segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Marxismo e teoria da dependência, por Álvaro Bianchi

Blog Convergência | novembro 29, 2013 |por Alvaro Bianchi

A necessidade de desenvolver uma interpretação de nossa realidade torna a trajetória do marxismo latino-americano desviante. Perry Anderson (2004) analisou o deslocamento que ocorreu no marxismo europeu do pós-guerra para os temas da filosofia e da crítica literária. A necessidade de o marxismo interpretar a América Latina e, particularmente, o Brasil impediu que a pesquisa histórica, social, política e econômica sofressem o mesmo deslocamento. Pode-se, até mesmo, dizer que a filosofia e a crítica literária brasileiras foram desde cedo marcadas pela análise histórica e social, inclusive no marxismo, ou seja, que o objetivo explícito dessa filosofia e dessa crítica literária foi, senão sempre pelo menos na maioria das vezes, interpretar o Brasil.[1]

Isso é evidente naqueles autores já citados que assumiram como desafio o estudo da formaçãodo Brasil. Mas pretendo apresentar de modo mais detalhado um caso que tinha tudo para ser a realização do “marxismo ocidental” no Brasil, mas que nunca o foi: o lendário “Seminário d’O Capital”, aquele grupo de estudos sobre a obra de Marx integrado por José Arthur Giannotti, Fernando Henrique e Ruth Cardoso, Paul Singer, Fernando Novais, Octávio Ianni e outros.


De certo modo, a conformação do Seminário tinha um caráter de contestação à figura de Florestan Fernandes e àquilo que Gabriel Cohn chamou de seu “ecletismo bem temperado”.[2]Mas embora esse desafio existisse, as exigências de rigor e cientificidade que Fernandes havia imposto ao seu próprio trabalho eram por todos partilhadas, daí que Giannotti pudesse retrospectivamente ressaltar “a vocação científica do grupo” (1999, p. 116) e Roberto Schwarz dizer que o objetivo do grupo era “uma concepção científica superior” (1999, p. 89).

Aqui está um ponto importante que merece ser destacado. A crítica explicita à tradução das idéias marxistas realizadas no Brasil pelo stalinismo, que sempre atravessou o grupo, encontrava-se amparada em uma também explícita distinção ente ciência e ideologia. Distinção essa que deveria ser viabilizada metodologicamente por uma leitura rigorosa d’O Capital. O papel de Giannotti como guardião epistêmico era, aí, crucial e foi por meio dele que o enfoque estruturalista de Martial Guéroult e Victor Goldschmidt se tornou um modelo para uma leitura rigorosamente interna do texto de Marx, permitindo o que consideravam ser uma abordagem científica desta. Paulo Arantes e Roberto Schwarz (1999, p. 91) já destacaram a ironia presente no fato de que a empresa intelectual de um grupo que pretendia renovar criticamente e mesmo revolucionar a recepção de Marx no Brasil estava sustentada em uma técnica de leitura que era lugar comum para qualquer estudante do secundário francês.

Ironias à parte, a separação entre ciência e ideologia preconizada pelo grupo não deixava, entretanto, de ser ela mesma ideológica. A política permanecia não apenas como um objeto, mas também como um desejo. Todos liam O Capital, confessou Giannotti, com o objetivo de “entender o estágio em que se encontravam as relações sociais do desenvolvimento econômico e social brasileiro, com o intuito muito preciso de poder avaliar as políticas em curso” (Giannotti, 1998, p. 116). E a “aposta no rigor e na superioridade intelectual de Marx (…) era redefinida nos termos da agenda local, de superação do atraso por meio da industrialização” (Schwarz, 1999, p. 88), o que impedia os membros do Seminário de se afastarem das diretrizes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) ou da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) tanto quanto afirmavam querer.

