sexta-feira, 22 de junho de 2018

Como dotar a Agricultura Familiar Urbana do mesmo tratamento da Rural

Os ajustes para reconhecê-los com a DAP e permiti-los acessar às políticas públicas agrárias

por Almir Cezar Filho*

Hortelão urbano num cultivo em plena encosta de um morro
 ocupada por um comunidade carente no Rio. (Foto: EBC)
Os agricultores e agricultoras familiares urbanos e periurbanos sofrem com dificuldades em acessarem as políticas públicas agrárias de âmbito federal. A primeira barreira é a emissão de sua DAP - Declaração de Aptidão ao PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). Por meio destes acessariam o rol de serviços públicos de promoção da produção agrícola familiar, como as de proteção social geral. O artigo visa propor a forma de normatizar o reconhecimento do segmento urbano da Agricultura Familiar diante de suas peculiaridades intrínsecas à agrariedade em paisagem urbana.

Contudo, os técnicos das entidades da rede emissora de DAP credenciadas pelo Governo Federal sentem-se inseguros para emitir a esse tipo de público específico. Tanto pela identificação, inclusive textualmente expressa nos normativos legais, de que a atividade agrária se manifestasse apenas em meio/zona rural. Como pela presença de peculiaridades quando a atividade agrária se dá nesse tipo de “ambiente”, que em limite distinguiria de um domicílio que contenha algum tipo de atividade agrícola, não passível de reconhecimento à qualidade de agricultor/a. É portanto, necessário fazer ajustes nos marcos legais orientadores (Decretos e Portarias) usados para balizar a emissão de DAP, sem contudo, mexer na essência da proteção legal do segmento familiar da Agricultura, fixada em Lei pelo Congresso Nacional, portanto não do âmbito da regulamentação pelo Executivo ou normatização administrativa da Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário da Presidência da República  - SEAD (ex-Ministério do Desenvolvimento Agrário, MDA)


As Notas Técnicas produzidas em 2017  da unidade no Estado do Rio de Janeiro (1) da SEAD (DFDA-RJ) identificaram não apenas o fato de que no território fluminense os agricultores familiares e os empreendimentos familiares rurais assumiam configurações que não correspondem aos parâmetros convencionais desse público, exigindo ajustes das políticas públicas agrárias. Assumem perfil que estão no limite ou fora da visão convencional do que das unidades familiares de produção agrária, especialmente aqueles que se encontrar em zonas urbanas, periurbanas e rurbanas, ao contrário daqueles existentes no meio rural, mais convencionais. A primeira convenção seria a própria existência da agricultura e do empreendimento rural limitado ao meio rural, reforçada no marco legal do tema agrário no Brasil.


As distinções encontradas em parte do público agrário fluminense comprometem até mesmo a própria identificação pelos agentes técnicos da rede emissão de DAP como “agricultores” ou “empreendimentos rurais”. Possuem imóveis muito pequenos, inclusive minifúndios, considerados incompatível com um cultivo/criação autossustentável; cultivos que envolvem espécies vegetais não convencionais na dieta do consumidor fluminense, inclusive as ditas PANCs (plantas alimentícias não convencionais); a criação e o cultivo são voltados exclusivamente a fornecer matéria-prima para beneficiamento e processamento, que seria o verdadeiro foco principal da atividade econômica da unidade familiar, inclusive adquirindo parte considerável dessa matéria-prima de vizinhos. 

O marco legal de emissão de DAP é regulada por quatro instrumentos legais normativos:
a) A Lei Nº 11.326, de 24 de julho de 2006, que estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais. 
b) Decreto nº 9.064, de 31 de maio de 2017, que dispõe sobre a Unidade Familiar de Produção Agrária, institui o Cadastro Nacional da Agricultura Familiar e regulamenta a Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006, que estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais.
c) Portaria SEAD nº 234, de 04 de abril de 2017. No Art. 4º, Alínea “e”, “identificação com a produção agrária – na emissão de DAP deve ser atividade desenvolvida é agrária, não importando se a localização se dá em ambiente estritamente rural ou urbano.
d) Portaria SAF/SEAD nº 1, de 13 de abril de 2017, que dispõe sobre as competências, condições e procedimentos específicos para a emissão, validação, suspensão, cancelamento e exercício do controle social da DAP. E emitida de acordo com o Art. 21 da Portaria SEAD nº 234/2017.

