sábado, 17 de novembro de 2012

E se os bancos privados parassem de criar moeda? Simples, o fim do caos financeiro

Uma séria e estruturante proposta para acabar com o caos financeiro mundial é simplesmente proibir que os bancos privados emitam moeda. Essa é a conclusão de um estudo patrocinado pelo FMI. É, vocês sabiam que os bancos privados também criam bilhões em moeda todos os dias? Pois sim, emprestando dinheiro que eles não tem inventados em seus livros contábeis.

Uma proposta nada modesta

Antonio Luiz M. C. Costa | Revista Carta Capital

Um ato legislativo poderia acabar com a dívida pública e grande parte da dívida privada, fazer a economia crescer cerca de 10% e quebrar o poder do setor financeiro sobre o mundo. Não é papo de botequim, nem palavra de ordem de panfleto de extrema-esquerda, mas a proposta de The Chicago Plan Revisited, um estudo patrocinado pelo Fundo Monetário Internacional, elaborado por dois de seus economistas, o tcheco Jaromir Benes e o alemão Michael Kumhof.

Recordemos como um banco privado cria moeda. Quando um cliente A deposita 100 reais na própria conta o banco pode emprestar a mesma quantia a um cliente B, que paga uma despesa a um cliente C, que deposita o ganho no banco, que empresta a D, que paga a E, que deposita no banco e o ciclo se repete indefinidamente. O primeiro cliente continua a dispor dos 100 reais que depositou e que continuam a existir na sua conta. Mas os 100 do cliente C também passaram a existir, bem como os 100 do cliente E etc.: o banco os criou.
A mão visível. A volta do monopólio estatal da emissão
de moeda pode ser a forma mais simples
 de conter o caos financeiro.
Foto: Mark Wilson/Getty Images/AFP

Isso exacerba os ciclos econômicos. Em fases de euforia, os bancos subestimam os riscos e usam o poder de multiplicar a moe­da para emprestar mais do que deveriam, inflacionando os agregados monetários. E quando sobrevém uma crise de confiança, aniquilam o dinheiro com a mesma facilidade – ou são obrigados a fazê-lo pelas retiradas em massa de clientes em pânico –, agravando a retração com uma crise deflacionária que pode travar a economia real.
Em tese, para limitar o risco dos bancos e controlar a inflação e os ciclos financeiros, o banco central pode impor o recolhimento compulsório de uma porcentagem variável conforme o tamanho do banco e o tipo de depósito. Digamos que seja 10%: o banco pode emprestar a B apenas 90 dos 100 que o cliente A depositou e a D apenas 81 dos 90 apurados por C e assim por diante. Desta maneira, seu poder de emitir moeda é teoricamente limitado: neste exemplo, o banco ainda pode criar, no máximo, mil reais para cada 100 depositados.
Na prática dos Estados Unidos (pelo menos), dizem Benes e Kumhof, essa limitação é irrelevante: é a decisão dos bancos privados de emprestar mais ou menos que leva o Fed a ajustar o recolhimento. Sua proposta é obrigar os bancos a recolher 100% dos depósitos, cassar seu poder de emitir moeda e restaurar o monopólio do Estado nesse campo. Na essência, é uma reedição do chamado “Plano Chicago”, proposto em 1936 por Henry Simons, da Universidade de Chicago, para combater os ciclos financeiros que causaram a Grande Depressão. Foi apoiado e popularizado por um colega de Yale mais famoso e controvertido, Irving Fisher.
Os dois economistas do FMI recorreram às últimas décadas de aperfeiçoa­mentos matemáticos dos modelos econômicos para simular o funcionamento da proposta e refutar os críticos que a consideram desastrosa e inflacionária. Pelo contrário, concluem que esse regime permitiria à economia funcionar com inflação zero sem risco de “armadilhas de liquidez”, aumentaria o crescimento econômico, reduziria os custos da economia e a necessidade de impostos, parcialmente substituídos pela receita do governo com emissão adicional de moeda (até 3,5% do PIB), além de cumprir seu objetivo principal, que é conter os ciclos financeiros.
Gráfico extraído de The Chicago Plan Revisited
Nesse regime, os bancos poderiam emprestar apenas o próprio patrimônio líquido (capital e lucros acumulados) e os recursos que tomassem emprestado do Tesouro ou de agentes privados para reaplicar a uma taxa mais alta. Continuariam empresas lucrativas, mas sua dimensão econômica e seu peso no PIB diminuiriam. Perderiam o controle sobre a quantidade de dinheiro em circulação, que passaria a ser independente da quantidade de crédito que os bancos julguem conveniente conceder. Por outro lado, não correriam mais o risco de “corridas”, visto que seus fundos não estariam sujeitos a saques imprevistos.
De quebra, a dívida pública desapareceria. Para respaldar suas operações, os bancos teriam de tomar reservas emprestadas ao Tesouro, anulando a dívida líquida do setor público. O governo substituiria a dívida pública, ou a maior parte dela, por moeda não resgatável. A dívida privada também seria muito reduzida, salvo por empréstimos para financiar compra de capital físico.
O gráfico ilustra as mudanças propostas nos balanços do governo e do sistema financeiro dos EUA. Hoje, os ativos dos bancos somam 200% do PIB, sendo 20% títulos públicos, 80% empréstimos para investimentos e 100% outros empréstimos (consumo, hipotecas e capital de giro). Os bancos teriam de tomar emprestado do Tesouro para respaldar todos os seus depósitos, como na figura do meio, aumentando reservas e créditos do Tesouro em 184% do PIB. Em seguida, o principal dos empréstimos dos bancos ao governo (20% do PIB) seria liquidado e os empréstimos de curto prazo ao setor privado cancelados contra créditos do Tesouro, transferidos aos devedores para pagarem suas dívidas aos bancos. Por fim, os bancos reduziriam o patrimônio para se adequar às necessidades menores e o sistema bancário teria suas funções monetária e de crédito rigorosamente separadas (barra vermelha).
Tio Sam, com dívida hoje de 80% do PIB, emitiria 184% do PIB em créditos do Tesouro, respaldado por igual volume de dinheiro (reservas). Na segunda etapa, o cancelamento de dívidas privadas e públicas reduziria esse volume em 120% do PIB, menos 7% para cobrir a redução de patrimônio líquido do setor bancário e o governo passaria de devedor de 80% do PIB a credor líquido de 11% do PIB (créditos de 71% menos títulos do Tesouro de 60%).
As consequências de tal plano para outros países exigiria um estudo à parte. Mas, numa época em que as esquerdas parecem não encontrar um caminho viável entre sonhos utópicos e reformas acanhadas e pontuais, por que não considerar a sério e adaptar às suas prioridades uma proposta tão ousada como essa, por mais que possam desconfiar de sua origem na Escola de Chicago e de sua atualização por técnicos do FMI? Assim como a Taxa Tobin, é uma ideia que, mesmo vindo de especialistas do establishment, tem potencial para recuperar a autoridade de governos eleitos sobre a economia e o sistema financeiro.

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