O “estudo rigoroso” da obra de Marx tinha, assim, um claro propósito instrumental. O contexto é importante para compreender esse propósito. A promessa de desenvolvimento e a ideologia do progresso contida no programa de Juscelino Kubitschek pareciam materializar-se no vertiginoso crescimento industrial e na construção de Brasília. Nesse cenário, no qual o Brasil moderno parecia travar sua luta definitiva contra o Brasil arcaico o que interessava a esses autores era “afinar conceitos científicos que lhes fornecessem instrumentos de intervenção na própria universidade e na política brasileira.” (Giannotti, 1998, p. 119.)

Dentre aquelas questões de ordem teórica e interpretativa que se manifestavam com mais urgência, estava o acerto de contas com a idéia de burguesia nacional corrente tanto no discurso nacional-desenvolvimentista como naquele que tinha sede no PCB.[3] Foi numa clara contraposição a essa idéia que apareceu a obra Empresário industrial e desenvolvimento econômico, de Fernando Henrique Cardoso (1964), na qual eram eram apresentadas as inconsistência do projeto de hegemonia política da burguesia industrial brasileira. Presa entre motivações e interesses tradicionais que a prendiam ao latifúndio e ao capitalismo internacional, ao qual se encontrava associada, essa burguesia encontrava-se impossibilitada de aliar-se de modo duradouro às classes urbanas e populares.

Cardoso concluía seu livro com uma disjuntiva dilacerante. Ou esse capitalismo associado se consolidaria assegurando à burguesia brasileira a condição de sócia-menor do capitalismo ocidental ou as massas urbanas e os grupos populares manifestariam uma nova forma de organização capaz de “levar mais adiante a modernização política e o processo de desenvolvimento econômico do país.” Em última instância, concluía Cardoso, “a pergunta será então, subcapitalismo ou socialismo?” (Cardoso, 1964, p. 187.)

Talvez, dado o ceticismo e a desconfiança que Cardoso demonstrou desde cedo perante o movimento operário, a interrogação já contivesse sua resposta. Mas outras são a questões que gostaria de levantar neste momento. Os méritos e os limites desse livro podem ser encontrados na relação que estabelece entre a teoria marxista e a pesquisa empírica. A apropriação do marxismo por parte de Cardoso não era feita de modo mecânico. O objetivo do autor era uma análise das características particulares que a burguesia assumia em uma sociedade que era desviante, mas não alheia ao desenvolvimento do capitalismo. O marxismo deveria, desse modo, viabilizar uma interpretação do Brasil que evitasse considerar seu “caso” como um “evento singular discreto” à maneira de um historicismo vulgar, ao mesmo tempo em que rejeitasse as tentações do economicismo que apresentava a formação da ordem capitalista industrial em nosso país como uma “tendência inexorável” (Cardoso, 1964, p. 42-43).

Reconhecer o mérito dessa abordagem não implica, entretanto, afirmar sua exclusividade, ou mesmo sua originalidade. As críticas à noção de “burguesia nacional” e aos esquemas etapistas que caracterizavam a análise do PCB eram voz corrente na esquerda anti-stalinista da época e, particularmente, na Organização Revolucionária Marxista-Política Operária (Polop), fundada em 1961 (cf. Sader, 1997, p. 110 e Mattos, 2002, p. 186). E haviam sido antecedidas em muito pelas pioneiras análises da Liga Comunista Internacionalista na década de 1930 e, particularmente pelo “Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil”, de Mario Pedrosa e Lívio Xavier (1987).

Crítica similar poderia ser encontrada em outros países e antecedendo muito os trabalhos do “Seminário d’O Capital”. Na Argentina, Nahuel Moreno havia formulado em 1948 “Cuatro tesis sobre la colonización española y portuguesa en América” (Moreno, 1957) e o agudo historiador argentino Milcíades Peña, um personagem sobre o qual o marxismo latino-americano deveria prestar mais atenção, escreveu entre 1955 e 1957 um conjunto de importantes textos daquilo que pretendia ser um amplo painel da formação e da perspectiva das classes sociais na Argentina (ver Peña, 1975, 1975a, 1975b, 1975c, 1975d e 1975e).[4]

