Theotonio dos Santos, um dos maiores intelectuais brasileiros vivo, um dos maiores expoentes brasileiros nas Ciências Sociais e co-criador da Teoria Marxista da Dependência, durante anos foi amigo e um dos principais interlocutores intelectuais do ex-presidente da República e "ex-sociólogo" Fernando Henrique Cardoso.
 Nem mesmo, as diferenças intelectuais e teóricas foram aos poucos os afastando, ou mesmo as políticas desde o fim da Ditadura Militar, a volta do exílio e a redemocratização foram determinantes ao fim da amizade. Porém, parece que isso mudou com os rumos políticos dos anos 90, a partir da adesão total ao neoliberalismo por FHC, e principalmente quanto este se tornou o principal implementador dessas políticas, os levaram a polos bem opostos. 
Na carta a seguir, Theotonio procura polemizar, rebatendo as posições que FHC exprimiu, em um carta aberta a Lula, em que crítica seu governo, enquanto procura "resgatar" o legado histórico de seu próprio mandato presidencial. Embora, o texto possa soar pró Lula e um tanto lulista, em sua resposta aos anos FHC, apresentando elementos de análise crítica ao legado neoliberal em sua gestão a frente do estado.
Theotonio Dos Santos*
Meu        caro Fernando,
Vejo-me na        obrigação de responder a carta aberta que você dirigiu ao Lula, em  nome de        uma velha polêmica que você e o José Serra iniciaram em 1978  contra o Rui        Mauro Marini, eu, André Gunder Frank e Vânia Bambirra, rompendo  com um        esforço teórico comum que iniciamos no Chile na segunda metade dos  nos        1960 . A discussão agora não é entre os cientistas sociais e sim a  partir        de uma experiência política que reflete comtudo este debate  teórico . Esta        carta assiada por você como  ex-presidente é uma defesa muito  frágil        teórica e politicamente de sua gestão . Quem a lê não pode  compreender        porque você saiu do governo com 23% de aprovação enquanto Lula  deixa o seu        governo com 96% de aprovação . Já discutimos em várias  oportunidades os        mitos que se criaram em torno dos chamados êxitos do seu governo .  Já no        seu governo vários estudiosos discutimos, já no começo do seu  governo, o        inevitável caminho de seu fracasso junto à maioria da população .  Pois as        premissas teóricas em que baseava sua ação política eram  profundamente        equivocadas e contraditórias com os interesses da maioria da  população .        (Se os leitores têm interesse de conhecer o debate sobre estas  bases        teóricas lhe recomendo meu livro já esgotado: Teoria da Dependencia: Balanço e Perspectivas,        Editora Civilização Brasileira, Rio, 2000) .
Contudo nesta        oportunidade me cabe concentrar-me nos mitos criados em torno do  seu        governo, os quais você repete exaustivamente nesta carta aberta        .
O        primeiro mito é de que seu governo foi um êxito econômico a  partir        do fortalecimento do real e que o governo Lula estaria apoiado  neste êxito        alcançando assim resultados positivos que não quer compartir com  você . .        . Em primeiro lugar vamos desmitificar a afirmação de que foi o  plano real        que acabou com a inflação . Os dados mostram que até 1993 a  economia        mundial vivia uma hiperinflação na qual todas as economias  apresentavam        inflações superiores a 10% . A partir de 1994, TODAS AS ECONOMIAS  DO MUNDO        APRESENTARAM UMA QUEDA DA INFLAÇÃO PARA MENOS DE 10% . Claro que  em cada        pais apareceram os “gênios” locais que  se apresentaram como os        autores desta queda . Mas isto é falso: tratava-se de  um  movimento        planetário . 