O instrumento legal mais importante em vigor a Lei nº 11.326/2006 contribui ao preconceito. No Art. 3º considera-se agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que “pratica atividades no meio rural”. Dá a entender na interpretação literal que ambos os segmentos existem apenas em meio rural, portanto não existindo em meio urbano, ou que este meio seria incompatível manter as atividades agrárias, expressão que não empregada em nenhum momento. Além do uso de “rural” no empreendimento familiar rural.

A literatura econômica e jurídica fala em atividade agrária, porém a legislação fala em atividade rural e atividade agrícola. Considera-se pela Lei 8.023/1990, que altera a legislação do Imposto de Renda sobre o resultado da atividade rural, e dá outras providências (especialmente o Art. 2º); a Lei 9.250, de 26 de dezembro de 1995, o Art. 17, a Altera a legislação; e Lei nº 9.430/1996, art. 59, que incluiu a Atividade Florestal.

Lei 8.023/1990 Art. 2º Considera-se atividade rural: I - a agricultura; II - a pecuária; III - a extração e a exploração vegetal e animal; IV - a exploração da apicultura, avicultura, cunicultura, suinocultura, sericicultura, piscicultura e outras culturas animais. A Lei 9.250, Inciso V, “a transformação de produtos decorrentes da atividade rural, sem que sejam alteradas a composição e as características do produto in natura, feita pelo próprio agricultor ou criador, com equipamentos e utensílios usualmente empregados nas atividades rurais, utilizando exclusivamente matéria-prima produzida na área rural explorada, tais como a pasteurização e o acondicionamento do leite, assim como o mel e o suco de laranja, acondicionados em embalagem de apresentação”. O disposto neste artigo não se aplica à mera intermediação de animais e de produtos agrícolas, como descreve seu Parágrafo Único.

O Decreto nº 9.064/2017 é cronologicamente posterior as Portarias SEAD nº 234/2017 e SAF/SEAD nº 01/2017 e seu objetivo é normatizar o CAF, instrumento que sucederá a DAP e traz algumas inovações terminológicas, que provavelmente visam a superar a questão da limitação da agricultura ao meio e/ou zona rural. Dispensa-se o uso da palavra “rural”, pelo substituto equivalente “agrário”. Assim, as categorias analíticas como Unidade Familiar de Produção Rural - UFPR é substituída por Unidade Familiar de Produção Agrária – UFPA e Imóvel Rural por Imóvel Agrário. O Art. 5º, IV, do Decreto nº 9.064/2017, afirma que serão cadastrados no CAF, “as demais UFPA e os empreendedores familiares rurais que explorem imóvel agrário em área urbana” (grifo nosso). Isto é, logicamente, as UFPA e os empreendedores familiares rurais não se restringem às áreas rurais.

A Portaria SEAD nº 234/2017, no Art. 4º, Inciso I, Alínea “e”, expressa que a Unidade Familiar de Produção Rural tem como critério “identificação com a produção agrária – na emissão de DAP deve ser atividade desenvolvida é agrária, não importando se a localização se dá em ambiente estritamente rural ou urbano”. Trazendo assim duas inovações, primeira, expressar a presença da atividade agrária, e a segunda, a possível localização urbana.

A Lei nº 5.889, de 8 de junho de 1973, que estatui normas reguladoras do trabalho rural, cita no Art. 14, Parágrafo Único, pela primeira vez e rara vez a expressão “atividade agrária”. Em sentido inverso, a Lei nº 4.947, de 6 de abril de 1966, que fixa Normas de Direito Agrário, dispõe sobre o Sistema de Organização e Funcionamento do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, e dá outras Providências, cita “atividade agropecuária”. A Lei nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991, que dispõe sobre a política agrícola, cita “atividade agrícola”, igualmente o faz a Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, que dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal. A Carta Magna, o Cap. III, “Política Agrícola e Reforma Agrária”, não cita o tipo de atividade, mas expressa a categoria “imóvel rural”; porém, no Cap. II cita a Política Urbana, sem o equivalente Política Rural.