Os limites da abordagem de Fernando Henrique Cardoso ficariam mais evidentes posteriormente com a publicação em co-autoria com Enzo Faletto de sua magnum opus Dependência e Desenvolvimento na América Latina (Cardoso e Faletto, 2004). Criticando o dualismo estrutural que caracterizava muito das teorias do subdesenvolvimento, Cardoso e Faletto propunham uma “análise integrada do desenvolvimento”, na qual este era concebido como “o resultado da interação de grupos e classes sociais que têm um modo de relação que lhes é próprio” (2004, p. 34). O foco da análise passava, assim, a ser “o estudo das estruturas de dominação e das formas de estratificação social que condicionam os mecanismos e os tipos de controle e decisão do sistema econômico em cada situação particular.” (Idem, p. 37.)

O pressuposto era o mesmo que animava Empresário industrial e desenvolvimento econômico, construir uma análise que permitisse a interpretação de casos particulares, rejeitando tanto o recurso a teorias ad hoc como a generalizações abstratas. Mas os objetivos de Dependência e Desenvolvimento na América Latina eram muito mais ambiciosos, uma vez que essa obra deixava de lado os estreitos quadros da sociedade brasileira e adotava para a análise do desenvolvimento uma perspectiva latino-americana. Para tal, seus autores procuravam por meio da noção de dependência aludir às condições particulares de existência e funcionamento do sistema econômico e do sistema político bem como as relações que estes mantinham nos planos interno e externo, insistindo “na natureza política dos processos de transformação econômica.” (Idem. p. 179.)[5]

De modo apropriado, João Quartim de Moraes perguntou à época a respeito do “estatuto teórico da teoria da dependência” e, mais precisamente, a respeito da relação desta com a teoria marxista (Moraes, 1972). Respondendo a Weffort (1989), que dogmaticamente procurava contrapor uma teoria baseada na idéia de nação a uma teoria baseada na idéia de classe, Cardoso explicou que não havia procurado construir uma “teoria da dependência” e sim fazer uma “análise concreta das situações de dependência”. O conceito de dependência seria constituído por meio da saturação histórica das contradições particulares que lhe dariam sentido. Mas esse conceito não estaria definido no campo teórico do modo de produção. Tratar-se-ía de um conceito “reflexo” que seria “explicado por conceitos que constituem a teoria do capitalismo na fase imperialista (…). Quando, entretanto, o conceito de dependência se refere às formações sociais (…) o procedimento adequado para construí-lo teoricamente é o de reter conceitualmente as contradições que ele quer expressar.” (Cardoso, 1972, p. 129.)

Afirmando que não pretendia construir uma teoria geral da dependência, mas apenas aplicar o conceito às formações sociais, Cardoso se eximia, desse modo, de explicar o conceito de dependência por meio das categorias que constituem a teoria do capitalismo e procurava resolver as dificuldades conceituais postas por uma teoria da dependência por meio do estudo empírico das realidades nacionais concretas. A dificuldade de pensar a América Latina por meio das categorias d’O Capital era contornada por Fernando Henrique Cardoso, mas não solucionada. Por essa razão Marx não era citado em todo o texto e as categorias marxianas da análise do capitalismo não apareciam em sua análise da dependência. Embora não fosse citado, Marx comparecia em Dependência e Desenvolvimento na América Latina, como de resto no conjunto da produção da década de 1960 dos membros do “Seminário d’O Capital”. Mas o fazia na condição de epistemólogo e era como tal que ele estava sempre presente nessa produção.

Em Dependência e Desenvolvimento na América Latina está consolidada uma notável análise da situação latino-americana que procurava articular as dimensões política e econômica. Mas as questões fundamentais de todo processo de dependência, a produção de valor e mais-valor e a transferência de mais-valor, não eram abordadas. Era justamente o tratamento teórico destas questões o que permitiria esclarecer os processos concretos que teriam lugar nas diferentes realidades nacionais e, principalmente, as formas que a contradição entre as classes assumiria em cada país.

