Por Almir Cezar Filho
Vivemos um tempo em que a realidade parece escapar pelas frestas e o futuro se dissolve em incertezas. Talvez, diante disso, devêssemos pausar e encarar uma pergunta incômoda: o que realmente justifica uma ação política ou histórica? Basta vencer uma batalha? Impedir uma medida regressiva é suficiente? Ou é preciso mais: garantir que nossas vitórias preservem, no tempo, a razão pela qual lutamos?
Hoje, a ação parece cada vez mais desconectada de suas consequências. O futuro, quando não é temido, é descartado. Crises superpostas, decisões apressadas, mobilizações frustradas e retrocessos disfarçados de avanços formam o pano de fundo deste cenário. O que, então, justifica uma ação histórica? Basta o êxito imediato ou devemos considerar se a vitória mantém viva a coerência com o projeto que a motivou?
Este ensaio propõe uma reflexão filosófica que parte de uma especulação provocadora — a hipótese da viagem no tempo — para propor uma teoria com implicações políticas, históricas e éticas: a da coerência motivacional retroativa. Inspirada nos paradoxos clássicos da ficção científica, essa hipótese convida a pensar não apenas sobre os limites da causalidade, mas sobre o próprio sentido das transformações que buscamos. O tempo, aqui, não é mero cenário das ações humanas, mas um espelho crítico que interroga: nossas ações ainda fazem sentido, depois de realizadas?
O paradoxo temporal — a possibilidade de uma viagem ao passado alterar o futuro a ponto de impedir a própria viagem — tornou-se um tema recorrente na ficção científica moderna. De O Exterminador do Futuro a Dark, de Looper a Interestelar, a obsessão narrativa por curvar, refazer ou corrigir o tempo expressa uma ansiedade histórica profunda da nossa era. Em tempos de colapso ambiental, instabilidade democrática e avanços tecnológicos acelerados, o desejo de voltar atrás e refazer bifurcações perdidas transformou-se num anseio coletivo, mascarado de entretenimento.
Porém, a ficção científica nunca foi apenas escapismo. Ela funciona como um laboratório filosófico da razão humana, onde hipóteses radicais são testadas em cenários simbólicos. Em um mundo que parece girar mais rápido do que nossa capacidade de compreendê-lo, a sci-fi fornece não apenas metáforas potentes, mas estruturas lógicas alternativas para pensar tempo, causalidade, responsabilidade e agência. Ao encenar paradoxos temporais, a arte nos ensina a enfrentar as contradições do presente com rigor e, quem sabe, a encontrar saídas.
Mais que um gênero, a ficção científica opera como dispositivo epistemológico e estratégico. Ela antecipa tecnologias, projeta sistemas sociais, modelos econômicos alternativos, cenários de escassez, colapso ou utopia — oferecendo ferramentas heurísticas a campos como a economia, a sociologia, o urbanismo, a engenharia e o planejamento político. Modelos econômicos pós-trabalho, sociedades baseadas em inteligência artificial, crises de recursos ou reorganizações estatais: tudo isso foi primeiramente explorado pela ficção, antes de se tornar pauta nos fóruns da política global.
Nesse sentido, a ficção científica também é um instrumento de luta para os movimentos sociais. Ao imaginar futuros possíveis — e, às vezes, futuros a evitar — rompe com o fatalismo histórico e o estreitamento do imaginário imposto pelas ideologias dominantes. Permite que os movimentos populares formulem estratégias de longo prazo, reconstruam narrativas e visualizem o impacto sistêmico de suas ações — inclusive em termos temporais: coerência entre meios e fins, entre causas e efeitos. O tempo, nesse contexto, deixa de ser fluxo linear e passa a ser campo simbólico e estratégico a ser disputado.
Falo também de um lugar pessoal. Desde a infância fui marcado pelas sagas de Star Wars e Star Trek. Em suas galáxias distantes e futuros especulativos, não vi apenas naves e batalhas, mas projetos de sociedade. Star Trek me apresentou, ainda criança, a ideia de uma federação interplanetária onde o conhecimento e a cooperação superam a escassez. Star Wars, por outro lado, me ensinou que impérios caem — mas apenas quando a resistência se organiza e ousa imaginar alternativas. Essas obras, embora distintas, foram decisivas para meu despertar intelectual, moldando meu interesse pela economia e meu posicionamento político à esquerda: crítico às desigualdades, atento às estruturas de poder e comprometido com a ideia de que outros futuros são possíveis — mas que é preciso agir com coerência entre o que se sonha e o que se constrói no tempo.
Assim, proponho uma provocação filosófica com consequências muito concretas: e se fosse possível voltar no tempo e mudar o passado, mas apenas se o novo futuro ainda justificasse a viagem no tempo que o provocou? Esse princípio evitaria os famigerados paradoxos temporais e preservaria uma lógica: o tempo pode mudar, mas não pode perder o sentido que o impulsionou. A coerência motivacional retroativa não precisa ficar restrita ao domínio dos paradoxos: ela oferece uma lente original para pensar a história, a economia e a conjuntura política.
VI. Conclusões
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4. Tempo, sentido e compromisso
A metáfora clássica do tempo como uma linha reta já não dá conta da complexidade histórica contemporânea. A História não anda em linha: ela gira, bifurca, se dobra, e, frequentemente, nos obriga a retornar — se não fisicamente, como nas narrativas de ficção científica, ao menos simbolicamente, para corrigir, reavaliar e recolocar sentido onde ele se perdeu.
Talvez esta seja a verdadeira tarefa da política em tempos de crise:
agir com a consciência de que o tempo exige coerência.
Não é o futuro que redime o passado, mas a capacidade de manter viva a motivação histórica da ação, mesmo após os seus efeitos.
A coerência motivacional retroativa nos oferece mais do que uma teoria especulativa: oferece um critério ético e estratégico para evitar tanto o cinismo do poder quanto a ingenuidade do ativismo vazio.
Ela nos ensina que transformar o mundo não basta:
é preciso transformá-lo de tal modo que, ao olharmos para trás, ainda nos reconheçamos no gesto que o fez possível.