A categoria Imóvel Rural, segundo a legislação agrária, é a área formada por uma ou mais matrículas de terras contínuas, do mesmo titular (proprietário ou posseiro), localizada tanto na zona rural quanto urbana do município, caracterizando-o por sua destinação agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial. A Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964 (Estatuto da Terra), e a Lei nº 8.629, de 25/2/1993, definem “imóvel rural” como sendo o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização, que se destine ou possa se destinar à exploração econômica.

A despeito da não confusão da atividade agrária ao meio rural, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apura em seus Censos Agropecuários com a distinção entre Domicílios Rurais e Estabelecimentos Agropecuários (2). Enquanto aqueles são apurados apenas em setores censitários definidos como rural em correspondência à classificação dada no zoneamento territorial do respectivo Município. Já este, é um tipo de estabelecimento que abrange toda unidade de produção ou exploração dedicada, total ou parcialmente, a atividades agropecuárias, florestais e aquícolas. 

Ou seja, o cultivo do solo com culturas permanentes e temporárias, inclusive hortaliças e flores; a criação, recriação ou engorda de animais de grande e médio porte; a criação de pequenos animais; a silvicultura ou o reflorestamento; e a extração de produtos vegetais. Independentemente de seu tamanho, de sua forma jurídica ou de estar na área rural ou urbana, todo estabelecimento agropecuário tem como objetivo a produção, seja para venda (comercialização da produção) ou para subsistência (sustento do produtor ou de sua família)(3). Ficam, portanto de fora destes, os quintais produtivos, “telhados verdes” e outras formas de cultivo de plantas e criação de animais exercidos em um domicílio que não tenha esse tipo de finalidade.

No Art. 2º, I, do Decreto nº 9.064/2017, considera-se Unidade Familiar de Produção Agrária (UFPA), o “conjunto de indivíduos composto por família que explore uma combinação de fatores de produção, com a finalidade de atender à própria subsistência e à demanda da sociedade por alimentos e por outros bens e serviços, e que resida no estabelecimento ou em local próximo a ele”. 
a) A UFPA “deve explorar uma combinação de fatores de produção” (mão de obra, terra, ar, iluminação solar, água e solo). A ausência da exploração dessa combinação de fatores de produção, não configuraria uma atividade agrária. Nesse caso os empreendimentos ou mesmo as unidades familiares que apenas beneficiam, processem ou comercializam produtos agrícolas de outrem, sem eles extraírem, cultivarem ou criarem espécies, não configuram práticas de atividades agrárias. Caso similar temos outras modalidades de atividades não agrícolas, como, por exemplo, o agroturismo/turismo rural. Por sua vez, a presença restrita de processo agrobiológico sem a exploração do solo e/ou da água naturais, configuraria apenas atividade agrícola, mas não agrária.
b) Deve realizá-las com “fins de atender à própria subsistência e à demanda da sociedade de alimentos e por outro bens e serviços”. Portanto, não pode ser associadas com finalidades distintas destas, como terapêuticas, integração comunitária, lazer ou passatempo (hobby), ou realizar a recuperação ecológica ou urbanística de área territorial degradada. Nem mesmo a obtenção de alimentos extras para dieta ou complementar nutrição.

O imóvel agrário independe do tamanho, pode ser pequeno, até mesmo menor do que 1 (um) módulo fiscal, ou ainda mais baixo em dimensão territorial, com extensão inferior a própria fração mínima, mas seu uso deve dispor de condições básica de atender a finalidade de subsistência da unidade familiar e/ou à demanda da sociedade de alimentos e por outro bens e serviços.

