sexta-feira, 23 de julho de 2010

BNDES transfere renda a setores privilegiados ao emprestar com taxas inferiores

por João Paulo de Carvalho

Não sei se vocês estão acompanhando as discussões que estão ocorrendo sobre o comportamento da dívida pública brasileira. Esta discussão tem colocado em oposição economistas ortodoxos e heterodoxos de dentro e fora do governo. A querela gira em torno principalmente dos empréstimos do Tesouro ao BNDES e na diferença entre o juros pago pelo Banco ao Tesouro (cerca de 6% ao ano) e do custo do financiamento do Tesouro (SELIC). Alguns economistas ortodoxos (mas não só ortodoxos) afirmam que esta diferença onera o Tesouro, criando uma espécie de descapitalização dos cofres públicos (ver artigo abaixo), o governo por outro lado afirma que os empréstimos ao BNDES ao impulsionar a economia geram receitas através de impostos o que mais que compensaria os empréstimos subsidiados.

Concordo em parte com os dois argumentos. Com a visão ortodoxa (não tão ortodoxa assim) concordo com a parte da análise de que há um descasamento entre as políticas fiscal e monetária do governo. Enquanto por um lado os operadores da política fiscal (Ministério da Fazenda) adotam uma política expansionista, a política monetária (Banco Central) age ao contrário, podendo criar constrangimentos futuros ao tesouro, principalmente se houver uma reversão dos fluxos financeiros internacionais (algo já esperado por alguns analistas) que dificultaria o refinanciamento da dívida pública. O argumento do governo de que os aumentos dos impostos supririam os custos do crédito subsidiado pode ser verdadeiro, mas ainda não vi nenhum estudo quantitativo sobre o assunto. Ainda neste ponto é necessário ver se não há a presença de Rent-Seeking, ou melhor, se os créditos do BNDES estão beneficiando realmente a produção e o emprego e não servindo direta ou indiretamente a rentistas. 
 
Como disse ainda não vi nenhum estudo sobre a questão. As coisas ainda estão um tanto panfletárias com economistas críticos ao governo escrevendo em jornais e membros do governo respondendo, como a entrevista do ministro Mantega aO Globo em que o mesmo afirma que os críticos são invejosos, que já estiveram no governo e não foram bem sucedidos e por isso criticam e não percebem as inovações que o governo está fazendo (mas não explica quais são). Abaixo artigo de Alexandre Schwartsman, um dos críticos ao que o ministro se refere em sua entrevista e que expõe bem o argumento dos críticos a política fiscal.



O reverso da fortuna
 Ao emprestar a taxas inferiores às que paga, o BNDES transfere renda para setores privilegiados

por Alexandre Schwartsman

 Folha de S.Paulo, 21 de julho de 2010

ALAVANCAGEM, em que pese a complexidade associada ao termo, é um fenômeno comum no mercado financeiro e não tão difícil de entender. Imagine, por exemplo, alguém que possua R$ 100 e os invista em algo que renda R$ 10 ao ano (um retorno de 10%). Caso possa tomar recursos emprestados a, digamos, 5% ao ano, ele pode multiplicar ("alavancar") seu retorno.

Tomando R$ 100 por empréstimo e investindo no mesmo ativo que rende 10% ao ano, obterá R$ 20 (10% sobre R$ 200) menos os R$ 5 que deverá pagar de juros sobre os R$ 100 emprestados, ou seja, R$ 15. Agora, para o mesmo capital de R$ 100, seu retorno é de 15% ao ano. Também não é complicado concluir que, quanto maior for a alavancagem, tanto maior será o retorno sobre o capital.

No mesmo exemplo acima, se, em vez de tomar R$ 100 emprestados, nossa investidora tomasse R$ 900, obteria R$ 100 por ano (10% sobre R$ 1.000) e, deduzindo o juro sobre o empréstimo (R$ 45), ficaria com R$ 55, um retorno de 55% (!) sobre seu capital original.

Obviamente, o risco também cresce com a alavancagem: no caso em questão, uma perda de 10% no valor do ativo deixaria nossa investidora sem um centavo para contar a história. Resumindo: a alavancagem é um instrumento que eleva tanto o retorno como o risco do investimento.

Peço agora ao leitor que imagine um caso paradoxal: o que ocorreria se o rendimento do ativo fosse inferior ao custo dos empréstimos tomados para alavancar o investimento? Para facilitar, suponha que o retorno do ativo seja zero. Nesse caso, se a investidora tomou R$ 200 emprestados a juro de 5%, no final do ano ela teria de pagar R$ 10, isto é, obteria um retorno negativo de 10% sobre seu capital de R$ 100.

E, quanto mais alavancasse, tanto mais negativo se tornaria seu retorno, enquanto seu risco continuaria a crescer. Esse caso, contudo, deveria ser mera curiosidade acadêmica. Afinal de contas, quem, em sã consciência, tomaria recursos para aplicá-los numa taxa mais baixa do que originalmente custaram? A resposta, leitor, é o Tesouro Nacional, o gestor -na descrição precisa de Armínio Fraga- do meu, do seu, do nosso dinheiro.

Em nome de uma política dita anticíclica, o Tesouro Nacional emprestou, no último ano e meio, R$ 180 bilhões para o BNDES a taxas consideravelmente inferiores às que paga para tomar esses recursos, trazendo o estoque de créditos daquela instituição para a marca de R$ 377 bilhões (12% do PIB), incluindo nessa conta os recursos do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador).

O grosso desses créditos (R$ 299 bilhões) está indexado à TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo), hoje em 6% ao ano, enquanto a taxa básica de juros (Selic), que baliza o custo dos títulos da dívida do governo, é de 10,25% ao ano.

Como sugerido pelo último exemplo, essa política implica elevação do custo médio da dívida líquida. Aliás, esse efeito foi tão forte a partir do final de 2008 que, a despeito da queda de cinco pontos percentuais da Selic de janeiro a julho de 2009, o custo médio da dívida aumentou.

Posto de outra forma: entre 2004 e 2007, o custo médio da dívida e a Selic andavam em linha (a correlação entre as séries era de 90%); já entre 2008 e 2010, o primeiro subiu, refletindo o poder da alavancagem, a despeito da queda da Selic (a correlação se tornou negativa, -62%).

Seria ótimo que essa correlação permanecesse negativa com a Selic em alta, mas isso só aconteceria se os créditos ao BNDES fossem retirados à medida que a Selic subisse (caracterizando de fato uma política contracíclica).

Como isso não ocorrerá, a alavancagem descrita no início do artigo opera contra nós, pois o custo da dívida subirá mais do que o aumento da Selic, num contexto de risco mais elevado, ou seja, uma monumental transferência de renda para setores privilegiados. Para meros mortais, sobra apenas o reverso da fortuna.

ALEXANDRE SCHWARTSMAN, 47, é economista-chefe do Grupo Santander Brasil, doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central. Escreve às quartas-feiras, quinzenalmente, neste espaço.

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