrendo na região somente agora.
Em seguida é lançado o Projeto Masterplan, no ano subsequente, encomendado junto a escritórios privados, e visava explicitamente revitalizar o centro de Niterói e torná-lo um destino turístico nacional, com implicações sobre o próprio Plano Diretor da cidade.
MasterPlan, no contexto do planejamento urbano, é uma ferramenta crucial para orientar o desenvolvimento físico e espacial de cidades, bairros ou complexos arquitetônicos de grande escala. Ele representa um conjunto organizado de decisões sobre futuras ações, sendo aplicado a projetos urbanos para direcionar usos do solo, limites de construção, desenho de vias e sistemas de transporte, entre outros. O conceito ganha forma após análises e estudos específicos do contexto, apresentando propostas alinhadas às necessidades da população.
No entanto, suas ações foram direcionadas mais para a planos de construção de torres imobiliárias (que agora começam a ser construídas) do que para a integração efetiva com o Caminho Niemeyer.
Em seguida, com nova troca de administração municipal, saída do PDT e entrada do PT, veio mais projeto de revitalização, agora semelhante ao “Porto Maravilha”, que estava em curso na cidade do Rio, partindo de premissas semelhantes a dela e de outras cidades sobre suas zonas portuárias e as áreas de frente marítima.
A Prefeitura de Niterói anunciou esse que chamava de “Plano de Requalificação” do Centro da cidade, mas abrangendo cinco bairros e totalizando 3,2 milhões de metros quadrados. Com ele, lançou um site com o título de “O Centro que queremos”, que além de apresentação da proposta e expunha o portfólio de intervenções que o constituíam e ainda recolhia sugestões da população.
O projeto incluiria melhorias em infraestrutura, redes sanitárias, iluminação, água e gás, além da criação de espaços públicos acessíveis. Com foco em atrair novos habitantes e comerciantes, o plano prioriza o transporte, integrando barcas, ônibus, bicicletas, VLT e metrô.
A mobilidade seria aprimorada com 16 km de ciclovia e passagens subterrâneas. A iniciativa abrange a preservação de edifícios históricos, o ordenamento urbano, realocação de vendedores ambulantes e oferecimento de espaços para atividades específicas.
A operação seria financiada pela venda de Certificados de Potencial Construtivo (CEPACs), parte de uma Parceria Público-Privada, visando a preservação dos cofres públicos.
Prometia a importância de recuperar as frentes marítimas, ela enfatiza a necessidade de integrar a cidade com o mar. A área de revitalização inclui o Caminho Niemeyer. Usava-se a experiência de Barcelona como suposta inspiração na busca por melhorias nas condições urbanas coletivas e a necessidade de equilibrar residências e comércios, evitando a gentrificação.
Porém, entraves legais e jurídicos poucos avançaram no projeto, apesar de abranger a preocupação com a preservação das áreas históricas, a urbanização de favelas e a melhoria do transporte público. Sendo sepultado com a intensificação da crise financeira brasileira de 2016 e depois da pandemia de covid-19.
Niterói 450: a revitalização da revitalização da revitalização
Em 2022, com o arrefecimento da pandemia e com a proximidade do aniversário de 450 anos da fundação da cidade, a Prefeitura de Niterói anunciou além de uma série de festas, obras de revitalização urbana, especialmente no Centro da cidade, como parte das celebrações, com o nome de Plano Niterói 450.
“Reciclava-se” as propostas do Plano de Requalificação do Centro. O novo projeto prevê a urbanização de uma área de 65 mil metros quadrados, anteriormente usada como estacionamento, com planos para a construção de até oito torres residenciais nas quadras recém redivididas dos terrenos desocupados.
No entanto, uma análise mais detalhada revela que essas iniciativas têm um viés eleitoreiro (seu plano constava um rol de realizações bem calcadas para uso político nas eleições municipais de 2024) e que ainda beneficiam empresas imobiliárias e empreiteiras.
A mais recente iniciativa, busca integrar o Caminho Niemeyer ao Centro por meio de uma Parceria Público-Privada (PPP). A Prefeitura com recursos em parte privados dos incorporadores imobiliários que queriam construir nas quadras vazias.
Demoliu-se o prédio do hipermercado fechado e alongou as ruas do Centro e suas respectivas calçadas até alcançar a área da Praça do Povo. E criou uma alameda de pedestre paisagística no meio de algumas dessas novas quadras. Já o calçadão que margeia a Avenida Visconde do Rio Branco passou por revisão e calcetaria paisagística e teve seus pontos de ônibus modificados.
Constituiu-se uma paisagem atrativa para os compradores de apartamentos e salas de novos edifícios residenciais e comerciais dessas quadras a serem lançados simultaneamente às obras. A imprensa registrou “sucesso de vendas” e se viu pela primeira vez em décadas, enfim, o início de obras para ocupar essas quadras.