Em sua reconstrução da trajetória do “Seminário d’O Capital”, Roberto Schwarz (1999, p. 103) apontou que o grupo não se interessou pela crítica de Marx ao fetichismo da mercadoria. Mas é sempre conveniente recordar que a análise marxiana do fetichismo é um capítulo de sua teoria do valor. É justamente esta a que parece estar ausente. As dificuldades que José Serra e Fernando Henrique Cardoso (1979) encontraram para responder às objeções de Ruy Mauro Marini e o tratamento pobre que deram às categorias de valor e de mais-valor nessa ocasião tornam ainda mais sentida essa ausência (cf. Marini, 2000, p. 177-181).

Na conclusão de Dependência e Desenvolvimento na América Latina esses limites revelam-se de modo dramático. Nela a oposição entre “socialismo e subcapitalismo” era substituída de modo ainda não desenvolvido teoricamente pela oposição entre dependência e interdependência. A nova situação da dependência, caracterizada pela inserção dos “interesses externos” no setor de produção para o mercado interno e por sua sustentação em alianças políticas das quais fariam parte as classes urbanas, tornaria possível que os países dependentes superassem a situação de subdesenvolvimento por meio de um desenvolvimento capitalista associado.

A base dessa nova interdependência estaria na crescente solidariedade entre os investimentos industriais estrangeiros e a expansão econômica do mercado interno que se evidenciaria em uma forte tendência ao reinvestimento de parte dos lucros obtidos pelas empresas transnacionais no mercado interno (cf. Cardoso e Faletto, 2004, p. 164). Assim, mesmo que o novo tipo de desenvolvimento implicasse em mecanismos de controle da economia nacional que fugissem do controle interno, excluindo qualquer alternativa, devido à unificação dos sistemas produtivos e dos mercados (idem, p. 167), isto não implicaria uma intensificação da dependência: “vínculos posteriores com a economia internacional poderiam ser do tipo normal nas economias modernas, nas quais sempre há interdependência” (idem, p. 165).

O que esses autores consideravam como vínculos de “tipo normal com a economia internacional” era um comércio internacional que não implicasse em uma transferência de valor, ou seja, um comércio mundial ricardiano, no qual as vantagens comparativas de cada nação garantiriam mútuos benefícios.[6] Em termos teóricos esse argumento foi colocado de modo mais intenso e acabado na polêmica que José Serra e Fernando Henrique Cardoso moveram contra Ruy Mauro Marini. Em uma passagem crucial de seu texto Cardoso e Serra questionaram a possibilidade de transferência de valor por meio do comércio internacional afirmando que “não havendo mobilidade da força de trabalho fica difícil estabelecer-se, em escala internacional, o conceito de tempo de trabalho socialmente necessário, o qual, por sua vez, é crucial como requisito para a operação da lei do valor.” (1979, p. 49.)

Marini surpreendeu-se com esse argumento e não viu o nexo anunciado por Serra e Cardoso entre a mobilidade da força de trabalho e o tempo de trabalho socialmente necessário. E de fato, tal nexo não existe na obra de Marx. Mas tal nexo é importante para a teoria ricardiana do comércio. Daí que, sem maiores explicações, Serra e Cardoso simplesmente rejeitassem a operação da lei do valor no comércio mundial. Como consequência ao invés de discutir as diferenças de “produtividade e de valores unitários” mostraram-se interessados na variação dos preços relativos e na deterioração dos “índices de relações de troca” que teriam como “componente dinâmico na explicação” a “luta de classes” (Serra e Cardoso, 1979, p. 45).

