quarta-feira, 23 de março de 2011

'A Líbia e a esquerda', por Immanuel Wallerstein

A Líbia e a esquerda*


Por Immanuel Wallerstein

Exite tanta hipocrisia e tanta análise confusa sobre o que está acontecendo na Líbia que é difícil saber por onde começar. O aspecto mais negligenciado da situação é a grande divisão da esquerda mundial. Muitos Estados governados pela esquerda na América Latina, principalmente a Venezuela, apoiam decididamente o Coronel Gaddafi. Mas movimentos e personalidades da esquerda no Oriente Médio, Ásia, África, Europa e América do Norte, definitivamente não concordam.
A análise de Hugo Chávez parece focada principalmente – ou apenas – no fato de que os Estados Unidos e a Europa Ocidental têm ameaçado e condenado o regime de Gaddafi. Gaddafi, Chávez, e alguns outros insistem em que o mundo ocidental quer invadir a Líbia e “roubar” seu petróleo. Toda esta análise esquece completamente os fatos, e repercute mal no julgamento de Chávez e em sua reputação junto ao resto da esquerda mundial.
Primeiro, desde a última década e até há algumas semanas, Gaddafi tinha ótima imagem na mídia ocidental. Ele tentava provar, a cada dia, que não apoiava o “terrorismo” e que queria estar completamente integrado ao mainstream geopolítico e econômico. A Líbia e o mundo ocidental estavam firmando um acordo lucrativo após o outro. É difícil para mim ver Gaddafi como um herói do movimento anti-imperialista mundial, pelo menos na última década.
O segundo ponto esquecido pela análise de Hugo Chávez é que não haverá um envolvimento militar significativo do Ocidente na Líbia. As declarações oficiais são blablablá para impressionar a opinião pública doméstica. Não haverá uma resolução do Conselho de Segurança1, pois a Rússia e a China não irão concordar. Não haverá uma decisão do NATO, porque a Alemanha e alguns outros países não aceitarão. Até mesmo a posição anti-Gaddafi de Sarkozy encontra resistência na França.
E, além disso tudo, a oposição nos Estados Unidos à ação militar vem tanto do público quanto, mais importante, dos militares. O secretário da Defesa, Robert Gates, e o presidente do Estado-Maior Conjunto, almirante Mullen, são publicamente contrários à instituição de uma zona anti-aérea. De fato, Gates foi além. Em 25 de fevereiro, ele dirigiu-se a cadetes à Academia Militar de West Point, dizendo-lhes: “na minha opinião, seria preciso examinar a sanidade de qualquer futuro secretário de Defesa que aconselhe o presidente a enviar de novo uma grande parte do exército americano para a Ásia, o Oriente Médio ou a África.”
Para ressaltar essa visão dos militares, o general aposentado Wesley Clark, antigo comandante das forças da NATO, escreveu um artigo para o Washington Post em 11 de março, com a manchete, “Líbia não cumpre os requisitos para ação militar dos EUA.”. Então, apesar do apelo dos falcões para um envolvimento norte-americano, o presidente Obama irá resistir.
O problema, portanto, não gira em torno uma eventual intervenção militar do Ocidente. São, sim, os esforços de Gaddafi para suprimir toda a oposição, na forma mais brutal de repressão usada contra a segunda revolta árabe. A Líbia está agitada com o êxito das insurreições na Tunísia e Egito. E se houver qualquer conspiração, é entre Gaddafi e o Ocidente – para diminuir, ou quase anular, o vendaval popular. À medida em que Gaddafi obtém sucesso, ele sugere a todos os outros déspotas ameaçados da região que a repressão violenta é um caminho melhor que as concessões.
É isso que a esquerda do resto do mundo vê, ao contrário de alguns governos da América Latina. Como aponta Samir Amin em sua análise da revolta egípcia, existiam quatro grupos distintos entre os manifestantes – os jovens, a esquerda radical, os democratas da classe média e os muçulmanos. A esquerda radical é composta por partidos de esquerda reprimidos e movimentos sindicais revitalizados. Não há dúvida de que a esquerda radical líbia é muito menor; e que o exército nacional é muito mais fraco (devido à política cautelosa de Gaddafi). Lá, o resultado do processo é, portanto, muito incerto.
Os líderes da Liga Árabe podem condenar Gaddafi publicamente. Mas muitos, e até mesmo a maior parte, deve aplaudi-lo em privado – e copiá-lo. Esta constatação pode ser útil para esclarecer a esquerda mundial.
Helena Sheeham, uma ativista irlandesa marxista, muito conhecida na África por seu trabalho solidário com muitos movimentos radicais, foi convidada pelo regime de Gaddafi para palestrar na universidade líbia. Ela chegou assim que o tumulto eclodiu. As conferências na universidade foram canceladas. Ela foi simplesmente deixada por seus anfitriões, e teve que descobrir sozinha como sair do país. Escreveu um diário no qual, em seu último dia no país, 8 de março, ela registra: “qualquer ambivalência sobre aquele regime se acabou. É brutal, corrupto, enganoso, ilusório”.
Também podemos observar a declaração da maior federação sindical da África do Sul e voz da esquerda, a Cosatu. Após louvar as realizações sociais do regime líbio, a Cosatu afirma: ”não aceitamos de modo algum, porém, que essas realizações sirvam como pretexto para a selvageria contra aqueles que protestam contra a ditadura opressiva do coronel Gaddafi e reafirmamos nosso apoio à democracia e aos direitos humanos na Líbia e em todo o continente.”
Vamos manter o foco. Hoje, a luta fundamental, no mundo inteiro é a segunda revolta árabe. Já será difícil o bastante obter um resultado radical nessa luta. Gaddafi é um grande obstáculo para a esquerda árabe, e também do resto do mundo. Talvez devêssemos nos lembrar da máxima de Simone de Beauvoir: “querer libertar-se significa querer também a liberdade dos outros”.
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* Tradução: Daniela Frabasile 
O texto de Wallerstein foi publicado em 15 de março, quando a posição dos Estados Unidos, então contrária a uma intervenção na Líbia, prevalecia, como é de praxe, no Conselho de Segurança da ONU. Naquele momento, contudo, já estava em curso uma mudança, liderada pela secretária de Estado Hillary Clinton e parcialmente descrita em reportagem do New York Times.

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