No        caso brasileiro, a nossa inflação girou, durante todo seu governo,          próxima dos 10% mais altos . TIVEMOS NO SEU GOVERNO UMA DAS MAIS        ALTAS INFLAÇÕES DO MUNDO . E aqui chegamos no outro mito incrível .         Segundo você e seus seguidores  (e até setores de oposição ao seu        governo que acreditam neste mito)  sua política econômica  assegurou a        transformação do real numa moeda forte . Ora Fernando, sejamos  cordatos:        chamar uma moeda que começou em 1994 valendo 0,85 centavos por  dólar e        mantendo um valor falso até 1998, quando o próprio FMI exigia uma        desvalorização de pelo menos uns 40% e o seu ministro da economia        recusou-se a realizá-la “pelo menos até as eleições”, indicando  assim a        época em que esta desvalorização viria e quando os capitais  estrangeiros         deveriam sair do país antes de sua desvalorização,  O fato é        que quando você flexibilizou o cambio o real se desvalorizou  chegando até        a 4,00 reais por dólar . E não venha por a culpa da “ameaça  petista” pois        esta desvalorização ocorreu muito antes da “ameaça Lula” .          ORA, UMA MOEDA QUE SE DESVALORIZA 4 VEZES EM 8 ANOS PODE SER        CONSIDERADA UMA MOEDA FORTE? Em que manual de economia? Que  economista        respeitável sustenta esta tese?
 Conclusões:        O plano real não derrubou a inflação e sim uma deflação mundial  que fez        cair as inflações no mundo inteiro . A inflação brasileira  continuou sendo        uma das maiores do mundo durante o seu governo . O real foi uma  moeda        drasticamente debilitada . Isto é evidente: quando nossa inflação  esteve        acima da inflação mundial por vários anos,  nossa moeda tinha que  ser        altamente desvalorizada . De maneira suicida ela foi mantida        artificialmente com um alto valor que levou à crise brutal de 1999         .
Segundo        mito;  Segundo você,  o seu governo foi um exemplo de rigor        fiscal . Meu Deus: um governo que elevou a dívida pública do  Brasil de        uns  60 bilhões de reais em 1994 para mais de 850 bilhões de  dólares        quando entregou o governo ao Lula, oito anos depois, é um exemplo  de rigor        fiscal? Gostaria de saber que economista poderia sustentar esta  tese .        Isto é um dos casos mais sérios de irresponsabilidade fiscal em  toda a        história da humanidade .
E não adianta        atribuir este endividamento colossal aos chamados “esqueletos” das  dívidas        dos estados, como o fez seu ministro de economia burlando a boa fé         daqueles que preferiam não enfrentar a triste realidade de seu  governo .        UM GOVERNO QUE CHEGOU A PAGAR 50% AO ANO DE JUROS POR SEUS  TÍTULOS,         PARA EM SEGUIDA DEPOSITAR OS INVESTIMENTOS VINDOS DO EXTERIOR EM        MOEDA FORTE A JUROS NORMAIS DE 3 A 4%, NÃO PODE FUGIR DO FATO DE  QUE CRIOU        UMA DÍVIDA COLOSSAL SÓ PARA ATRAIR CAPITAIS DO EXTERIOR PARA  COBRIR OS        DÉFICITS COMERCIAIS COLOSSAIS  GERADOS POR UMA MOEDA  SOBREVALORIZADA        QUE IMPEDIA A EXPORTAÇÃO, AGRAVADA AINDA MAIS PELOS JUROS ABSURDOS  QUE        PAGAVA PARA COBRIR O DÉFICIT QUE GERAVA .   Este nível de        irresponsabilidade cambial se transforma em irresponsabilidade  fiscal que        o povo brasileiro pagou sob a forma de uma queda da renda de cada        brasileiro pobre . Nem falar da brutal concentração de renda que  esta        política agravou dráticamente neste pais da maior concentração de  renda no        mundo . VERGONHA FERNANDO . MUITA VERGONHA . Baixa a cabeça e  entenda        porque nem seus companheiros de partido querem se identifica com o        seu governo . . . te obrigando a sair sozinho nesta tarefa insana        .
Terceiro        mito -  Segundo        você,  o Brasil tinha dificuldade de pagar sua dívida externa por        causa da ameaça de um caos econômico que se esperava do governo  Lula .        Fernando, não brinca com a compreensão das pessoas . Em 1999 o  Brasil        tinha chegado à drástica situação de ter perdido TODAS AS SUAS  DIVISAS .        Você teve que pedir ajuda ao seu amigo Clinton que colocou à sua        disposição ns 20 bilhões de dólares do tesouro dos Estados Unidos e  mais        uns 25 BILHÕES DE DÓLARES DO FMI, Banco Mundial e BID . Tudo isto  sem        nenhuma garantia .