A referência à “luta de classes” tinha o propósito de demarcar posições entre uma leitura aberta, heterodoxa e até mesmo radical e outra economicista e ortodoxa. No argumento de Raúl Prebisch aceito por Serra-Cardoso, os aumentos de produtividade na produção de máquinas e equipamentos nos países desenvolvidos seriam rápidos e não se traduziriam em redução proporcional do preço unitário, enquanto que nos países subdesenvolvidos os aumentos de produtividade seriam lentos e se refletiriam em reduções proporcionais do preço. As razões para tal adviriam do fato de que nos países industrializados os ganhos de produtividade seriam repartidos entre capitalistas e trabalhadores, enquanto que nos países periféricos isso não ocorreria devido, entre outras razões, à incapacidade política dos trabalhadores imporem níveis salariais mais elevados e à debilidade das burguesias nacionais. As diferenças salariais decorrentes da luta de classes seriam, assim, cruciais para explicar o comportamento desigual dos preços dos produtos comercializados por nações industrializadas e periféricas (cf. Serra e Cardoso, 1979, p. 43). Daí a conclusão:

“Sem que se considere, por um lado, a capacidade de luta dos trabalhadores industriais no Centro bem como a defesa pelos empresários de seus interesses monopolistas e, por outro, a fraqueza relativa de ambos na periferia, não se explica o intercâmbio desigual, processo que reflete as condições reais das relações sociais nas quais se desenvolve a produção capitalista.” (Idem, p. 45.)

Este argumento que parece à primeira vista fazer sentido quando mobilizado para explicar as relações centro-periferia demonstra sua fragilidade quando utilizado para explicar as diferenças existentes entre países industrializados, como por exemplo, a Inglaterra e os Estados Unidos na primeira metade do século XX. Afinal, de que lado do Atlântico era possível encontrar uma classe operária mais organizada e uma luta de classes mais intensa? Certamente não era do lado dos Estados Unidos, para onde, paradoxalmente, a balança do comercio exterior inclinava-se favoravelmente. O recurso à luta de classes para solucionar os impasses aos quais chega o modelo explicativo tem o valor de um argumento ad hoc.

Por sua vez, um argumento que estivesse assentado nas categorias marxianas poderia debruçar-se sobre os processos de transferência de valor por meio do mercado mundial e, desse modo, chegar a resultados mais consistentes a respeito da dependência. A superioridade teórica do argumento de Ruy Mauro Marini em sua Dialética da dependência (2000) reside justamente neste ponto. Considerado a partir dessas categorias, o problema da dependência encontra sua explicação a partir de uma perspectiva totalizante que articula os processos de produção de mercadorias em contextos nacionais de desenvolvimentos desiguais e combinados com a circulação de mercadorias no mercado mundial e a transferência de mais-valor que esta possibilita. Este tema foi apenas esboçado por Marx, mas esse esboço já fornece importantes pistas para a solução.

Analisando as diferenças nacionais de produtividade de trabalho, Marx apontou, no livro I de O capital, que a intensidade média do trabalho varia de país para país. Comparando um trabalho mais intensivo com outro menos intensivo se verificará que o trabalho mais intensivo produz em um mesmo tempo mais valor. Desse modo, “o trabalho nacional mais produtivo é considerado ao mesmo tempo como mais intensivo, sempre que a nação mais produtiva não seja obrigada pela concorrência a reduzir o preço de venda de suas mercadorias até o limite de seu valor” (Marx, 1990, v. 1, p. 702).

Adquirem posição predominante no comércio internacional aquelas nações nas quais a intensidade e produtividade do trabalho superam o nível internacional. E muito embora o salário nominal – o equivalente da força de trabalho expresso em dinheiro – seja mais elevado nesses países do que nos demais, o preço relativo do salário, ou seja, sua relação com o mais-valor e com o valor do produto será nele mais baixo do que nos países nos quais predomine um regime capitalista menos desenvolvido. Um exemplo numérico pode ajudar a esclarecer essa questão. Ernest Mandel (1982, p. 250-254) propôs, em sua análise da troca desigual, um exemplo no qual dois países – A (desenvolvido) e B (subdesenvolvido) ‑ importam e exportam mercadorias entre si. O valor do pacote de mercadorias exportado por A corresponde a 5.000c + 4.000v + 4.000s = 13.000, onde c corresponde ao capital constante, v ao capital variável e s o mais-valor, a taxa de lucro (s/[c+v]) é igual a 44% e a taxa de mais-valor (s/v) igual a 100%. O valor do pacote de mercadorias exportado por B corresponde a 200c + 2.000v + 1.800s = 4.000, a taxa de lucro é igual a 82% e a taxa de mais-valor igual a 90%. Perceba-se que nesse caso, embora a taxa de lucro de B seja quase o dobro de A, a taxa de mais-valor (taxa de exploração) de A é maior do que a taxa de mais-valor de B.