Embora a proposta prometa revitalização, é fundamental questionar a eficácia real dessa abordagem: A quem vão estar destinadas estas novas residências? Vão atender à carência de moradia da população trabalhadora e pobre ou vão privilegiar a classe média alta e seus negócios, além dos empresários da construção civil?
História que se repete (e se copia)
A trajetória do desenvolvimento urbano de Niterói evidencia uma recorrência de projetos de revitalização, que antecedem inclusive o aterramento da orla do Centro e bairros centrais, conhecido como Aterro da Praia Grande (décadas de 1960/70), e, mais recentemente, o "Caminho Niemeyer" (década de 1990) e a nova revitalização do Centro (década de 2010/20), que agora enfrenta uma controvérsia similar ao passado.
Cinco décadas antes, houve o conjunto do centro cívico e Praça da República (década de 1910-20), enseada de São Lourenço e o Porto (1920) e a Avenida Amaral Peixoto (instaurada na década de 1940). Posteriormente, surgiram o Porto da cidade (décadas de 1920/30), Isso ajuda a compreender por que essas áreas, especialmente o Centro de Niterói, continuam a ser alvo de projetos de requalificação urbana contínuos por parte do Estado ou a demanda persistente da população e empresários.
Nas três primeiras décadas do século XX (1900/10/20), em menor medida nas décadas de 1930 e 1940, as políticas públicas visavam intervenções urbanísticas em cidades capitais estaduais ou de maior importância, focando no saneamento, embelezamento e na convergência entre o centro econômico e comercial e o centro político.
No início da década de 1900, com a estabilização pós-Proclamação da República, as classes dominantes optaram por intervenções urbanísticas. O objetivo era preparar a infraestrutura urbana, tornando-a apta a abrigar a sede dos órgãos públicos estaduais e competir com a centralidade da Cidade do Rio de Janeiro, então capital federal.
As obras visavam superar as marcas do passado colonial e imperial das cidades, conferindo simbolismo às aspirações políticas e econômicas das elites regionais diante da República, através de novos edifícios públicos e monumentos.
As urbanizações empreendidas foram fortemente influenciadas pela reforma realizada pelo prefeito Pereira Passos na cidade do Rio de Janeiro. Os projetos incluíam a construção de edifícios-sede de órgãos públicos ou equipamentos culturais em torno de praças monumentais, parques-jardins espetaculares ou avenidas com paisagismo marcante, cercados por estabelecimentos de comércio de alto padrão, escritórios e residências nobres para a classe média alta.
Nas décadas seguintes, com a aceleração da industrialização e a consolidação do padrão produtivo "fordista" no país, juntamente com dois ciclos políticos autoritários (a ditadura Vargas e a ditadura cívico-militar de 1964), intercalados por um período democrático de viés populista, as revitalizações deram lugar à modernização conservadora.
Essa mudança cedeu parcialmente espaço para políticas de valorização de novas zonas de expansão urbana, e, em alguns casos, para a construção de vias rodoviárias, prejudicando a qualidade de vida nos bairros já consolidados pela ação de viadutos, autopistas, etc., e contribuindo para a degradação do ambiente urbano.
Por sua vez, essa mesma expansão rodoviária, permitiu acesso e instalação de população em bairros mais distantes das zonas centrais e com o espraiamento de moradia. Essa situação favoreceu a uma espécie de “fuga” do Centro e bairros antigos, contribuindo ainda mais e acelerando a degradação dessas regiões.
Em reação a esse fenômeno, nos últimos anos do século XX e início do XXI, o fenômeno global de revalorização das áreas à beira d'água, as mudanças nas relações entre indivíduos e seu lazer, o crescimento do turismo cultural e temático, e a tendência à construção de fragmentos qualificados de cidade destacaram as áreas portuárias em grandes centros urbanos (zonas mais vitimadas pela degradação).
Essas áreas, anteriormente desativadas, ganharam destaque por suas potencialidades paisagísticas, lúdicas, logísticas e imobiliárias, além da revalorização midiática e mercadológica de seu capital simbólico.
O fator cultural (e turístico) tem sido um pilar importante para que esses projetos resgatem a imagem das cidades, especialmente de seus centros. A construção de museus, cinemas e teatros tornou-se cada vez mais comum, visando reativar áreas e construir uma nova identidade para a cidade.
Não se pode esquecer da importância da atuação efetiva do Poder Público na recuperação e melhoria da qualidade de vida, valorizando as características únicas do lugar e sua população, bem como na recuperação cultural do espaço urbano através do desenho urbano e de programas complementares.
O tecido de Penélope
A malha urbana, assim como na mitologia grega de Penélope, é tecido e desfeito sucessivamente, sem completar totalmente cada ciclo de mudança. Mesmo antes de uma revitalização ser concluída pelas autoridades públicas urbanas, o território, como um “tecido”, e sua “trama” podem ser desfeitos e desmanchados.