Esperava-se        aumentar as exportações do pais para gerar divisas para pagar esta  dívida        . O fracasso do setor exportador brasileiro mesmo com a  espetacular        desvalorização do real não permitiu juntar nenhum recurso em dólar  para        pagar a dívida . Não tem nada a ver com a ameaça de Lula . A  ameaça de        Lula existiu exatamente em conseqüência deste fracasso  colossal  de        sua política macro-econômica . Sua política externa submissa aos        interesses norte-americanos, apesar de algumas declarações  críticas,        ligava nossas exportações a uma economia decadente e um mercado já  copado        . A recusa dos seus neoliberais de promover uma política  industrial na        qual o Estado apoiava e orientava nossas exportações . A loucura  do        endividamento interno colossal . A impossibilidade de realizar  inversões        públicas apesar dos enormes recursos obtidos com a venda de uns  100        bilhões de dólares de empresas brasileiras . Os juros mais altos  do mundo        que inviabilizava e ainda inviabiliza a competitividade de  qualquer        empresa . Enfim, UM FRACASSO ECONOMICO ROTUNDO que se traduzia nos  mais        altos índices de risco do mundo, mesmo tratando-se de avaliadoras  amigas .        Uma dívida sem dinheiro para pagar . . . Fernando, o Lula não era  ameaça        de caos . Você era o caos . E o povo brasileiro correu  tranquilamente o        risco de eleger um torneiro mecânico e um partido de agitadores,  segundo a        avaliação de vocês, do que continuar a aventura econômica que você  e seu        partido criou para este pais . 
Gostaria de        destacar a qualidade do seu governo em algum campo mas não posso  faze-lo        nem no campo cultural para o qual foi chamado o nosso querido  Francisco        Weffort (neste então secretário geral do PT) e não criou um só  museu, uma        só campanha significativa . Que vergonha foi a comemoração dos 500  anos da        “descoberta do Brasil” . E no plano educacional onde você não  criou uma só        universidade e entou em choque com a maioria dos professores        universitários sucateados em seus salários e em  seu prestígio        profissional . Não Fernando, não posso reconhecer nada que não  pudesse ser        feito por um medíocre presidente .
Lamento muito o         destino do Serra . Se ele não ganhar esta eleição vai ficar sem  mandato,        mas esta é a política . Vocês vão ter que revisar profundamente  esta        tentativa de encerrar a Era Vargas com a qual se identifica tão  fortemente        nosso povo . E terão que pensar que o capitalismo dependente que  São Paulo        construiu não é o que o povo brasileiro quer . E por mais que  vocês tenham        alcançado o domínio da imprensa brasileira, devido suas alianças        internacionais e nacionais, está claro que isto não poderia  assegurar ao        PSDB um governo querido pelo nosso povo . Vocês vão ficar na nossa         história com um episódio de reação contra o vedadeiro progresso  que Dilma        nos promete aprofundar . Ela nos disse que a luta contra a  desigualdade é        o verdadeiro fundamento de uma política progressista . E dessa  política        vocês estão fora . 
Apesar de tudo         isto, me dá pena colocar em choque tão radical uma velha amizade .  Apesar        deste caminho tão equivocado, eu ainda gosto de vocês  ( e tenho a         melhor recordação de Ruth)  mas quero vocês longe do poder no  Brasil        .   Como a grande maioria do  povo brasileiro . Poderemos bater        um papo inocente em algum congresso internacional se é que  vocês        algum dia voltarão a freqüentar este mundo dos intelectuais  afastados das        lides do poder . 
Com        a melhor disposição possível mas com amor à verdade, me        despeço.
theotoniodossantos.blogspot.com
(*) Theotonio Dos        Santos é Professor        Emérito da Universidade Federal Fluminense, Presidente da Cátedra  da        UNESCO e da Universidade das Nações Unidas  sobre economia global e         desenvolvimentos sustentável . Professor visitante nacional sênior  da        Universidade Federal do Rio de Janeiro .                 
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