Nessa situação, que pressupõe diferentes taxas de lucro nacionais, a equivalência de valores internacionais em uma situação na qual B exporta 4.000 unidades monetárias é a seguinte: 1.538cA + 1.231vA + 1.231sA = 200cB + 2.000vB + 1.800sB. Assim, embora valores internacionais sejam trocados por seus equivalentes esses valores iguais representam quantidades desiguais de trabalho decorrentes das diferenças de produtividade entre as diferentes nações: 1.231vA < 2.000vB. Mas ao contrário do que parecem insistir Cardoso e Serra – e antes deles Raúl Prebisch ‑, a questão fundamental nessa diferença não reside nos custos salariais desiguais e sim no fato de que a hora de trabalho de A é mais produtiva do que a hora de trabalho de B. A troca desigual é, assim, uma transferência de valor, ou seja, de quantidades de trabalho.[7]

Embora Mandel assuma como pressuposto que não existe um nivelamento internacional das taxas de lucro a troca desigual persistiria mesmo na hipótese de que ocorresse o nivelamento. Dividindo a massa total de mais-valor pela massa total de capital adiantado (5800/11200), obtém-se uma taxa de lucro do conjunto do sistema igual a aproximadamente 52%. Equalizadas nesse índice as taxas de lucro tem-se que para A o preço de produção do pacote de mercadorias seria 5.000c + 4.000v + 4.661pr = 13.661 e para B esse preço seria de 200c + 2.000v + 1.139pr = 3.339. Nesse caso a troca se daria nos seguintes termos: 1.222cA + 978vA + 1.139prA = 200cB + 2.000vB + 1.139prB, portanto, 978vA < 2.000vB, consistira em uma diferença ainda maior. A troca de quantidades desiguais de trabalho permaneceria, assim, como o fundamento da troca desigual. Marx descreveu rapidamente esse processo n’O Capital:

“Os capitais investidos no comércio exterior podem levantar uma quota mais elevada de lucro, em primeiro lugar porque competem com mercadorias produzidas com facilidades de produção menos desenvolvidas, por isso o país mais adiantado vende suas mercadorias acima de seu valor, ainda que mais baratas do que os países competidores. (…) O país mais favorecido obtém uma quantidade maior de trabalho em troca de uma menor, ainda que a diferença, o excedente, seja embolsado por uma determinada classe, como ocorre em geral com o intercâmbio ente capital e trabalho” (Marx, 1990, v. 3, p. 344-346.)

A concorrência tende, portanto, a agravar as condições nas quais ocorre o processo de distribuição do mais-valor na esfera mundial. Esse processo é completamente assimétrico e ditado não apenas pelos diferentes níveis nacionais de intensidade e produtividade do trabalho como também pelas condições econômicas e políticas que permitiriam a alguns países sustentar o preço de mercadorias acima de seu valor, enquanto imporiam a outros preços inferiores ao valor. Nessas condições não há como falar de interdependência a não ser que esta signifique simplesmente subordinação.

Isso implica em uma abordagem economicista como Cardoso e Serra afirmaram? Seria uma abordagem economicista se as diferenças de produtividade fossem atribuídas exclusivamente ao variado desenvolvimento tecnológico. A abordagem marxiana é, entretanto, muito mais complexa. Segundo Marx a produtividade é “determinada por uma ampla gama de circunstâncias; é determinada dentre outras coisas pelo grau médio de habilidade dos trabalhadores, o nível do desenvolvimento da ciência e de suas aplicações tecnológicas, a organização social do processo de produção, a extensão e eficiência dos meios de produção e as condições encontradas em seu ambiente natural.” (Marx, 1990, v. 2, p. 130.) É, pois, no desenvolvimento histórico desigual e combinado do capitalismo que encontraremos as determinações das diferentes produtividades do trabalho. A luta de classes atravessa essas múltiplas determinações, sobredeterminando-as.