Partindo da análise do marco legal, considera-se esta suficiente, necessitando apenas de um instrumento de complementação que contribuiria apenas na interpretação. Conclui-se portanto pela sugestão de redação pela SEAD de uma Instrução Normativa, estabelece os pronunciamentos emitidos em expedientes encaminhados pelos agentes emissores, ou mesmo Orientação Normativa, instrumento que orienta a interpretação do marco levado em consideração pelos agentes emissores no ato da vistoria técnica no estabelecimento que identificaria a atividade agrária.

Quanto a possível revisão da Portaria SEAD, em torno de modificação do Art. 4º, envolve duas considerações a seguir:

A modificação da Alínea “e”, com a redação atual “identificação com a produção agrária – na emissão da DAP deve ser observado se a atividade desenvolvida é agrária, não importando se a localização e dá em ambiente geográfico estritamente rural ou urbano”, por “identificação com a produção agrária e/ou não agrícola, de beneficiamento e comercialização, podendo esta ser em ambiente Rural, Urbano e Periurbano”. 

Na nova redação à alínea acaba por tratar dois temas e meio. O primeiro tema a identificação da produção praticada pela unidade familiar com o do tipo agrário. O tema “um e meio” seria essa identificação que a produção pode ser de tipo não agrícola, de beneficiamento e processamento. 

O segundo tema seria que a unidade produtiva pode estar não apenas no ambiente Rural, mas também no Urbano e Periurbano. O recomendável para melhor tratamento redacional seria separar os dois temas em duas alíneas próprias, criando assim uma alínea “f”. Igualmente primeiro tema pode passar por compreensão melhorada ou ajuste na redação.

A outra modificação, a do Alínea “c”, que trata da validade, atualmente de “dois anos, a contar a data da emissão”. A literatura acadêmica e a pesquisa empírica juntos aos agricultores urbanos apontam que essa agricultura possui ciclos mais curtos de culturas vegetais e as transformações no funcionamento do estabelecimento, maiores do que os estabelecimentos em área urbana. Contudo, a redução de dois anos para um ano pode comprometer em alguns aspectos, recomenda-se, portanto a manutenção do atual prazo de validade em vista:
i) a redução complicaria a atuação regular da rede emissora de DAP, que com três e mais recentemente em dois anos, tem dificuldades de emitir e renovar as Declarações, que teria que contar com aumento da sua equipe técnica, que houve simplificações no procedimento de preenchimento de formulários.
ii) o tempo menor vai de encontro as recentes ações da política pública da SEAD de ampliar de um para dois ou mais anos a duração de cada Plano Safra da Agricultura Familiar.
iii) na Agricultura se faz muito presente o princípio da interanualidade. As culturas não seguem o  ano civil e as safras somadas superam os doze meses ou são menores a depender principalmente do tipo de cultura e/ou de técnica de cultivo adotado. A rotação de culturas também não acompanha essa temporalidade. Não à toa que mesmo em contratos de crédito na agricultura leva-se em consideração esse princípio, mesmo que para financiar apenas uma safra de uma cultura, acompanhado ou não da carência, a fim de cálculo de vigência da operação. Na agricultura urbana e periurbana a grande rotação e a adoção de cultivos de ciclo curto comprometeriam a eficácia da vistoria aos estabelecimentos em termos exclusivamente de 12 em 12 meses.

(*) Artigo adaptado da Nota Técnica nº 003/2018/DFDA-RJ/SEAD/CC/PR, de responsabilidade do mesmo autor - Almir Cezar de Carvalho Baptista Filho é economista da Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário, da Casa Civil da Presidência da República (SEAD/CC/PR). Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal Fluminense e Mestre em Economia (Desenvolvimento Econômico) pela Universidade Federal de Uberlândia.
(1) Notas Técnicas da DFDA-RJ/SEAD/CC/PR do ano de 2017 se encontram no Processo Administrativo nº 55000.01775/2017-62.
(2) IBGE. Censo Agropecuário. Conceitos. Disponível: https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/agropecuaria/censoagro/conceitos.shtm. Acesso em: 02 jun. 2018.
(3) IBGE. Censo Agro 2017. Estabelecimentos. Disponível em: https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/coleta-censo-agro-2017/estabelecimentos-censo-agro-2017.html.  Acesso em: 01 jun. 2018.

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