quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O Brasil e a China na África: entrevista Theotonio dos Santos

Monitor Mercantil online, 13/08/2010

Brasil e China podem trocar papéis dos EUA por "avanço" na África 


Este ano, a China vai assumir o primeiro lugar entre os países que mais investem no Brasil. De janeiro até julho, o país asiático anunciou cerca de US$ 10 bilhões em projetos, com aportes diluídos pelos próximos anos. 
Outros US$ 10 bilhões de recursos chineses servirão para financiar os projetos do pré-sal conduzidos pela Petrobras. Até o fim do ano, segundo estimativa da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-China, o total de recursos chineses no país deverá chegar a US$ 25 bilhões, incluindo as áreas de siderurgia e agropecuária. 
É notória também a expansão do gigante asiático, não apenas na América do Sul, mas em outras regiões do planeta, como a África e a própria Europa. 
Já no Brasil, os bancos Bradesco e Banco do Brasil (BB) se associaram ao português Espírito Santo (BES) para investir na África. O cientista Social Theotonio dos Santos, da Universidade Federal Fluminense e do Conselho Editorial do MM, que já disse ser favorável, tanto aos investimentos chineses mundo afora (como alternativa ao acúmulo de reservas em títulos públicos norte-americanos), quanto à estratégia dos bancos brasileiros na África, lamenta que as duas iniciativas não estejam articuladas, não apenas no continente africano, mas também na América do Sul. 
"Isso criaria uma grande demanda para técnicos brasileiros e para a própria indústria de médio desenvolvimento. Poderia haver uma triangulação muito favorável, inclusive em termos de industrialização da África", avaliou, nesta entrevista exclusiva ao MM. 


Não é mais seguro investir em ativos vinculados ao dólar? 
Os japoneses fizeram isso antes, contando com as altas taxas de juros que o Tesouro norte-americano pagava. Hoje estão até negativas. A China detém grande quantidade de títulos norte-americanos, que hoje são papel podre. 
Os japoneses tinham papel bom, com liquidez grande, que alavancavam em até oito vezes. Hoje, isso não é possível. Um título norte-americano vale 60% do valor de face, no máximo. 
Cerca de US$ 700 bilhões das reservas chinesas estão comprometidas com isto. A China, então, quer sair do mico, investindo em ativos mundo afora e expandindo o setor financeiro. Vi o prefeito de Xangai contar com essa expansão financeira, ao dizer que Hong Kong já tinha sido ultrapassada e que a missão agora é superar Tóquio como centro financeiro. 
O orgulho com que ele falou isso mostrou existir uma aposta na conversão em grandes grupos financeiros. São as estatais que detêm esses grandes recursos. Seria um caso novo de capitalismo financeiro de Estado. 

O Brasil detém grandes bancos, inclusive estatais. Poderia seguir o exemplo? 
Aqui o BB e outros bancos estatais investem em títulos públicos, entraram no jogo da especulação. Se triunfar uma perspectiva em que o mercado de capitais chinês se articule com essa crise mundial, tentando se valorizar e reforçando uma face nova de especulação financeira mundial, será muito ruim. 
Mas não acredito que a China deixe de ter cautela na articulação com esse sistema. Mas é fato que eles estão diante de uma oportunidade muito grande. Ofertaram US$ 50 bilhões ao FMI. Fui contra por que não conseguirão mudar a orientação do FMI. É um grupo incompetente e caro. Esse dinheiro vai mais para financiar burocratas. Seria muito melhor financiar o banco asiático ou outros bancos regionais, como o Banco do Sul. 

O Brasil poderia ser mais pró-ativo no Banco do Sul? 
Lula pode dar US$ 10 bilhões para o FMI, mas para Banco do Sul é muito tímido. Colocar dinheiro na ciranda financeira é fácil, mas poderia também usar em coisas sérias, que repercutam para o desenvolvimento regional ou mundial. 
O capitalismo de Estado tem enorme potencial de intervenção. Os chineses ofereceram quase US$10 bilhões para aumentar a infra-estrutura exportadora brasileira, com projetos. Podem colocar esses recursos. Se o Brasil não quer apostar no Banco do Sul, a China aposta. Chávez, nos contratos para explorar petróleo nas Franjas do Orinoco, abriu para empresas norte-americanas, indonésias, hindus e outras, assinando com a PDVSA. O governo exigiu apenas um bônus pela exploração. Pelos cálculos de Chávez, US$ 3 bilhões, que serão usados exclusivamente para políticas sociais. Putin (Vladimir, primeiro-ministro da Rússia) adiantou US$ 1,5 bilhão em cheque adiantado. 