O que a recorrente acusação de economicismo aventada por Cardoso e Serra revela, por outro lado, é uma concepção de atividade econômica na qual a luta de classes não tem lugar. Mas é, justamente, no processo de produção de mercadorias que a luta de classes ocorre de modo mais intenso. Na obra de Marx a luta de classes não ocorre depois de encerrada a jornada de trabalho; ela tem lugar no próprio processo de produção. As categorias de valor, mais-valor, lucro, taxa de mais-valor, taxa de lucro e produtividade do trabalho, às quais fizemos referência ao longo deste texto expressam relações sociais marcadas pelo conflito social. Daí que elas representem o antagonismo social ao invés das possibilidades de harmonização dos interesses como ocorre com as categorias ecléticas sobre as quais muitos dos argumentos de Cardoso e Serra repousavam.

Referências Bibliográficas


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[1] Uma versao muito extendida deste artigo foi publicada na revista . Politica & Sociedade, v. 9, p. 177-204, 2010.
[2] Ver a opinião de Sallum Jr. (2002, p. 75-76). O projeto intelectual de Florestan procurava integrar de modo interdependente e complementar os diferentes aportes da sociologia sistemática, de Weber; da sociologia diferencial, de Marx; da sociologia comparada, de Durkheim; da sociologia descritiva, da Escola de Chicago; e da sociologia teórica, de Mannheim. Assim, a formação do grupo, ao afirmar as idéias de Marx como um ponto de partida, claramente desafiava Florestan.

[3] O Partido Comunista Brasileiro, reagiu às transformações que se tornavam evidentes na sociedade brasileira deixando para trás sua fase esquerdista, destacando, na conhecida Declaração de Março de 1958, a existência de uma contradição fundamental entre uma burguesia “nacional e progressista” e o imperialismo norte-americano e seus aliados. Anunciada a contradição, a política indicada foi a constituição de uma Frente Nacionalista, constituída pelos “patriotas da burguesia nacional”, a pequena burguesia e o proletariado urbano e rural. Tal frente poderia desenvolver suas forças pacificamente, chegando até mesmo a constituir, por esses meios, um governo nacional e a realizar “por formas e meios pacíficos”, a revolução antiimperialista e antifeudal (PCB, 1982). As diretrizes anunciadas pela Declaração de Março foram ratificadas pelo 5º Congresso do PCB, realizado em 1960. O apoio à candidatura do marechal Lott, em 1961 e o suporte dado pelo partido ao governo de João Goulart foram os desdobramentos práticos dessas teses.

[4] Em sua curta vida, Milcíades Peña (1933-1965) produziu uma obra extremamente significativa na qual empreendeu um importante esforço de revisão da história argentina. No mesmo ano em que Cardoso publicou seu livro sobre os empresários industriais, Peña deu início à publicação de três artigos na revista Fichas de Investigación Económica y Social, reunidos logo depois no livroIndustria, burguesía industrial y liberación nacional (1974).

[5] Assim, “Ao considerar a ‘situação de dependência’, na análise do desenvolvimento latino-americano, o que se pretende ressaltar é que o modo de integração da economias nacionais no mercado internacional supõe formas distintas de inter-relação dos grupos sociais de cada país, entre si e com os grupos externos.” (Cardoso e Faletto, 2004, p. 43.)

[6] Anwar Shaikh (1991, cap. 4) argumentou vigorosamente que a lei ricardiana dos custos comparativos não é compatível com a teoria marxiana do valor.

[7] Esclareça-se que a competição entre setores industriais e no interior de setores industriais, ou seja, o intercâmbio desigual, não é a única fonte de transferência de valor. A estas fontes é possível acrescentar a repatriação de lucros, royalties e rendas, os empréstimos bancários e as dívidas públicas dos países periféricos (cf. p. ex. Shaikh, 1991 e Cooney, 2004).

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