Na mitologia grega, a rainha Penélope, esposa de Ulisses (Odisseu), aguarda a volta de seu marido por vinte anos após a Guerra de Troia. Diante da falta de notícias sobre Ulisses, seu pai sugere que ela se case novamente. Fiel ao marido, Penélope recusa, comprometendo-se a esperar sua volta.
Porém, para não desagradar ao pai, aceita a corte dos pretendentes sob a condição de que o casamento só ocorrerá após tecer um sudário para Laerte, pai de Ulisses. Nesse estratagema, ela espera adiar o evento, inclusive enrolando os pretendentes. Penélope tece durante o dia, mas secretamente desfaz o trabalho à noite, após muito tempo acaba sendo descoberta por uma serva.
Diante da situação, Penélope estabelece outra condição ao pai, relacionada à dureza do arco de Ulisses. Afirmou que se casaria com o homem que conseguisse usá-lo. Um camponês humilde realiza o feito, revelando-se imediatamente como Ulisses disfarçado após seu retorno. Ulisses mata os pretendentes e retoma o trono e seu casamento.
Como no mito, o tece e destece da malha é proposital, isto é, a verdadeira intenção do desenvolvimento urbano pela autoridade governamental não é aquela anunciada. Pressionada pelos atores sociais urbanos, atua para agradá-los, mas também enrolá-los, se não todos, uma parte deles.
Por outro lado, quando reveladas as intenções ocultas, ou resultados concretamente não agradam os setores de maior peso social, surge um novo estratagema, um novo “plano”.
Portanto, assim, não se pode dizer que há revitalizações bem sucedidas ou fracassadas, ou que foram executadas plenamente ou não. Revitalizações, não são prédios, praças, parques, jardins, ruas e calçadas prontas, modificadas por ações de um plano governamental de obras. Nada disso. As revitalizações existem como plano e/ou projeto em si, E apenas isso.
Conclusão
Os recentes esforços de revitalização liderados pelo atual prefeito Axel Grael (PDT) trazem à tona reflexões sobre o planejamento urbano e seus impactos nas cidades.
O "Projeto Praia Grande", completando meio século em julho de 2022, foi uma ambiciosa iniciativa de revitalização urbana em Niterói que prometia transformar a cidade em uma metrópole turística até o ano 2000. No entanto, resultou em vazio urbano, dívidas e promessas não cumpridas. O atual prefeito, Axel Grael, iniciou uma nova fase de revitalização focada no Centro, especialmente na área resultante do projeto fracassado.
O projeto original visava criar o Parque da Praia Grande com vias expressas, áreas de lazer e equipamentos culturais. No entanto, após o aterramento durante o Milagre Econômico e a Ditadura Militar, a conclusão foi suspensa, deixando a região negligenciada por décadas. As áreas resultantes do aterro hoje estão vazias, subutilizadas e servem como estacionamentos improvisados.
O Caminho Niemeyer, construído na década de 2000, compõe-se de prédios destinados a espaços culturais, mas enfrentou desafios de integração com o restante do Centro, resultando em uma tentativa tardia de "revitalizar a revitalização". Niterói, como muitas cidades brasileiras, mostra um ciclo de revitalizações frequentemente abandonadas ou desviadas de seus objetivos originais, evidenciando a priorização da acumulação de capital em detrimento da inclusão social.
O "tecido de Penélope" metaforiza esse padrão de mudanças constantes no espaço urbano, com intervenções iniciadas, suspensas e revisadas antes da conclusão, destacando a necessidade de repensar o planejamento público e urbano para evitar ciclos repetitivos de revitalizações inacabadas.
Contraditoriamente, o Centro da cidade, carente de equipamentos culturais e áreas de lazer, motivo alegado para a construção do Caminho Niemeyer, viu, com a autorização da mesma Prefeitura que o construiu, o fechamento de dezenas de cinemas de rua, o desaparecimento de áreas livres usadas como espaço de lazer e a falta de desenvolvimento de espaços culturais populares no aproveitamento de edifícios históricos fechados ou subutilizados.
Com a recente reinauguração do Mercado Municipal de Niterói, fechado por quase 50 anos e seu prédio subutilizado para outros fins muito menos nobres, abre-se a possibilidade de discutir a requalificação de grandiosos edifícios públicos, muito fechados e passando inclusive por processo de deterioração.
Soa estranho isso acontecer em um município que gasta fortunas com aluguéis de imóveis para suas repartições, almeja tornar-se destaque nacional com turismo e indústria cultural e durante anos gastou milhões levantando prédios novos para o complexo cultural do Caminho Niemeyer, abandonando prédios históricos.