Qual o potencial de utilização de nossas reservas para um avanço produtivo e social?
É enorme. Incrível como se consegue continuar pagando juros altos para atrair investimentos em forma de dívida pública. Já os chineses, estão diante de opções de intervenção no sistema financeiro mundial, que tem implicações fortes de reestruturação da economia mundial. O pensamento econômico e político atual não está a altura de compreender essas transformações. 
Veja a Europa. Numa situação como essa, a população tem de suportar uma perda violenta de capacidade de consumo. Financistas são capazes de convencer a Europa de que a solução é arrochar a população, quando deveria ser o contrário. Conseguem fazer política de contenção de consumo dessa dimensão. 
É um suicídio, no qual só o povo perde, pois o setor financeiro não perde nada. Pelo contrário, terão mais recursos para especulação. Entregaram o mundo ao neoliberalismo. É um rebaixamento comparável à escolástica medieval. Tudo a serviço de uma burocracia religiosa que se apoderou do Estado, embora não tenham conseguido impedir a evolução da burguesia. 

Por que o senhor defende a articulação entre as ações de Brasil e China na internacionalização do capital? 
O Brasil tem condições de dar apoio a uma indústria de base forte, tanto na América do Sul, quanto na África. Apesar de não dominar a Terceira Revolução Industrial, o país é desenvolvido numa área importante, na qual podemos ser fornecedores, como máquinas para processamento de matérias-primas. Além de o potencial ser grande, a conjuntura é favorável. 

Não há risco de se criar um novo colonialismo? 
É um risco. Mas a África ainda não tentou projeto industrial próprio. A África do Sul não se desenvolveu. O Egito tentou, mas o Banco Mundial ajudou a manter a região como produtora de matéria-prima apenas. Essa orientação foi muito forte. Se há um projeto de industrialização, com capital brasileiro e chinês, que não são do centro do sistema imperialista, haverá, sim, um conteúdo imperial, mas o Brasil não terá força para tanto. A China também não tem muito interesse em exportar para África, mas, sim, importar. 

Quanto custa montar um aparato industrial na África? 
É barato para a China, que tem mais de US$ 1,5 trilhão em reservas. O país já está levando mão-de-obra para lá. Fazem projetos fechados: investem, montam empresas e levam os trabalhadores mais qualificados. Do ponto de vista chinês, seria interessante, inclusive, manter essa população na África, porque tem problemas de superpopulação. 
Estão inclusive criando colônias de aposentados em países como a Costa Rica. Existe, ainda, a vantagem de levar influência cultural chinesa para o mundo inteiro. No caso do Brasil, não existe esse excesso de mão-de-obra, a não ser devido à falta de investimento interno, não por excesso demográfico. 

Qual a importância estratégica da África? 
Neste momento, o continente se converte numa das bases mais importantes para assegurar matérias-primas estratégicas na economia mundial. E hoje quem tem maior fome disso é a China, que está investindo fortemente para converter a região numa zona de apoio. 
O Brasil também está participando de alguma forma com mão-de-obra de engenheiros e outros técnicos que têm na África uma condição mais próxima da realidade brasileira. Portanto, é muito natural que o interesse brasileiro seja crescente na África. 
Por outro lado, a agricultura africana está abandonada, embora tenha sido uma das grandes regiões agrícolas do mundo. Pode se converter no celeiro da humanidade. A China tem interesse em que isso se viabilize. Não é exportadora agrícola, pelo contrário. Se Lula realmente cumprir a promessa de uma espécie de Plano Marshall para África e América do Sul, as possibilidades também são enormes. 

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