E o que dizer da “revitalização do centro” em relação à construção de moradias populares para milhares de pessoas que gastam horas e horas de seu dia com longos deslocamentos entre casa e local de trabalho?
E da criação de espaços de lazer para esta mesma população trabalhadora e pobre, expandindo as áreas verdes da cidade, em condições ambientais adequadas?
Os prédios institucionais históricos, se devidamente recuperados, mesmo para novos fins institucionais ou culturais/entretenimento, poderiam contribuir para a retomada econômica da cidade, especialmente após muitos meses de pandemia de covid-19 que obrigaram a economia a passar por recorrentes suspensões das atividades não essenciais.
A atual proposta de integrar o Caminho Niemeyer ao Centro, por meio da abertura de ruas e ocupação das quadras vazias por edifícios residenciais e comerciais, hoje ocupadas por estacionamentos pagos improvisados, embora possa parecer promissora, deve ser analisada criticamente.
A inclusão de uma área verde e a ocupação de uma área deserta para a construção de residências deve garantir que essas medidas realmente beneficiem a população local, evitando a expulsão dos mais pobres e a exclusão econômica.
Além do calçamento colorido cênico, dos canteiros paisagísticos e da mudança de pontos de ônibus, que, na verdade, facilitam a atratividade para a venda de apartamentos de alto padrão na região e garantem fluidez para o transporte rodoviário individual, são necessárias ações concretas voltadas para a parcela mais carente da população.
Novamente, omite-se o planejamento de todos os serviços públicos que devem existir na cidade, especialmente limpeza, iluminação, segurança e ordem pública, não apenas nas novas quadras, mas no conjunto do Centro, sem falar no conjunto do município.
Associado à revitalização, ouve-se mais uma vez a narrativa de que os camelôs e moradores de rua “matam” o Centro e precisam ser combatidos, além do discurso aporofóbico de que atrapalham a movimentação do cidadão, afetam o comércio legal, geram desemprego, incomodam o turista, “enfeiam” a cidade e trazem criminalidade.
Esse discurso esquece as pessoas que vivem e trabalham naquele espaço, sem integrar ao plano as fundamentais ações de assistência social, habitação social e fomento à economia popular e solidária.
Diante dos desafios enfrentados por Niterói, é urgente discutir democraticamente o uso do espaço urbano e o perfil das atividades econômicas.
As revitalizações urbanas geralmente resultam em gentrificação e elitização, beneficiando a indústria da construção civil e o setor imobiliário. A acumulação de capital é a faceta central nas decisões de revitalização urbana, e é crucial compreender que essas ações entram em conflito com os objetivos declarados de melhorar a qualidade de vida da população local.
Somente por meio de uma abordagem que priorize as necessidades da população em detrimento dos interesses políticos e empresariais, Niterói poderá alcançar uma verdadeira revitalização urbana que beneficie a todos, mas especialmente à classe trabalhadora e à população de baixa renda.
E apoiada na instalação de um conselho popular com poder decisório sobre as revitalizações, integrado estritamente por meio democráticos, com a participação de estudiosos e representantes das entidades dos trabalhadores usuários dos equipamentos urbanos e dos funcionários das empresas e instituições envolvidas.
Este é o caminho para construir uma cidade mais justa, equitativa e sustentável para os próximos 450 anos.
Bibliografia
● Jornal do Brasil
● O Fluminense
- PLANEJAMENTO ideal para a nova cidade". 08/12/1971. O Fluminense, Rio de Janeiro, 08/12/1971. Reprodução digital.Fundação Biblioteca Nacional. Brasil.
- DRAGAGEM da orla de Niterói começa hoje. O Fluminense, Rio de Janeiro, 15/03/1976. Fundação Biblioteca Nacional. Brasil. Periódico O Fluminense.
- ATERRO começa para acabar em três meses. O Fluminense, Rio de Janeiro, 16/03/1973. Fundação Biblioteca Nacional. Brasil. Periódico O Fluminense.
- HOTEL inaugurado mas faltando algumas obras.O Fluminense, Rio de Janeiro, 11/03/1975. Fundação Biblioteca Nacional. Brasil. Periódico O Fluminense.
- PLANEJAMENTO ideal para a nova cidade. O Fluminense, Rio de Janeiro, 08/12/1971. Fundação Biblioteca Nacional. Brasil. Periódico O Fluminense.
- DRAGAGEM da orla de Niterói começa hoje. O Fluminense, Rio de Janeiro, 15/03/1976. Fundação Biblioteca Nacional. Brasil. Periódico O Fluminense.
- Imagens Fluminenses - Edição oficial IV Centenário de Niterói O Fluminense, 1973.
- Niterói Rio de Janeiro. Ministério do Planejamento e Coordenação Geral. IBGE - Diretoria Técnica. Departamento de Divulgação Estatística
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